O que eu aprendi em um ano fazendo um podcast feminista

Sobre os desafios de fazer um podcast feminista para além da própria edição

Aline Hack
7 min readFeb 7, 2018
Arte: Fabris Martins (equipe Olhares)

Quando decidi fazer um podcast pensei inicialmente nos desafios de produção, como montar pautas, fazer contatos, networking. Em março agora completa 1 ano dessa incrível jornada.

Esse objetivo se tornou para mim um desafio no ano de 2017, começamos muito cruas, mas com o tempo, naturalmente, nos soltamos, e a fluidez no discurso vem naturalmente, assim como as pautas nos são apresentadas e convidadas surgem cada dia mais.

Sou host do Olhares Podcast, um podcast que trata de forma séria e educativa as pautas feministas, para transformar a visão de mundo sobre o papel da mulher na sociedade.

Ouvimos tanto falar sobre mulheres de forma deturpada que resolvemos mostrar sob formato de debate e entrevista novas perspectivas, partindo de conceitos até chegar às verdadeiras lutas.

Pouquíssimas pessoas se perguntam: Quem foram e quem são hoje as feministas e o que elas fizeram e fazem de fato pela sociedade?

Em um ano de existência, nós produzimos 26 programas, escrevemos 13 textos com a participação de toda a equipe e ouvintes convidados, falamos sobre livros com recorte feminista e entrevistamos 3 mulheres incríveis, mobilizamos a internet com a criação da hashtag #ativismonaweb, recolhemos informações e incentivamos 186 pessoas a conhecer sobre violências virtuais com um questionário que promovemos na Campanha dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra mulher (Novembro Laranja), mas as lições sempre são as maiores.

1. As mulheres precisam ouvir outras mulheres

Precisamos nos identificar em nossos pares. Quando criamos o podcast, pensávamos em falar assuntos que mulheres se identificavam, mas com o tempo, percebemos que falar sobre mulheres faz parte de um processo de se identificar como mulher e, dentro da sua própria identidade, falar com outras mulheres para que assim se identifiquem também.

Mulheres têm mais facilidade de ouvirem outras mulheres - talvez porque somos tão vítimas de mansplaining todos os dias, que quando falamos sobre nós mesmas, trazemos experiências de vida, trazemos sinceridade, trazemos identidade.

Falar sobre mulheres e para mulheres é um processo de dentro para fora.

2. Sororidade é importante sim, mas não acontece com todas

Uma coisa que me surpreendeu foi que a sororidade, tão pesquisada no Google ano de 2017, não é unânime para todas as mulheres. Quando começamos a falar com o feminismo e para o feminismo, essa palavra está sempre presente.

Pesquisar sobre O que é sororidade? demonstra claramente que a tão usada expressão do feminismo não é aplicada de fato por algumas mulheres.

Esse clique me ocorreu quando gravamos episódios sobre feminismo negro, quando as convidadas disseram que não acreditavam na sororidade, porque mulheres brancas não tratam mulheres negras igualmente.

Depois da pauta, me peguei a pensar (coisa que mantenho até hoje) como nós mulheres brancas realmente excluímos as negras de nossas pautas, quem dirá as indígenas, o que tornou para mim um processo construtivo intenso de sempre buscar pensar o feminismo em várias camadas, não só pelo meu ponto de vista.

3. Mulheres entendem melhor as demandas das mulheres

Uma coisa que me surpreende na internet é homem tentando dizer o que mulher passa e o que mulher sente. Somente uma mulher realmente sabe o que é sofrer todos os tipos de violência, ter medo de andar na rua e ser invisibilizada.

Sabendo disso, tivemos o cuidado de sempre chamar mulheres para falar sobre mulheres, porque além de nos reconhecer nos nossos pares, precisamos também dar visibilidade à essas mulheres que queiram falar sobre nossas pautas.

4. Estudar gênero no ambiente acadêmico é muito importante

Uma frase que me chamou muita atenção no episódio de Masculinidades (único episódio com homens que produzimos até então)foi ouvir que precisamos entender e ler sobre gênero na academia e não na política.

Lamentavelmente, mulheres têm que estudar e trabalhar até 4 vezes mais que um homem para alcançar o mesmo nível, só que, estudo recente informou que quanto mais uma mulher estuda, mais desigualdade salarial ela sofre.

Mas por que estudar gênero é importante? Para construir discursos, para sustentar nossas pautas, para informar. Mulheres são a todo tempo descredibilizadas em seus discursos e tendo uma sustentação acadêmica, o estudo apenas fortalecerá o debate para construção de temas mais equânimes, dentro e fora da academia.

5. Acesso ao feminismo não é tão fácil para todas

O nome feminismo carrega uma carga pesadíssima de descredibilidade, principalmente por movimentos mais conservadores da sociedade. O primeiro passo para invisibilizar uma pauta é descredibiliza-la socialmente, torna-la nociva à convivência humana.

Durante tantos anos, homens foram detentores dos espaços de poder na vida pública e religiosa, construíram discursos sólidos que são considerados verdadeiros até a presente data.

Sabe aquela mentira que sustentamos tanto que se torna verdade? É o discurso que o feminismo irá desmontar a sociedade. Mas o que não se lê por trás desse discurso é que, de fato, ele poderá desmontar uma sociedade desigual, que não oferece direitos à todos e todas, precariza saúde física e mental de mulheres, descredibiliza seu estudo e trabalho, simplesmente porque quer mantê-la no ambiente privado, preferencialmente hostil.

Nem sempre uma ruptura é algo ruim.

6. Precisamos entender o que é espaço de fala e que todos podemos ter espaço de fala

Outra coisa que foi um tapa na cara nesse período foi a necessidade de reconhecer o espaço de fala. Esse termo tão falado na internet no último ano, representa seu espaço, seu lugar, sua posição em dizer sobre algo que você realmente vive, mas não impede que você fale sobre algo que você pesquisa, algo que você vê, algo que você contribui.

Todos e todas nós podemos ter espaço de fala dentro de um discurso, contudo, precisamos identificar o lugar de fala que estamos. Se somos pessoas brancas, não podemos dizer o que pessoas negras sentem, passam; se somos pessoas de classe média, não podemos dizer o que pessoas da periferia suportam.

Mas podemos reconhecer nosso privilégio para tentar mudar a situação desigual, para ajudar — sempre sem dizer o que a outra pessoa sente — mas observando e identificando as verdadeiras desigualdades para, dentro de um espaço de privilégio, desconstruir o mesmo e abrir novas oportunidades.

7. Fazer ativismo na web traz uma carga emocional muito pesada

A partir do momento que nos declaramos ativistas na internet, uma carga emocional gigante vem junto. O que isso significa? Você passa a ter contato com todas as demandas das mulheres, mas também passa a conhecer suas histórias.

Isso não é necessariamente ruim, mas é difícil não ter empatia sempre, o que faz com que você sofra duplamente, por aquela mulher — muitas vezes por não ter uma solução para ela ou por conta da solução depender unicamente dela — como também pela questão da empatia como mulher, pela possibilidade de um dia você se ver dentro daquela mesma situação.

O problema maior é quando você não pode e não tem como fazer nada. Você sofre com isso. Só que precisamos conhecer essas demandas, construir pautas sobre elas, dar soluções futuras para mulheres que possam vir a sofrer dos mesmos males. Enquanto isso, estamos aprendendo a lidar.

8. Homens precisam falar

Lembro-me quando decidimos falar sobre Masculinidades. O anseio veio da leitura de vários artigos do site Papo de Homem e do documentário Precisamos Falar com os Homens, produzido por eles em parceria com o Grupo Boticário e a ONU Mulheres.

Com a produção dos episódios do Olhares, percebemos que os maiores agentes das violências ainda são os homens, mas eles também são vítimas do machismo construído pela sociedade. Ainda, que há homens dispostos a reconhecer essa desigualdade e nos ajudar.

Se o feminismo luta por uma sociedade igual, não há que se falar em ódio aos homens, mas da busca de parceria, de companheirismo e de ocupação nos espaços de forma amigável, sensível e equânime.

Não é atoa que no ranking dos nossos episódios, o de masculinidades é o mais baixado. Assim como mulheres querem ouvir mulheres, homens também querem ouvir homens, e nada melhor do que eles para trazer e desconstruir aqueles que sempre ouviram falar sobre o feminismo de forma deturpada.

Uma frase que sempre sustentamos é: não estamos aqui para converter os convertidos. Precisamos apresentar conteúdo novo, sustentável academicamente e didático, ao ponto de demonstrar que não estamos aqui de brincadeira, que falar sobre feminismo é coisa séria e sua discussão cabe a todos e todas.

E, sim, existe masculinidade tóxica.

9. Mulheres são invisibilizadas e descredibilizadas nas mídias de conteúdo da internet

Quando decidimos fazer o podcast, sabíamos de poucos podcasts feitos por mulheres, ainda mais sob a temática feminista.

Mas o mundo virtual é uma enorme bolha.

Em menos de 3 meses tivemos acesso a dezenas de mulheres que produzem podcasts, seja como hosts, co-hosts, produção de conteúdo, pauta, social media, sac 2.0, programadoras etc.

Hoje ouço aproximadamente 20 podcasts produzidos por mulheres, muitos dos quais tive acesso pela hashtag #mulherespodcasters, criada também no ano passado para dar visibilidade às mulheres que produzem estes conteúdos.

E estamos lutando para conquistar esse espaço, juntas. Hoje faço parte de um grupo do telegram e facebook exclusivo para mulheres, que possui mais de uma centena de membras, todas discutindo podcast e assuntos que envolvem a temática feminina.

Ou seja, há mulheres produzindo a mídia sim, com conteúdo diversificado e qualidade competitiva, basta ter disponibilidade e buscar nos lugares certos!

10. Fazer podcast não da dinheiro mas traz felicidade

Hoje, no Brasil, podcast (ainda) não dá dinheiro. Há mais de dois anos dizem que Esse ano será o ano do podcast!

Ano passado, para mim, já foi o ano do podcast, o meu, que hoje é o nosso, já que a equipe de voluntárias se ampliou.

Podcast sério exige disponibilidade, também exige dinheiro, tempo, estudo e dedicação. Hoje não ganhamos nenhum centavo com nosso podcast; quem sabe algum dia tenhamos a iniciativa de começar um financiamento coletivo pago por quem acredita na causa, ou busquemos fundos de apoio para que possamos nos dedicar um pouco mais e produzir mais conteúdo.

Por enquanto, apenas digo: cada notícia que chega a mim, de mulher que saiu de uma situação de violência depois de ouvir meu podcast, eu ganho muito mais do que um milhão de reais!

E com isso, sigo dizendo, e seguirei, mesmo se este projeto um dia for financiado, porque é a mais pura verdade.

--

--

Aline Hack

Host e produtora do Olhares Podcast. Advogada ativista, é palestrante e pesquisadora em feminismo, direitos humanos, movimentos sociais e ciberativismo.