Sobre “homem e mulher os criou”. Um Manifesto Intersexo

Amiel modesto Vieira
10 min readJun 16, 2019

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Este texto é uma resposta a recente publicação do colégio de educação do Vaticano ao ensino de gênero e sexualidade em ambientes acadêmicos católicos. Disponível aqui: http://www.educatio.va/content/dam/cec/Documenti/19_1000_PORTOGHESE.pdf

A Intersexualidade e a transgeneridade chegaram até a sociedade através das histórias de vidas que para se afirmarem e serem percebidas, mesmo que estivessem entre nós todos os dias, tiveram que contar a dor e algumas alegrias do que é ser trans e intersexo numa sociedade heterocisnormativa. Por mais que se aparente uma grande novidade dos anos de 1980 para cá, sempre existimos , mas o nosso lugar na sociedade além da rua era restrito aos consultórios médicos. Somos patologizados pela Classificação Internacional de doenças e pelo Diagnóstico de saúde mental por distúrbio e transtorno, durante muito tempo o poder médico quis nos “conhecer” e entender, enquanto éramos mortos ou operados sem consentimento como no caso das pessoas intersexo.

Fui criado num lar cristão, filho de pastores evangélicos , a minha vida estava pautada por um livro e suas regras de “bem viver” que ensinavam tolerância com o diferente e a necessidade de convencimento do caminho errado daquele que não trilhava o mesmo que o meu. Durante toda a vida, ouvi sobre o casamento e a responsabilidade da mulher no cuidado da casa, do marido e dos filhos. Sob suas mãos estava a conduta moral da família e a preparação dos filhos para uma vida de continuação da espécie, pautada por lugares sociais específicos de homens e mulheres na casa, na igreja e na sociedade.

Conforme os anos foram passando, muitas perguntas circulavam na minha cabeça. Quem sou Eu? Será que sou mulher mesmo? Por que não posso ter filhos? Como será dizer ao meu futuro marido e cabeça da casa que Eu não posso dar filhos? Minha mãe preocupada com minha saúde mental , procurou atendimento psicológico e por mais que elas procurassem me ajudar, havia uma peça essencial que faltava ao quebra-cabeça da minha história: a intersexualidade e a genitália ambígua. O segredo de minha mãe sobre isto, era algo que imagino que a fazia sofrer, mas ao mesmo tempo procurava me preservar dada a dura tarefa que tinha criar uma criança xy, operada no nascimento para o feminino, uma história dura para ela que requereu silêncio para que o processo iniciado aos 7 meses não fosse prejudicado.

Me separar da igreja foi um divisor de águas para mim, acho que tudo cooperou pra aquele momento em que decidi me afastar de 30 anos de cristianismo e começar a prestar mais atenção em mim, na busca por descobrir quem eu era e o que eu poderia ser. Estudei em escolas evangélica e católica, nesses espaços confessionais o mundo que nos era apresentado estava muito ligado ao que preconiza a igreja.

O cuidado com o sexo sem incentivo a descobrir o corpo, muitas vezes focado na família e no objetivo da construção de um indivíduo com uma profissão e conhecimento escolar,os papeis biológicos de homem e mulher ajustado ao que ensina o patriarcado no espaço onde o homem é cabeça da casa e responsável pelo sustento, a mulher como esposa cristã, dona de casa, profissional e educadora dos filhos. Um trabalho quadruplo para a mulher que deveria ser submissa e exemplo para as outras, cujo o sexo praticado focado para a concepção e ao prazer masculino.

Esta semana, o colégio católico para a educação lançou um documento em que combate ao que eles chamam “ideologia de gênero” e as ciências humanas em especial a antropologia. Nesse texto, o objetivo é apresentar suas críticas a teoria de gênero e as rupturas provocadas por ela, aliado ao olhar antropológico que observa a sociedade e a cultura material e imaterial que produz, apontando mudanças na estrutura social e no entendimento do que o olhar para o gênero precisa ser mais ampliado.

A base de suporte utilizado pelos criadores do texto é o biológico que também e antes de tudo funda-se na ideia de que o mundo teve uma criação , em que exaltar o biológico é lembrar-se de que “A ordem biológica é ordem da natureza na medida em que é acessível aos métodos empíricos-descritivos das ciências naturais; mas enquanto ordem específica da existência que permanece em evidente referência à Causa Primeira, a Deus Criador, não é uma ordem biológica”1 E a crítica feita aponta no sentido de que “ A desorientação antropológica (…) contribuiu na desestruturação da família com a tendência a apagar a diferenças entre homem e mulher, consideradas como simples efeitos de um condicionamento histórico-cultural.”2

O que o texto me faz perceber é o grande medo que se observa sobre a erosão da família inclusive quando se olha o surgimento do poliamor como é citado no texto. A preocupação se dá com o futuro da educação da criança e os desafios que esta relação pode trazer a família heterocissexual. A meu ver esses relacionamentos estão presentes inclusive no velho testamento e pelo que se dá a perceber nos textos em si , os filhos não foram prejudicados. Assim como a sociedade evolui e encontra suas formas de reinventar e se aprimorar, a situação da criança a meu ver.

No ponto 10 se declara que a problemática apresentada na década de 1990 na teoria de gênero provoca por uma grande mudança no sentido em que “Chega-se por fim à teorizar uma radical separação entre género (gender) e sexo (sex), com prioridade ao primeiro sobre o segundo. Tal meta é vista como uma etapa importante da evolução da humanidade, a qual «prevê uma sociedade sem diferenças de sexo».”. O problema aqui é a necessidade de se afirmar unicamente a diferença biológica e sexual de homens e mulheres e não a pluralidade do corpo e das identidades de gênero, essas últimas lhes parecem inexistente.

Esta mudança fica melhor explicada no documento no ponto 11 em que se declara que “Esta separação tem como consequência a diferenciação de diversas “orientações sexuais” que já não se apresentam definidas pela diferença sexual entre masculino e feminino, mas podem assumir outras formas, determinadas somente pelo indivíduo radicalmente autônomo. Para além disso, o próprio conceito de gender depende da atitude subjetiva da pessoa, que pode escolher um gênero que não corresponde à sua sexualidade biológica e, portanto, com o modo como os outros o consideram (transgender).”

As ciências sociais ao abordarem a questão do gênero, destacam a experiência de gênero como algo único e fundamental. O que para o colégio é algo pernicioso pois se coloca a possibilidade de uma pluralidade de si que em seus olhares, pois o que se coloca em xeque é a luta-denúncia principalmente do feminismo quanto ao papel do homem e na construção social do gênero. A herança patriarcal empunhada pelos dogmas da igreja católica , inclusive apontam o lugar da mulher novamente diante do cuidado e do ensino, esquecendo-se da multiplicidade de atuações e espaços que uma mulher pode e deve ocupar.

O medo do gênero neutro ou das pessoas trans é algo muito perceptível no texto, principalmente por que o que pesa na visão do colégio é o desestruturar da ordem biológica ou divina que seria fruto da perfectibilidade das ações desse criador tão poderoso . Este mesmo criador seria denunciado por pessoas trans e intersexo, pois suas questões apontam para a falibidade da criação. Neste sentido a própria teoria de origem do universo poderia ser — como é — questionada pela ciência. A evocação da biologia aparecem no texto ora numa defesa situada da diferença única e univoca entre homens e mulheres, ora num apontamento quanto a antropologia que como ciência e estrutura observa a multiplicidade da formação humana inclusive nas sociedades matriarcais com um forma diversa de perceber os papéis na sociedade que se está inserido.

Ao fazermos um resgate mental é possível lembrar, por exemplo, de que a ideia de que a terra é redonda e que o sol é o centro de nossa galáxia, foram criticados pela igreja e muitos dos formuladores dessas ideias depois comprovadas pela ciência eram classificados como hereges. A mesma igreja que se coloca em favor da não discriminação no ensino , desafia a existência de pessoas trans e intersexo, essas pessoas seriam pertubadores da moral católica que se funda numa proposta heterosexista e patriarcal que ignora a existência de pessoas como fez no passado com pessoas negras e índias que classificava como sem alma.

O absurdo é tamanho que o motivo maior de escrita se apresenta no fato de que ao discutir a biologia, coloca o intersexo como inexistente, pois sua existência como rege as entrelinhas do texto desafia a perfectibilidade divina. A preocupação segue-se no ponto 25 que diz que “(…) A tentativa de superar a diferença constitutiva de masculino e feminino, como ocorre na intersexualidade ou no transgender, conduz a uma ambiguidade masculina e feminina, que pressupõem de modo contraditório aquela diferença sexual que se pretende negar ou superar. Esta oscilação entre masculino e feminino torna-se, no final, uma exposição somente “provocatória” contra os chamados “esquemas tradicionais” que não têm em conta o sofrimento daqueles que vivem numa condição indeterminada. Tal conceção procura aniquilar a natureza (tudo o que recebemos como fundamento prévio do nosso ser e todas as nossas ações no mundo), enquanto ali é implicitamente reafirmado. ”

No caso mais específico da intersexualidade, a realidade biológica de gênero que este corpo apresenta é negada para beneficiar a existência de 2 únicas possibilidades biológicas de existir. Ou seja, faz-se a negação quando se convém e ainda destaca que dadas as possibilidades inclusive genéticas de existência “(d)as células do homem (que contêm os cromossomas XY) são diferentes daquelas da mulher (a que equivalem os cromossomas XX) desde a concepção.”, ignorando que também há como possibilidades genéticas XXY, X0,XYY. A essas possibilidades dão o nome de “indeterminação sexual” e asseveram que aí “é a medicina que intervém para uma terapia. Nestas situações específicas, não são os pais nem tão pouco a sociedade que podem fazer uma escolha arbitrária, mas é a ciência médica que intervém com finalidade terapêutica, ou seja operando de modo menos invasivo na base de parâmetros objetivos de modo a explicitar a identidade constitutiva.”3

Este colégio que declara que “o corpo é subjetividade que comunica a identidade do ser” e prega que a educação deve estimular para que as crianças e jovens “respeitem cada pessoa na sua peculiar e diferente condição, de modo que ninguém, por causa das próprias condições pessoais (deficiência, raça, religião, tendências afetivas, etc.), possa tornar-se objeto de bullying, violência, insultos e discriminações injustas.” 4 , acredita que corpos que nasceram como o meu 1,7% da população mundial, caso apresentem a indeterminação genital possa ser “corrigido” para poder “habitar” a sociedade conforme a “biologia” deve ser.

Algo que esses pontos destacam é que nossa luta está sendo divulgada mesmo que atinja ouvidos moucos estamos fazendo nossa parte na luta trans e intersexo. Particularmente acredito que figurar neste documento também declara a necessidade mais do que urgente de se lutar contra a mutilação genital de bebês, pois da classe de síndromes nas aulas de biologia da 8a e 9a Série passamos a ser corpos vivos e críticos a estrutura patriarcal e assassina que está presente nas sociedades patriarcais das quais o cristianismo e o processo “civilizatório” tornou possível.

Senão fosse a descoberta da minha própria história talvez eu continuaria ignorante e até concordaria com as ideias da igreja, hoje sabendo do quanto a necropolítica de gênero produziu sobre meu corpo e minha identidade. Não obtive acesso anterior a discussão no meio escolar sobre as orientações sexuais e identidades de gênero. A única coisa que sabia era que ao me assumir lésbica , anos antes de me entender na transmasculinidade, era que estava em pecado e era abominável aos olhos de Deus os meus desejos com outras mulheres. O amor cristão servia no máximo para conversão e convivência entre iguais, a tolerância era pregada , mas sempre com o fim de converter o outro.

Eu sei o peso que carrego e o quanto a luta é necessária, pois os traumas trazidos por essa cirurgia são profundos e ainda precisam ser muito trabalhados. As vitórias conseguidas com suor, sangue e muita luta em favor da comunidade LGBTI, não se curvarão ao heterocispatriarcado cristão.Não voltaremos aos armários. Queremos continuar vivos e habitando esse mundo para mudar a nossa realidade e a de muitos.

O texto busca querer converter a ciência antropológica a fim de colonizar o pensamento e impossibilitar que a pluralidade dos corpos e identidades sejam debatidas e possíveis nas salas de aula, mundo a fora. A ciência já se separou da religião há muitos séculos e mesmo que esteja sendo lecionada em lugares confessionais como escolas e universidades, não pode deixar de ser laica. Nossa luta é pela vida de bebês que o poder médico que inclusive neste texto é apoiado , não realize mutilações genitais em corpos tão inocentes e ainda não totalmente formados em sua identidade de gênero.

Este meu manifesto é para repudiar a ideia preconizada por este colégio da necessidade de respeito ao diferente, mas de ignorância a respeito desse diferente. É um respeito disfarçado de tolerância que ainda diz amar o próximo tendo a si como espelho, negando a pluralidade de possibilidades que o humano pode apresentar. Amar ao próximo como a si mesmo é limitante, porque lembra o mito de narciso que apaixonado por sua própria beleza, morreu afogado e esse amor a si que ignora o outro que não é igual pode se afogar num mar de cinismo e ódio que produz a morte de si e por consequência do outro. Basta de tolerância. Basta de amor ao próximo como a si. Viva o amor e o repeito unicamente por ser quem é e o que pode ser.

Este texto é em memória de Jacob Christopher , criança intersexo que lutou por sua vida e seus pais por permitir ser o que ele foi. Além de permanecer em nossa memória Jacob nos lembra as muitas crianças que não tiveram essa oportunidade e adultos que foram mutilados e passaram a vida sem saber do que o poder médico lhes fez. Este manifesto honra e saúda a memória, a sobrevivência e a luta de toda comunidade intersexo no mundo.

1Deste ponto a seguir em todas as notas de rodapé, quando pontuar alguma citação vai aparecer com o número no qual ela é marcada no documento. No caso o ponto 23.

2Ponto 1

3Partes do ponto 24

4Ponto 16

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