Adalgisa Nery e seu (não imaginário) sofrimento de mulher

Ana Barella
4 min readMar 7, 2016

“Que culpa tinha eu de viver sinceramente as realidades do meu mundo governado pelos meus sentidos?”

Foto de Paulo Garcez.

A história narrada na auto-ficção A Imaginária (1959), de Adalgisa Nery (1905–1980), é um relato em primeira pessoa de uma mulher tentando respirar, e se conhecer, enquanto tem sua vida sufocada por um casamento abusivo e esquizofrênico. O livro ganhou em 2015 uma edição nova, e bem interessante, pela editora José Olympio. Digo isso por conta da introdução escrita pela autora da biografia Adalgisa Nery — Muito amada e muito só (1999), Ana Arruda Callado, e do posfacio com um ensaio do poeta Affonso Romano de Sant’Anna sobre vampirismo masculino.

Acredito que muitos não saibam quem foi Adalgisa Nery. Há um hiato de anos em que ela simplesmente desapareceu das prateleiras — mas promete voltar, já que a José Olympio irá reeditar grande parte de sua obra. Esclarecei brevemente quem foi essa mulher foda antes de contar mais sobre seu livro para lá de inspirador:

Adalgisa nasceu em 1905 no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Ao longo de seus 74 anos de vida, publicou seis livros de poesia, dois de contos, dois romances — ‘A Imaginária’ e ‘Neblina (1972)’ — e uma coletânea com seus melhores textos da coluna Retratos sem Retoque, publicada diariamente no jornal Última Hora. Também seguiu carreira de diplomata e política — foi eleita deputada estadual do Rio três vezes e teve seu mandato cassado pela ditadura militar em 1969.

Casou-se duas vezes, teve oito filhos (apenas o mais novo e o mais velho sobreviveram)e cultivou amizades com nomes como Frida Kahlo, Diego Rivera, Murilo Mendes, Marc Chagall e Manuel Bandeira. Além disso, Adalgisa também foi uma alma de sensibilidade sem igual e viveu cada momento com uma intensidade maior do que o resto do mundo.

Edição de 2015 da editora José Olympio, organizada por Ramon Nunes Mello.

Há muita tristeza em A Imaginária, e por ser um um romance extremamente psicológico, o leitor consegue ter uma percepção vívida do sofrimento de “Berenice”, alter ego da autora no livro. Quando falo que Berenice sofreu, não há exagero. O livro começa com ela ainda menina perdendo sua mãe, depois sendo enxotada para um colégio interno pela madrasta e, logo que entra na puberdade, vemos Berenice se perder em seu casamento repleto de loucura e desvario.

Adalgisa casou-se cedo com o pintor, poeta, bailarino e figurinha carimbada da cena modernista Ismael Nery. No romance ela relata desde o instante do encanto, que ela descreve como “a sensação exata de força e liberdade”, passando pelos momentos mais surreais de humilhação até a morte de Ismael — causada por uma tuberculose, quando ele tinha 33 anos.

Ismael Nery não foi um artista modesto, pelo contrário. Quem conhece sua obra sabe que ele era obcecado por sua autoimagem, chegou a escrever versos como: “ Não quero ser Deus por orgulho/Eu tenho esta grande diferença de Satã/Quero ser Deus por necessidade, por vocação”. E durante sua curta vida levou o mansplaining para outro nível. Só para exemplificar, no livro há trechos com esse tipo de declaração: “Minha mulher precisa ser violentada por uma sequência de choques, a ponto de tornar-se um ser quase criado à minha semelhança”.

Para Ismael Nery, chamado pela escritora apenas de “meu marido”, termo que dá ao personagem uma espécie de autoridade divina, Adalgisa era uma tela em branco, da qual ele poderia esboçar mais um autorretrato sinistro.

Autorretrato com Adalgisa, de Ismael Nery.

O ambiente familiar em que eles viveram também não era nada favorável, Adalgisa caiu de paraquedas em um hospício. Sua sogra, católica fervorosa, era doida de pedra. Passava noites em claro berrando insanidades e tocando o piano freneticamente para os vizinhos não escutarem as brigas que mantinha com seu filho até altas horas.

No livro também há passagens que retratam a vida social do casal. Ismael recebia diariamente a nata do movimento modernista em sua casa. Adalgisa era proibida de participar. Seguia muda, jamais opinava nas discussões, e a sua participação se resumia a servir o café aos intelectuais e artistas. Ismael Nery, por sua vez, gostava de falar aos conhecidos sobre a suposta insignificância de sua parceira, e durante os 15 anos em que ficaram juntos, Adalgisa chegou a quase acreditar nos insultos perpetuados por seu então marido.

Ele afirmava que ela não era provida de sensibilidade artística e tinha vergonha de sua ignorância. Dizia que Adalgisa era análoga à sua mão: se um dia gangrenasse, a deceparia para continuar vivendo.

“Mal sabia ele que meu mundo era grandioso, o meu mundo estava na sua vida e na sua alma separado por um silêncio que ele mesmo provocara.”

É tão difícil de imaginar como uma intelectual como Adalgisa viveu silenciada dessa maneira, praticamente sem humanidade. Mais triste ainda acreditar que até hoje há tantas mulheres talentosas como Adalgisa — providas sim de muita sensibilidade artística — que não dão vazão a seu talento por causa de agressões psicológicas como estas.

Ismael quase fez Adalgisa desistir dela mesma. O relato que ela traça em A Imaginária é doloroso de ler, mas vale a pena. E sabe por quê?

Porque mesmo sufocada, sugada, humilhada e quase enlouquecida por ele, no final Adalgisa se liberta.

Todo o percurso de autoconhecimento e entendimento de sua condição de mulher são relatados com doçura no livro. Acredito que não há nada mais inspirador do que uma mulher foda se descobrindo e entendendo que nem o céu é o limite.

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Ana Barella

Padoqueira profissional desde 1990 e jornalista. Nunca terminou a última temporada de Lost e não consegue parar de falar, nem por cinco minutos.