Como identificar um livro do Murakami — um guia não ilustrado.

Ana Barella
5 min readFeb 12, 2016

Se um dia você estiver casualmente passeando por uma livraria e, por algum motivo de apocalipse, todos os livros tenham suas capas, autores e títulos apagados, esse guia será um item de sobrevivência. Eu posso te garantir: ele será entregue na porta de sebos, bibliotecas, mega livrarias e disponibilizado online. Haverá edital bilionário para viabilizar, entrevista em talk show (comigo no caso), e selinho de recomendação de algum pica do meio editorial na capa.

Acredito que tenho um direito civil de dividir esses sinais. Apenas com eles você conseguirá identificar um livro do autor japonês Haruki Murakami no meio da hipotética sorte de livros sem capa, nome ou autor. Se você não sabe quem é Haruki Murakami, pode ser que o apocalipse já tenha chegado e você nem percebeu, ou que você seja um de seus personagens, preso em um mundo paralelo onde é ok acontecer um absurdo desses. Fica a dica. Mas pega na minha mão que eu te conto quem ele é:

Murakami é o Leonardo Di Caprio do Nobel da Literatura — já foi indicado diversas vezes, nunca levou o prêmio, e toda vez que ele perde, a internet toda lamenta. Ele é também um dos maiores escritores japoneses da atualidade e uma espécie de fenômeno editorial. Autor da trilogia 1Q84 (2009–2010), e de romances como Kafka à beira-mar (2002); Norwegian Wood (1987); e Minha Querida Sputnik (2008), Murakami leva o realismo fantástico colombiano a Tokyo moderna, desenvolvendo tramas de tamanha sensibilidade que não é à toa ele ter deixado o mundo aos seus pés.

Agora vamos ao que interessa, os sinais:

Sinal número 1: Tóquio

A capital japonesa é pano de fundo de grande maioria dos livros de Murakami. Mas se você acha que irá encontrar aquele retrato da Tóquio pós-moderna, em que a tradição japonesa e a contemporaneidade se encontram em um embate de gerações, pode fechar o livro. A metrópole aparece na obra do autor como um catalizador de doenças e neuroses típicas de grandes cidades, além de ser um contraponto perfeito para a solidão, alienação e inadequação social de seus personagens.

No conto Drive my car (Homens sem mulheres, 2015), por exemplo, um ator na meia idade que perdeu sua esposa para o câncer conta sua história para sua motorista durante viagens pela cidade. Em Norwegian Wood ( 1987), Toru Watanabe é um jovem solitário que caminha pelos bairros de Tókio à procura de alguma conexão com as pessoas ao seu redor. Sua jornada é marcada pela morte e seu refúgio é como visitante em uma clinica alternativa psiquiátrica, da qual sua namorada está internada por tentativa de suicídio.

Sinal número 2: Comparações

E de preferência, comparações com fenômenos da natureza. Não há um livro do Murakami sem pelo menos uma dezena dessas belezuras, que acertam em cheio nossos corações. Dá uma olhadinha:

Às vezes, quando eu penso na vida, me sinto como um destroço à deriva que foi parar numa praia.” — Do que eu falo quando eu falo de corrida; 2010.

“Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera (…) Quando a tempestade passar, na certa lhe será difícil entender como conseguiu atravessá-la e ainda sobreviver. Aliás, nem saberá com certeza se ela realmente passou. Uma coisa porém é certa: ao emergir do outro lado da tempestade, você já não será o mesmo de quando nela entrou”, — Kafka à beira-mar.

Sinal número 3: Gatos, gatos e muitos, muitos gatos.

Sempre há um gato. Ou dois, três, ou até mesmo uma cidade habitada exclusivamente por felinos *sonho*. A presença desses animais é uma espécie de símbolo que antecede algum acontecimento sobrenatural. Em 1Q84, Tengo visita a mítica Cidade dos Gatos antes de se transportar para o mundo paralelo onde há duas luas; em Kafka à beira-mar, Nakata consegue se comunicar com esses animais, dom que adquiriu após um incidente com OVNIs ; e em Crônica do Pássaro de Corda (2006), a jornada surreal do protagonista começa após o sumiço do gato de estimação de sua esposa.

Sinal número 4: fetiche por orelhas

Isso mesmo. Por orelhas:

“Ela tinha vinte e um anos, atraente corpo esguio e um par de orelhas das mais perfeitas, fascinantes”, Caçando Carneiros (1982).

“ … ela estava com o cabelo preso, com as orelhas e o pescoço à mostra. O par de pequenas orelhas rosadas parecia ter acabado de ser feito e, para finalizar, uma escova de cerdas macias havia deixado a pele lisa, sem marcas. Pareciam ter uma finalidade puramente estética, e não a função objetiva de ouvir sons”, 1Q84.

Sinal número 6: Rotina

Murakami é corredor, ele já participou de mais de 23 maratonas e incontáveis provas de longa distância. Então, assim como toda pessoa que corre diariamente mais de 10 km ao longo de 23 anos, ele tem um dia-a-dia regrado, acorda junto ao sol e dorme antes das seis.

Essa meticulosa rotina aparece em seus livros. Seja por meio da descrição de receitas culinária — sabemos a grande maioria dos hábitos alimentares e processos de cozinha preferidos de seus personagens — seja pela descrição de atividades físicas, como as aulas de alongamento de Aomame (1Q84), das quais acompanhamos de perto músculo por músculo.

Sinal número 7: Mommy issues

Não queria levantar polêmicas, mas precisamos falar sobre isso. Murakami já criou alguns personagens que demonstraram um complexo de édipo forte. Não estou me referindo ao Kafka, de Kafka à beira-mar, porque esse querido é literalmente uma releitura do mito que deu origem à expressão complexo de édipo. Estou falando de Tengo (1Q84) e seus sonhos eróticos com sua mãe transando com um desconhecido, entre outras bizarrices que poderiam ser resolvidas com terapia.

Outra questão é a representatividade da figura materna, que em muitos de seus romances é distante, ou até mesmo desconhecida. Há personagens que não seguem esse padrão, claro. A protagonista do conto Sono, por exemplo, é uma dona de casa em crise de identidade que passa mais de 20 dias sem pregar o olho. Na história, ela passa a criar antipatia por seu marido e filho e nem mesmo nome ganha….

Sinal número 8: Referências musicais

SIM!! Habemus muitas referências! Os livros são recheados de citações de musicas pop, jazz e eruditas. Sabemos até o gosto musical pessoal do escritor, que uma vez foi dono de um bar de jazz, graças ao seu relato em Do que eu falo quando eu falo de corrida. No livro Murakami explica acreditar que música e computadores não se misturam — assim como amigos, trabalho e sexo — e por isso não usa um iPod, mas sim um MD Player (um mini disk). Como não amar?

Eu tomei a liberdade de bolar uma lista singela com alguns dos álbuns e bandas citadas em seus títulos. Saca só:

  • The Lovin’ Spoonful — uma de suas bandas preferidas, ama os álbuns DayDream (1966)e Hums of the Lovin’ Spoonful (1966).
  • Red Hot Chili Peppers, Gorillaz, Beck, Creedence Clearwater Revival e Beach Boys — essas são as bandas que ele corre ao som.
  • Louis Armstrong And His All-StarsAtlanta Blues (1954). Especificamente o lado B do disco, escutado à exaustão pelo personagem Tengo e sua amante (1Q84).
  • Blonde on Blonde (1966), Bob Dylan
  • White Album (1968), The Beatles
  • The Dock of the Bay (1965); Otis Redding
  • Getz/Gilberto (1964); parceria de João Gilberto com Stan Getz — os quatro últimos álbuns foram citados durante as conversas entre o protagonista Toru Watanabe e sua amiga Reiko Ishida, do livro Norwegian Wood.

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Ana Barella

Padoqueira profissional desde 1990 e jornalista. Nunca terminou a última temporada de Lost e não consegue parar de falar, nem por cinco minutos.