Todas as mulheres de Elena Ferrante

Ana Barella
5 min readMay 2, 2017

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Por que a escritora napolitana e sua tetralogia precisam entrar na sua lista de leitura (além de um desabafo sobre Nino Sarratore)

“São segredos que se sabem só quando se é mulher”

Ilustração por Marina Fráguas. Segue ela no insta: @marianafraguasart

A frase acima salta do segundo volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante e resume com toda a sensibilidade da autora a narrativa sobre as duas amigas Elena Greco (Lenù) e Rafaella Cerullo (Lila); protagonistas, mães, filhas e, de certa forma, heroínas da obra. Lançados no período de 2011 a 2014 na Itália, os livros A Amiga Genial (2011), História do Novo Sobrenome (2012) e História de Quem Foge e de Quem Fica (2013) acabam de ganhar seu fechamento em português: e História da Menina Perdida (2014), publicado por aqui pelo selo Biblioteca Azul, da Globo.

Essa obra de Elena é uma espécie de novela em folhetim dividida por quatro partes dotada de valor literário pouco comum entre best-sellers. E põe best-seller nisso. Ferrante lançou seus primeiros romances no início dos anos 90, mas foi só com a série napolitana — com previsão de adaptação para a TV pela HBO para 2018 — que chegou ao número de 2 milhões de livros vendidos e permaneceu por semanas no quinto lugar da lista do New York Times. E tudo isso sem nem mesmo uma aparição pública, noite de autógrafos, entrevista em talk show ou mesmo uma mísera foto na orelha de seus livros.

A verdade é que quem ainda não conhece Ferrante não está muito por fora. Ninguém realmente sabe a identidade da autora, uma vez que o nome assinado na capa dos livros é apenas um pseudônimo. Tudo o que sabemos foi por meio de poucas entrevistas concedidas via e-mail, nas quais ela revela acreditar que livros, uma vez que são escritos, não precisam mais de seus autores. Ela ainda menciona ter crescido em Nápoles, morado na Grécia e ser mãe.

Houve, obviamente, quem desrespeitasse a autora e afirmasse ter descoberto sua identidade — o jornalista investigativo Claudio Gatti rastreou o dinheiro das vendas e diz que Elena é, na realidade, Anita Raja, uma tradutora que vive em Roma. Mas isso pouco importa. O que importa mesmo é o talento estampado em sua obra. Talento não só em contar histórias extremamente humanas, mas em transformá-las, com sua narrativa sem igual, em uma espécie de tocante epopeia da mulher moderna.

A narrativa começa em A Amiga Genial, com Lenú (talvez o alter ego da autora) já idosa recebendo uma ligação de Genaro, então filho de sua amiga Lila, contando que sua mãe desapareceu sem deixar vestígios. A ligação não é recebida com muita surpresa, ou mesmo paciência com o filho encostado de sua amiga, e Lenú nos explica que há pelo menos 30 anos Lila quer sumir sem deixar rastros:

“Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio (…) Seu objetivo sempre foi outro: queria volatizar-se , queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu.”

Esse é o ponto de partida para um flash back que dura nada mais nada menos do que 1.700 páginas e nos apresenta a amizade de uma vida entre as duas personagens. E que amizade nada óbvia essa – construída em fixação, inveja, admiração, muito amor, sororidade, surtos de raiva e de companheirismo – que periga acabar a qualquer minuto e ao mesmo tempo durar para sempre.

Lenú narra em primeira pessoa, desde a infância cheia de pobreza das duas no subúrbio de uma Nápoles pouco ficcional da década de 50 até os dias atuais. Qualquer informação a mais sobre a vida das amigas é um spoiler de mau gosto. Mas é importante dizer que acompanhamos muito mais do que os percalços e processos de envelhecimento de Lila e da Elena da história.

A grande estrela da série é a condição de ser mulher, retratada com maestria pela Elena real. Ser mulher em um meio sufocante, pobre, sem nenhum tipo de oportunidade. Ser mulher ignorante, como Lila, que mesmo brilhante não pôde completar seus estudos e se casou com um homem violento ainda jovem. Ser mulher no meio editorial, tão machista e hipócrita. Ser mulher e sofrer de todo tipo de violência, seja esta doméstica, psicológica, física, ou mesmo a urbana, inerente às grandes cidades. Ser filha e depois aprender a ser mãe. Envelhecer, perder a relevância. Talvez até enlouquecer.

É impressionante todas as facetas do feminino que Elena Ferrante consegue retratar no decorrer dos quatro volumes. A narrativa é construída com uma sucessão de situações banais, que por meio de suas palavras tornam-se acontecimentos extraordinários, prendendo a leitura feito um best-seller cheio de fantasia. E não há espaço para clichês, muito pelo contrário. As mulheres de Elena são todas tão porretas e originais que dá gosto de ler. O único problema da série é ter que se despedir das duas amigas no final do quarto livro. Uma despedida, por sinal, que não desaponta, mas aquece o coração de quem, assim como eu, foi tocada pela história das mulheres de Elena.

Uma nota sobre ele: Nino Sarratore

Fiz esta nota de rodapé para frisar que Nino Sarratore é a personificação do esquerdo-macho-pão-com-bosta. Elena conseguiu em apenas um personagem ilustrar um tipo caricato de uma maneira que ó, tá de parabéns. Deixou todo mundo querendo sair correndo, jogar o livro pela janela e chorar de raiva. Nino diz amar as mulheres, entendê-las, prezar pela emancipação feminina — isto porque ele é desconstruidão before it was cool. Nino é sedutor, bonito, “intelectual”, maneiro. Nino, porém, ama apenas seu ego, o maior de todos do livro, inclusive. Maior até do que o ego de seu pai, um jornalista seboso, que abusa de Elena ainda adolescente e tira sua virgindade. Nino seduz todas, faz filhos em todas; depois larga todas – nunca paga pensão – , mas também não larga de verdade. Nino gosta delas perto, pois, afinal de contas, ele pode precisar de seus contatos, dinheiro, intelecto e corpos, eventualmente. Não há nada mais coerente no mundo retratado por Elena Ferrante do que este personagem, sabe porque? Por que, infelizmente, seu vilanismo misógino e egoísta é extremamente real. Ele mostra um machismo diferente de Stefano – primeiro marido de Lila e um tipo que deixaria Ike Turner no chinelo –, o boçal e ignorante, que espanca e mata. O machismo de Nino é institucionalizado, aquele que todo mundo passa um pano e fala “mas tem homem que faz tão pior”. Nino vem de fininho, com interesse travestido de pureza e de amor; e então engana, oprime, usa, e joga fora no final. E está cheio de Nino por aí, viu.

** spoiler alert **

Se você estiver com um Nino Sarratore, faz igual a Lila e Lenú: dá um fora e agradece a deus por ter se livrado de tamanha tranqueira.

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Ana Barella

Padoqueira profissional desde 1990 e jornalista. Nunca terminou a última temporada de Lost e não consegue parar de falar, nem por cinco minutos.