O processo de paz na Colômbia: fim ou recomeço?

CRIES
6 min readOct 11, 2016

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Arthur Murta e Marcela Franzoni

Há mais de meio século, a Colômbia vive internamente o dilema entre a guerra e a paz. Pela primeira vez desde sua criação, em 1964, e depois de três tentativas fracassadas nos últimos 30 anos, a guerrilha das Farc aceitou se desmobilizar, entregar suas armas e se submeter à justiça de transição — que implica em compromissos de verdade, justiça, reparação e não repetição. Os números ajudam a recordar o tamanho do conflito: em 52 anos de guerra, contabilizam-se cerca de 250 mil mortos, 50 mil desaparecidos e sete milhões de afetados.

A última tentativa de firmar um acordo, na gestão de Andrés Pastrana (1998–2002), saíra frustrada devido à conjuntura doméstica e internacional. Em seguida, sobe ao poder Álvaro Uribe (2002–2010), eleito e reeleito por sua política de segurança. Somente em 2010, com o início do governo de Juan Manuel Santos, do Partido Social de Unidade Nacional, as negociações de paz com as Farc ganharam novo ímpeto. Negociar a paz com a guerrilha era a principal promessa da campanha de Santos, que fora reeleito em 2014 com a mesma plataforma.

A oficialização das negociações ocorreu em novembro de 2012, quando se acordou que os diálogos seriam realizados em Havana. O grande objetivo das negociações, de acordo com o documento oficial, era a “construção de uma paz estável e duradoura” a partir de seis pontos principais: 1) a política de desenvolvimento agrário; 2) a participação política; 3) o fim do conflito; 4) a solução para o problema das drogas ilícitas; 5) a questão das vítimas e 6) a implantação dos pontos acordados, a qual prevê a verificação do Acordo, assim como o encaminhamento para o Legislativo. Mediado por Cuba, Noruega, Chile e Venezuela, o Acordo também é histórico pelo peso internacional que o corrobora: países como os EUA, o Vaticano e os membros da União Europeia, instituições financeiras como o FMI, o BID e o Banco Mundial, além de organizações internacionais como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a ONU e a OEA, dentre outros, apoiaram o processo.

O texto do Acordo final data de 24 de agosto de 2016 e, em 2 de outubro, fora submetido à um plebiscito nacional, cujo resultado foi a rejeição do mesmo por 50,2% da população. Ressalta-se que, dentre os 37% de colombianos que compareceram às urnas — número que estabeleceu um recorde em abstenções na Colômbia –, o “não” venceu com a margem apertada de 0,43% (menos de 54 mil votos).

Historicamente, os referendos têm como proposta central não só aprofundar o modelo democrático como também legitimar o processo de tomada de decisão a partir da chancela popular, especialmente em temas delicados, que dividem a opinião pública. No entanto, se por um lado esse processo pode ser encarado como o ápice da participação popular no sistema político, por outro, pode ser visto como um processo em que um eleitorado desinformado acaba por tomar decisões vinculantes de grande impacto na vida pública. O debate sobre o plebiscito tem nesse ponto seu elo mais frágil: a polarização em que a Colômbia vive atualmente necessita de argumentos precisos.

Os que advogavam pelo “sim” utilizaram-se da via econômica: o cenário pós-conflito traria um crescimento do PIB em ritmo acelerado, estimando-se cerca de 6% ao ano — o dobro do atual. Além disso, o grande volume de recursos destinado ao combate à guerrilha poderia ser redistribuído em segurança urbana e até em investimentos no campo. Superar o conflito implicaria em encerrar o capítulo do século XX na Colômbia e direcionar o país para novos e ambiciosos desafios.

Já a campanha do “não” fora baseada majoritariamente na indignação pelos termos controversos do acordo — tais como a transformação das Farc em um partido político[1], as penas mais amenas e os “salários” pagos pelo governo aos guerrilheiros em processo de desmobilização, para que não acabassem cooptados por iniciativas ilícitas — além de que, caso aprovado, o acordo seria incorporado à Constituição colombiana.

Nesse ínterim, foram apresentados ao governo colombiano 68 pontos de objeção por parte do Centro Democrático — partido de Álvaro Uribe. As correções, que podem vir a assumir a forma de um novo texto, foram enviadas ao presidente Juan Manuel Santos, que hoje se vê obrigado a negociar diretamente com Uribe, peça chave na conjuntura colombiana.

A vitória do “não” foi uma surpresa para setores domésticos na Colômbia e para grande parte da comunidade internacional. Apesar das motivações supracitadas, acredita-se que boa parte do eleitorado que votou “não” o fez também como resultado da desinformação, do ódio às Farc, do fantasma dos anos de guerra, de uma retórica de “avanço do comunismo” e do rechaço a um presidente impopular, como é o caso de Santos atualmente. Não obstante, essa parcela da população acredita que o processo de paz acabou por fortalecer as Farc e que saída deve ser pelo combate armado.

Vale ressaltar que o embate “sim” x “não” também foi um embate “Santos” x “Uribe”, respectivamente. Dois presidentes e projetos distintos sob o crivo popular: nessa disputa, Uribe saiu fortalecido — bem como a sua relevância nas eleições presidenciais de 2018. Assim, uma possível reformulação do atual acordo de paz deve contar com a presença dele e do Centro Democrático nas negociações.

Não coincidentemente, logo após o resultado do plebiscito, o discurso de Santos trouxe um claro sinal de pacificação, ao afirmar que todos querem a paz, tanto os que votaram “não” quanto os que votaram “sim”, lançando as bases para um diálogo nacional que possa minimizar não só a polarização vigente na sociedade colombiana, como também sua imagem, cada vez mais impopular. Ademais, Santos convidou Uribe para um encontro no dia 3 de outubro. O ex-presidente não compareceu alegando que ainda era cedo para uma conversa. Já as Farc rejeitam qualquer possibilidade de correção ao que já fora pactuado. O governo assegura que foi feito em Havana o melhor acordo possível, depois de quatro anos de negociação, de modo que tanto o Estado quanto as Farc definem que renegociar o acordo é uma “utopia”.

Por fim, tendo em vista que o acordo não foi referendado pela população, a recente entrega do Prêmio Nobel da Paz de 2016 ao presidente Santos deve ser encarado como um apoio de relevo junto à opinião pública colombiana, na tentativa de ressuscitar ou de reiniciar o debate quanto ao acordo, ou aos possíveis ajustes defendidos pelo grupo do “não”, personificado em Uribe.

REFERÊNCIAS

COLOMBO, S. Ex-presidente Álvaro Uribe torna-se crucial para a paz na Colômbia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/10/1819597-ex-presidente-alvaro-uribe-torna-se-crucial-para-a-paz-na-colombia.shtml>. Acesso em: 8 out. 2016.

LIZCANO, M. ‘El ‘Sí’ cambiará nuestras vidas’. Disponível em: <http://www.eltiempo.com/politica/proceso-de-paz/razones-para-votar-por-el-si-en-el-plebiscito-mauricio-lizcano/16666715>. Acesso em: 8 out. 2016.

MESA DE CONVERSACIONES. Acuerdo Final para la terminación del conflicto y la construcción de una paz estable y duradera. Disponível em: <https://www.mesadeconversaciones.com.co/sites/default/files/acuerdo-final-1473286288.pdf>. Acesso em: 8 out. 2016.

______. Acuerdo General para la terminación del conflicto y la construcción de una paz estable y duradera. Disponível em: <https://www.mesadeconversaciones.com.co/sites/default/files/AcuerdoGeneralTerminacionConflicto.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2015.

RESTREPO, A. Votar por el Sí catapultará a Colombia a una nueva era de esperanza. Disponível em: <http://www.nytimes.com/es/2016/09/26/votar-por-el-si-catapultara-a-colombia-a-una-nueva-era-de-esperanza/>. Acesso em: 8 out. 2016.

[1] Uma das questões mais sensíveis do Acordo diz respeito à participação da Farc na vida pública colombiana, tendo em vista que a guerrilha seria transformada em um partido político e seus membros, cumprindo os compromissos da justiça de transição, poderiam concorrer aos cargos eletivos. Contudo, a hipótese de que as Farc poderiam obter um resultado excepcionalmente alto nas eleições é improvável.

Arthur Murta é Doutorando em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI-Unesp). E-mail: arthurmurta@usp.br

Marcela Franzoni é Mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI-Unesp). E-mail: marcelafranzoni19@gmail.com

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Coordinadora Regional de Investigaciones Económicas y Sociales