Sexta- feira já foi dia da maldade. Hoje, nem tanto

Cecília Olliveira
4 min readSep 16, 2016

Meus olhos — e ouvidos — deram um suspiro assim que pululou esse vídeo na minha TL no Facebook.

Nos anos 2000 eu ainda não morava no Rio de Janeiro, mas ouvia o programa de Funk da Rádio Extra, que pegava em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais.

Meu sonho era morar pro Rio. Mas nada de praia. A vibe subúrbio era rica demais pra me deixar levar por um monte de areia e água. Além da dupla, a cada Bezerra que eu ouvia, a cada Fundo de Quintal, a cada Alcione, Beth, Zeca, Lecy, a vontade aumentava.

Quando ouvia João Nogueira cantando "Bares da Cidade", eu suspirava. Pensava em cada bar que eu iria. E calhou de eu mudar pra perto do "Amarelinho", e ainda dava pra ir a pé ao "Lamas" e "Capela". E lamentei profundamente a cada vez que um deles foi ameaçado pela ~modernidade~.

Lembro de ouvir Lecy cantando Paulo Cesar Pinheiro. E a cada vez que começava "O galo já não canta mais no Cantagalo…", eu arrepiava. E também quando MC Júnior e Leonardo cantavam o "Endereço dos Bailes". Bares e Bailes. A cultura periférica manda na cidade.

Equipe Pernalonga — Baile da Arvore Seca — 2005 — Por Vincent-Rosenblatt

Quando finalmente me mudei pro Rio, há quase 10 anos, eu fui trabalhar no Complexo da Maré. O primeiro baile que fui foi o Baile da Nova Holanda, uma das 16 favelas do Complexo. Aqueles paredões de caixas de som que eu via nos clipes da Furacão 2000 eram reais! Enormes e ensurdecedores, montados na Rua Principal. Peguei ainda baile do Jaca, Mangueira, Dendê, Rocinha... Fiquei impressionada com a organização do Baile de Manguinhos. Ao menos umas 300 barracas. Todas numeradas. Um palco gigante de um lado e um paredão de som de uns 20 metros quadrados. Ficava tão surda que lembrava deles por uns três dias. Era como um Cordão do Bola Preta dentro de um condomínio, os famosos predinhos, na Faixa de Gaza.

Outro dia estava vendo um filme que me levou — de novo — ao passado. Quando eu assisti "Onde a Coruja Dorme", sobre a história de do Bezerra da Silva e seus compositores, chorei. Tenho mania de sentir saudades de coisas que nunca vivi. E aqui, Samba e Funk se encontram. Claudinho, Bochecha e Bezerra dão as mãos.

No "Nosso sonho não vai terminar", os funkeiros cantam nomes de muitos bairros e favelas onde havia bailes. Havia. Verbo conjugado no passado. No mesmo passado onde versos de Bezerra ecoam.

Quando trabalhei na NH, apelido carinhoso da Nova Holanda, me deparei com histórias inimagináveis, como a de pessoas que nasceram e vivem ali sem nunca sair do bairro. Nunca viram a praia, o Cristo Redentor. Nunca andaram de bondinho. A NH é autossuficiente. Tem tudo ali. "Vou sair daqui pra quê? Aqui é meu lugar", ouvi de pessoas de idades diferentes.

E isso meio que me deu uma tristeza, claro. Antigamente rolava uns ônibus que iam de favela pra favela. De baile a baile, que disputavam na unha quem era o mais foda, mais lotado, mais pica.

Meses atrás eu conversava com o MC Léo, que fez a música do endereço dos bailes e ele lamentava que a Resolução 013 — que delega à Polícia Militar a caneta do pode-não-pode sobre as festas nas favelas "pacificadas" — acabou com — dentre outras coisas — com um conhecimento orgânico dos moradores de favelas. Eles rodavam de Zona Sul a Oeste em um fim de semana. Se conheciam e reconheciam de todo canto. Hoje isso acabou, também porque foram cortadas linhas de ônibus que ligavam pontos extremos da cidade. E depois só podia cruzar o túnel — que liga Zona Norte a Sul — depois de passar por revista. E nem era uma novidade. A cultura é refém da segurança pública há bastante tempo.

Bezerra e seus compositores — Cena do Filme "Quando a Coruja Dorme"

Já reparam os nomes dos caras da antiga? Os compositores do Bezerra eram Walmir da Purificação, Julinho da Cidade Alta, Nonô do Jacarezinho, Dunga da Coroa, Barbeirinho do Jacaré, Evandro Galo, Serginho Meriti. A cultura espalhada pelo mapa do Rio, o orgulho de pertencer a estes lugares carregado como sobrenome e que mostra como a união destes saberes produz riqueza. Hoje ainda temos uns resistentes, como o Xandy de Pilares e o Nego do Borel.

Das músicas que MC Leo e Lecy cantavam, poucas favelas ainda tem festas grandiosas e o trânsito entre elas também minguou. Geral perde, já que é a nossa cultura que se esvai.

Só quero frisar que "a favela nunca foi reduto de marginal. Só tem gente marginalizada e isso não sai no jornal", disse um dos meus poetas preferidos, Bezerra. Salve, Bezerra!

E, aí? Onde é o baile hoje?

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