A reinicialização corona
Por Ian Alan Paul (https://www.ianalanpaul.com)
Traduzido livremente
Daqui há uma década os historiadores podem muito bem chamar a pandemia de coronavírus de a grande desaceleração. Os corpos que eram propulsados ininterruptamente pelas cidades através de metrôs, ônibus, bicicletas e rodovias, agora se mantêm em casa, em isolamento auto-imposto, os aviões que cruzavam continentes agora passam cada vez mais tempo estacionados, e navios de carga que navegavam continuamente nas águas dos oceanos, flutuam preguiçosamente próximo aos portos costeiros devido à falta de carga. As fábricas chinesas seguem serenamente em silêncio sem seus trabalhadores, como relíquias de uma era industrial passada, enquanto ambientalistas escrevem online sobre a redução substancial das emissões globais de dióxido de carbono. O capitalismo implacavelmente acelerado parece, inesperada e abruptamente, estar gritando, pesado e trôpego em direção a um sono lânguido.
Após o esvaziamento de escritórios, fábricas, universidades, restaurantes e outros locais de trabalho, a suspensão histórica da economia planetária nos deu todo o tempo do mundo para longas conversas, na sala ou por telefone, para preparar receitas complexas e ler livros há muito abandonados nas prateleiras, para levar comida e remédios aos vizinhos necessitados, para brincar no banheiro com as crianças mandadas para casa pelas escolas e para assistir aqueles filmes que por anos foram adiados. As pessoas dormem, escrevem, choram, dançam, se exercitam, fazem sexo e riem na nova pausa em que nos encontramos. A fragilidade, vulnerabilidade e interdependência da vida são sentidas mais intensamente e compreendidas com mais força à medida que o vírus se espalha, abrindo caminho para novas intimidades, solidariedades e criatividades. Mesmo cercados por crises e medo, momentos frágeis, porém utópicos, ganham vida.
E, no entanto, parece que depois de alguns dias de um interlúdio planetário caracterizado por uma desaceleração sem precedentes em todos os continentes, nas quais as pessoas começaram a questionar a ordem social que até agora definia suas vidas, imensas acelerações foram acionadas numa tentativa de compensar social, econômica e politicamente a velocidade perdida em todos os lugares. O apagão dos sistemas do nosso planeta parece já estar sendo respondido com uma reinicialização, que visa capturar os potenciais não realizados de tantos corpos imóveis e para usar economicamente os muitos corpos que inesperadamente encontraram tempo para experimentar a multiplicidade de usos da vida.
Se pode se dizer que está ocorrendo uma reinicialização do sistema, a que poderíamos chamar, simplesmente, de reinicialização corona, é porque o poder entende que a sociedade está totalmente integrada como um vasto computador que pode ser programado e reprogramado conforme a necessidade, em resposta a qualquer perturbação, contingência ou evento. Nesse sentido, a desaceleração de tantos corpos parece ter aberto o caminho para a reorganização cibernética e a reaceleração da vida planetária, onde o distanciamento social justifica a implementação de formas mais intensas de conectividade digitalizada e controle tecnicamente possível em nosso presente. Este texto é, em última análise, uma tentativa de pensar sobre a possibilidade de que o blecaute e a subsequente reinicialização do planeta atualmente em andamento não sejam, de fato, uma coleção de medidas ad-hoc que desaparecerão junto com o contágio, mas que o coronavírus pode servir como um catalisador para um novo tipo de sociedade, construída sobre formas de subjetividade digitalizada que são forjadas nas circunstâncias históricas únicas da pandemia.
No mínimo, neste ponto, todos devemos nos esforçar para entender as rápidas transformações da vida social, do trabalho e da política atualmente em andamento, não apenas para sobrevivermos juntos e defendermos nossa humanidade comum, mas também na esperança de estabelecer um tipo de sociedade diferente daquela imaginada pelo poder. Se essa reinicialização planetária assume a forma de uma recalibração total da vida social, econômica e política com objetivo de preservar a continuidade da ordem social, política e econômica do capitalismo, como podemos começar a imaginar a vida social de maneira diferente nesse momento difícil?
Neste estágio inicial parece que pelo menos dois novos tipos de subjetividade já começaram a tomar forma, ambas mutuamente constitutivos, intimamente dependentes uma da outra e moldadas pelas infraestruturas e dispositivos informáticos que atualmente atravessam e organizam grande parte de nossa sociedade planetária. Por um lado, temos o sujeito domesticado/conectado, que, confinado a sua casa é pressionado a inventar novas formas de se reconectar e participar de uma economia virtualizada. Por outro lado, temos o sujeito móvel/descartável, que serve como sistema circulatório da pandemia, um sujeito que se torna cada vez mais vulnerável e precário à medida que é forçado a se mover em velocidades cada vez maiores. Para que sujeitos domesticados/conectados se sustentem materialmente, eles devem ser acoplados ao sujeito móvel/descartável que atenda às necessidades materiais mínimas da sociedade e, ao mesmo tempo, garanta a possibilidade de vida doméstica isolada, mas em rede.
O sujeito domesticado/conectado é terrivelmente isolado da vida social, mas está intimamente ligado a uma economia cada vez mais conectada. É tão dócil quanto produtivo, integrado à sociedade, mas apenas na medida em que é separado dela. Trabalhadores de escritório, professores universitários, programadores, repórteres e profissionais da cultura, entre outros, recebem ordens para ficar em casa, mas permanecer conectados. As plataformas de streaming lutam para lidar com novos volumes de tráfego enquanto aumentam seus lucros, e todos são submetidos a treinamentos online para continuar colaborando e trabalhando em uma rede doméstica. O isolamento da casa é correspondente ao seu grau de conectividade. O sujeito domesticado/conectado pode evitar o risco de estar próximo e em promiscuidade com outros corpos possivelmente infectados, basta participar da reunião de trabalho no Zoom, consumir cultura na Netflix, pedir comida em aplicativos, se distrair no Facebook e comprar mais álcool-gel para as mãos na Amazon. Enquanto Trump anuncia que, se você tiver algum sintoma de coronavírus, tudo o que você precisa fazer é visitar um site criado pelo Google para agendar um teste remoto. À medida que a mobilidade dos corpos se restringe aos espaços domésticos, os teclados de computador dançam com atividade cinética frenética para reduzir contágios e manter a economia cambaleante nas ondas da turbulenta volatilidade dos mercados.
Emergindo para sintonizar com o sujeito domesticado/conectado, o sujeito móvel/descartável se desloca em velocidades crescentes e com riscos cada vez maiores para que ninguém mais precise fazer o mesmo. A interrupção da vida pública é invadida pela aceleração febril do sujeito móvel/descartável conectado e ao serviço das mesmas redes de informáticas que conectam os indivíduos domesticados/conectados às economias planetárias. Comandados por aplicativos para smartphones que emitem um fluxo incansável de notificações e alertas que os guiam de um provedor a outro pelas ruas quase desertas, os trabalhadores migrantes em bicicletas elétricas nunca foram tão procurados, transportando caixas de comida de restaurantes, sacolas de compras de supermercado e miscelâneas de farmácias, adegas e depósito de bebidas para trabalhadores assalariados domesticados/conectados que, confinados em casa, produzem uma enxurrada de pedidos online. Os motoristas de caminhão da Amazon percorrem bairros a toda velocidade, sempre além de sua capacidade e seguindo itinerários quase impossíveis de realizar, carregando caixas cheias de fraldas, baterias, lenços desinfetantes, laptops e máscaras. Pedimos aos motoristas de ambulância que nunca parem de dirigir, enquanto os trabalhadores da empresa de limpeza urbana carregam sacos de lixo cada vez mais cheios de resíduos domésticos. Espera-se que todos esses trabalhadores sejam mais ágeis para acompanhar a demanda crescente, expondo-se ao contágio cada vez maior e a outras formas de risco associados à essa aceleração. A contenção maciça e o isolamento do sujeito domesticado/conectado têm como outro lado da moeda o sujeito móvel/descartável que constitui o sistema de distribuição de uma nova economia de pandêmica.
Tanto o sujeito domesticado/conectado que trabalha em casa quanto o móvel/descartável correndo pelas ruas estão unidos não apenas pelos imensos dispositivos interconectados da economia digital, mas também pelas vastas ondas de negligência social que agora afetam toda a vida. Quando corpos de todos os tipos podem ser conectados como nós isolados em uma rede, permanecendo profundamente dependentes e subordinados às mudanças nas estruturas de comando com demanda algorítmica, o valor dos corpos individuais se aproxima de zero, porque os nós em uma rede podem ser trocados e substituídos por um algoritmo como outro qualquer. A gestão cibernética e a distribuição de mão-de-obra e bens permitem à economia atrair apenas a população necessária, abandonando efetivamente o desperdício restante. Quando um indivíduo domesticado/conectado adoece com o coronavírus e não pode mais trabalhar, os ocupantes ainda saudáveis de outra casa estão prontos para fazer login e assumir o seu lugar, como quando um entregador quebra a perna depois de cair da bicicleta e outro é solicitado para correr à porta. O sistema econômico emergente não poupa tempo pensando no que pode acontecer a todos aqueles que, por qualquer motivo, não conseguem permanecer conectados e trabalhando.
A desterritorialização maciça do trabalho, alimentada pela resposta pandêmica, permitiu a implementação de uma nova organização do trabalho, agora flexível, que liberta o capitalismo e o estado capitalista de qualquer responsabilidade pela vida em geral enquanto a economia sobreviver. Fornecer testes adequados para o vírus, garantir acesso universal à saúde e o alívio monetário às populações recém-empobrecidas são ações entendidas como desnecessárias desde que todos estejam dispostos a fazer login e responder à chamada incessante das redes do capitalismo. O gerenciamento da população tornou-se sinônimo de gerenciamento de resíduos, excessos e lixo, e somente aqueles com capacidade de acelerar terão o sustento e o apoio dos sistemas de logística e infraestrutura mais amplos de uma nova economia cibernética pós-pandêmica que, na realidade, é apenas uma forma mais extrema e refinada de capitalismo, no qual todos já estávamos acostumados a viver.
Neste momento, é crucial insistir que a reterritorialização de nossa sociedade e a reinicialização corona em andamento não sejam inevitáveis nem invencíveis. No interlúdio da pandemia há uma oportunidade de recusar a imposição de ordens digitalizadas e conexões coercitivas, defendendo e cultivando diferentes tipos de relações e interdependência humanas. Temos a oportunidade de considerar como devemos reiniciar a sociedade de maneira diferente, em vez de permitir que a lógica do capital faça isso sem pensar em nós. Provavelmente estaremos nessas circunstâncias de pandemia por muitos meses, portanto, usemos esse tempo para nos desconectar das pressões, exigências e demandas da economia e nos reconectemos com os outros de maneiras que não nos ajustemos ou submetamos aos novos tipos de aceleração e abandono que já são estão sendo implementados ao nosso redor.
A pandemia do coronavírus marca a primeira vez na história que ocorre uma ruptura planetária com essa escala em uma sociedade em rede como a nossa, mas isso não significa que devemos permitir que a lógica das redes capitalistas reorganize nossos modos de vida. Já podemos ver redes de ajuda mútua sendo estabelecidas, novas formas de trabalho digital sendo subvertidas, estruturas prisionais sendo desmanteladas e lógicas de mercado sendo rejeitadas. Devemos pensar nisso como apenas um começo. Quão livre, selvagem e corajosamente nos permitiremos sonhar agora? Que novas formas de viver e nos relacionar ousaremos colocar em prática? Como podemos superar a paranóia doméstica que faz as pessoas correrem aos supermercados, o medo que nos afasta dos vizinhos e a depressão que se segue ao ler as notícias, enquanto nos mantemos seguros e cuidando uns dos outros, à medida que o vírus se espalha? Como podemos começar a agir com compaixão e coletivamente em relação ao outro, na luta para chegar ao outro lado dessa pandemia em um mundo que não seja estruturado pelo abandono, isolamento e aceleração, mas pela dignidade e valor inextinguíveis da própria vida? Cada um de nós deve começar não apenas a articular, mas a viver as respostas para essas perguntas nas várias situações em que nos encontramos vivendo.