ALDIR MONUMENTAL

Dimitri BR
4 min readMay 5, 2020

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a primeira pessoa de quem me lembrei, ao saber da morte de aldir blanc, foi joão cândido :: joão cândido, o marinheiro que, no início do século XX, liderou a revolta da chibata — como ficou conhecida a incrível ação em que os marujos — em sua maioria negros — tomaram controle dos mais novos e poderosos navios da marinha brasileira :: o motivo? protestar contra suas más condições de trabalho, e exigir o fim dos castigos físicos aos marinheiros — a escravidão havia sido abolida; o chicote, não.

joão cândido lê o manifesto da revolta da chibata [fonte: wikipedia]

lembrei de joão cândido ao saber de aldir, porque foi por aldir que aprendi sobre joão: no samba (enredo?) ‘mestre-sala dos mares’, aldir e outro joão, o bosco, exaltam o assim denominado almirante negro :: mas na gravação que mais ouvi, elis regina não canta ‘almirante’, e sim, ‘navegante negro’; por quê? :: isso, quem me ensinou — sempre a partir da música — foi minha mãe: ‘mestre-sala dos mares’ foi lançada durante a ditadura militar do brasil, e a censura proibiu que se homenageasse abertamente um líder rebelde; para permitir a gravação, exigiu que se apagasse o altivo ‘almirante’, substituído pelo genérico ‘navegante’ :: a chibata havia acabado, mas o autoritarismo, não.

mas não lembrei apenas de joão cândido, nem da canção: lembrei de um momento específico que vivi com ela :: foi ali no recente e distante 2019, no calor da festa de aniversário da priscila :: a casa da priscila tinha uma sala bem grande, e um hall bem pequeno que dava para os quartos e o banheiro; pois foi ali nesse espacinho na porta do banheiro que o samba deu de se instalar (o samba do mijadouro, batizou o serginho da flack) :: a festa já corria solta há horas quando a grande ana costa sacou o violão e começou a mandar um samba atrás do outro; inicialmente éramos só nós e uns poucos convivas desviados da sala — mas logo, atraída pelo samba, a festa inteira se apinhava naquele espaço, cantando, batendo palmas, batucando onde dava :: foi então que ana invocou os bambas: aldir, joão bosco e joão cândido — o mestre-sala dos mares.

glóoooria a todas as lutas inglórias! explode, quase no final, a canção, habilmente construída num crescendo que nesse ponto atinge proporções épicas — para então subir ainda mais um pouco, para o louvor final ao herói: saaaaalve o almirante negro! cantei — claro que canto almirante, sou filho de minha mãe -, cantei com toda força e emoção, e todo mundo cantou e se emocionou junto :: quer conhecesse ou não a história e a letra da canção.

como muito se emocionou a laurel — amiga que a laura tinha acabado de fazer, em um retiro de meditação (você imagine aí o que é sair de um retiro de silêncio e cair no pagode da priscila) :: estrangeira e recém-chegada ao rio, laurel não conhecia o mestre-sala dos mares, não fazia ideia da história e não podia compreender a letra; mas, impressionada pela força da música, me perguntou sobre o que ela cantava :: tentei então, ali no meio do samba, dar à laurel algum contexto e improvisar uma tradução da letra do aldir.

acontece que, à medida que fui traduzindo os versos tão familiares, fui novamente sendo tomado por sua força e beleza — sendo mais uma vez carregado pela montanha-russa criada por aldir e bosco :: ao nosso redor, ana cantava outro samba, o pessoal vibrava, o batuque comia solto — e tudo era invocação, o mestre-sala dos mares se materializando naquele cantinho de apartamento à beira-mar :: até que, ao traduzir o verso final “que tem por monumento as pedras pisadas do cais”, estava eu mesmo com os olhos marejados, e laurel com seus olhos claros, estrangeiros, arregalados, parecia conhecer a história do brasil inteira.

foi tudo isso — todas essas histórias, todas essas pessoas — que me veio à mente num átimo de segundo ao ler sobre a morte de aldir — com o poder de condensação, de síntese e transporte que só a música tem :: as pedras do cais — as pedras pisadas do cais — como monumento ao herói negro que o autoritarismo tentou apagar da história — mas que nããão esquecemos jamais: puta que pariu, aldir blanc, que imagem linda, perfeita — pensei.

mas no instante seguinte, caro aldir, discordei de você: o maior monumento ao joão cândido, quem fez foram você e o joão bosco: é essa canção, esse samba-enredo, samba-hino, que toda vez que a gente canta, a gente lembra, a gente sente, e ele vive um pouco outra vez — e agora, você também.

salve, aldir! monumento no brasil é canção.

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