BELA BADERNA

PREFÁCIO BRASILEIRO

Escola de Ativismo
7 min readDec 21, 2016

Por Marília Moschkovich

Os jornalhões anunciam a barbárie: estátuas de santas foram quebradas. Um crucifixo foi enfiado, literalmente, no cú. A notícia se espalhou e, como quase sempre, a grande maioria das pessoas comprou a versão de quem concentra os meios de comunicação em suas mãos desde sempre no Brasil. Segundo eles, não passava de um ato bárbaro, vândalo, desrespeitoso, uma afronta à moral e aos bons costumes.

O contexto real, porém, era outro. Em meio a uma manifestação pelos direitos das mulheres, enquanto se realizava a Jornada Mundial da Juventude católica, estátuas foram quebradas em uma performance artística. A estátua de gesso e o crucifixo de madeira, comprados em lojinhas de presentes pela bagatela de vinte reais (se tanto) não passavam ali de objetos cênicos.

Goste-se ou não, as encenações, como aquela, servem como estratégias de luta. A performance artística pode chocar, fazer rir, chorar, ou dar ânsia de vômito, é fato (querer se enforcar depois de assistir a um filme de Lars Von Trier: quem nunca?). Quando engajada em uma causa contra-hegemônica, ainda por cima, a performance se torna polêmica e provoca debate. Porque incomoda. Mas vamos lá, me digam: que causa contra-hegemônica não incomoda?

O “contra-hegemônica” da causa implica em mudar, de fato e de raiz, o status quo. Status quo é o estado das coisas, as coisas como estão — em nosso caso, extremamente desiguais em diversos aspectos (classe, raça, gênero, e por aí vamos). O poder é concentrado, em nossa sociedade, nas mãos de poucas instituições, empresas e grupos de pessoas. Essas, em geral, são as maiores defensoras do tal status quo, pois se beneficiam da forma como a sociedade está organizada. Não apenas se beneficiam, mas instituíram, ao longo dos séculos, com seu poder, diversas ferramentas que colaboram para que as coisas estejam como estão, e assim continuem estando. A religião é uma dessas ferramentas (alô, Althusser(r)!), o sistema educacional é outra (bom dia, Bourdieu(r)!), a família nuclear (n) é outra (bem-vinda, Butler(r)!).

Como fazem parte da estrutura de nossa sociedade, dada a longevidade do projeto de poder que vem sendo executado, acaba sendo um tanto complicado pensarmos em simplesmente recusar essas esferas da vida social (educação, religião, família), ou proibir que existam. Nós, mesmo quando críticos a elas, existimos também a partir delas. É aí que o crucifixo entra no cú: a melhor saída é subvertê-las.

A subversão causa desconforto, polêmica, desagrado, raiva, reações agressivas, ameaças de morte, detenção em cadeias. Causa também, por outro lado, comoção, resposta, debate, questionamento, dúvida, mobilização, sensibilidade. Tudo depende de como é feita. Como, então, subverter essas instituições, grupos e espaços?

Utilizar os meios que geraram um problema para resolvê-lo é uma grande babaquice, disse o subversivo vândalo revolucionário Albert Einstein (não exatamente com essas palavras, claro, já que Einstein jamais aprendeu português). Isso deve se aplicar às estratégias de luta, também. Quer dizer: como chamar a atenção para uma causa, ou conseguir provocar um debate, ou conquistar determinado público, fazendo exatamente aquilo que se espera que façamos? Como mudar o jogo com ferramentas e estratégias que já foram incorporadas a ele? Não me parece uma ideia muito razoável. É aqui, caras e caros, que entra essa bela pilha de papel (ou de não-papel, claro) que vocês têm nas mãos.

Colecionando estratégias subvertidas de subversão do status quo, nasceu “Beautiful Trouble”.

Com contribuições de diversos autores com diferentes experiências de ativismo, em diferentes partes do mundo, o livro é um manual de estratégias subversivas (porque subvertidas) de atuação política. Este guia se divide em três partes: táticas, princípios e teorias que orientam a ação. O leitor encontra, na complexidade da abordagem escolhida pelos organizadores, uma base firme para planejar atos de ativismo dos mais diversos tipos.

Um dos pontos mais brilhantes do livro é justamente não se limitar às instruções e sugestões de intervenções como qualquer outro manual poderia fazer. Oferecer aos ativistas um arcabouço rico de história e teoria faz com que os leitores sejam capazes de refletir e criar novas formas de intervenção por si mesmos. “Beautiful Trouble” é mesmo uma caixa de ferramentas.

O belo pósfácio da edição brasileira traz alguns bons exemplos da nossa realidade sobre como as estratégias de luta se articulam em diferentes causas e contextos. Por isso prefiro aqui me ater a esse aspecto que torna o livro funcional, útil, que são os princípios e teorias selecionados pelos organizadores para explicar o que sustenta a eficácia das táticas. Quer dizer: por que certas intervenções funcionam?

Os próprios autores e editores, em primeiríssimo lugar, sabem e destacam que não existe tática que seja universalmente eficaz. Somos seres de história, no final das contas (certo, meu velho Marx?). A própria curadoria do livro é, segundo eles mesmos, limitada à posição social, cultural, política, linguística, etc. ocupada pelas dezenas de colaboradores e organizações envolvidas na produção do livro. Se a obra se limitasse à primeira parte, que tem um tom mais instrucional, esse seria um grande problema. As seções de princípios e teorias, porém, garantem que toda tática possa ser adaptada, reinventada e melhorada para funcionar em certos contextos. Os princípios e teorias são, ainda, a matéria-prima para o desenvolvimento de táticas totalmente novas.

Os princípios dão um direcionamento geral ao grupos de ativistas. Com bons conselhos que vão desde atitudes pessoais individuais até a própria maneira de organizar o grupo, é um capítulo que deveria ser lido, relido e revisitado sempre, mesmo pelo mais experiente dos ativistas. Ghandi, Malcolm X e tantos outros de nossos ídolos ficariam honrados em ler esse trecho de “Bautiful Trouble”. Os princípios incluem dicas como “coloque seu alvo num dilema” (oi, Fernando Haddad), “mantenha uma disciplina de não-violência” (“sem violência!”), “faça o trabalho da mídia por ela” (NINJA), “desafie o patriarcado ao se organizar” (Praça Rosa contra Marco Feliciano) e, claro, “se mantenha na pauta” (SIM, é por R$0,20). Depois de vivermos o mês de junho de 2013, no Brasil, podemos listar inúmeros outros exemplos de como esses e os demais conselhos da seção “Princípios” são eficazes.

Apenas com a seção de princípios e os exemplos do capítulo de táticas, porém, correríamos o grande risco de falharmos ao tirar certas táticas e princípios de seu contexto. Conhecer a história da tática, associada aos princípios que a orientam, é a chave para não partirmos do zero. É a melhor maneira de não reinventarmos a roda. Partimos do que já existe para criarmos o novo. É preciso, então, saber o que já existe, como existe e por que existe. Aí entra o capítulo de teorias.

As teorias são, pessoalmente, meu xodó neste volume que você carrega. É sério. Não deixe a teoria de lado. Não ignore a sabedoria dos que vieram antes. Não é só um detalhe. Quanto mais soubermos sobre o que nos precede, mais sabemos sobre nós mesmos (#materialismohistóricodialético #amo #chuchu #kiridinhu). É justamente esse conhecimento que nos dá condição de caminhar, avançando, rumo a uma sociedade que ainda não existe. É esse conhecimento que nos possibilita revolucionar as maneiras de pensar, agir e nos organizarmos enquanto seres humanos.

O capítulo cobre praticamente todos os aspectos fundamentais da experiência de sermos militantes, de sermos ativistas, de nos organizarmos, de agirmos e intervirmos na realidade política. De maneira inteligente, nos faz refletir sobre as contradições que isso traz, uma vez que fomos socializados na sociedade que queremos transformar, com suas regras, com sua cultura, etc. A seção de teorias é preciosa pois nos localiza numa tradição e numa linhagem de milhares de grupos e milhões de indivíduos que estiveram exatamente onde estamos (#famíliaativismo #S2). Nós somos a mudança.

Ser a mudança, porém, não é nada fácil. As contradições são muitas, as frustrações são ainda maiores. É preciso resistir e as teorias descritas em “Beautiful Trouble” são uma espécie de âncora em que podemos nos assegurar quando tudo parecer não valer a pena.

Isso significa que o livro está organizado numa ordem, mas poderia ser lido ao contrário. Começaríamos em refletirmos sobre o que somos, histórica e socialmente, enquanto ativistas. Passaríamos então a pensar nossas ações, formas de nos organizarmos, estratégias e planejamento de ações. Ao final nos engajaríamos em intervenções concretas dos mais diversos tipos. Só que a vida não é assim, linear, planejada. Não nos tornamos ativistas até começarmos a agir. Não podemos refletir sobre princípios sem estarmos já organizados e já participando de ações. Até que tudo isso aconteça, também não nos identificamos como ativistas, muito menos seríamos capazes de pensar sobre essa condição de um ponto de vista pessoal, interno, auto-reflexivo. Novamente, “Beautiful Trouble” acerta na mosca ao começar com as táticas, passar aos princípios e chegar nas teorias. Bingo!

Por fim, faço aqui um apelo para que você, leitor ou leitora, não pare o livro na metade. Siga em frente. Termine. Leia tudo. Ou escolha uma tática e em seguida leia os princípios e teorias indicados. Só não se deixe levar apenas pela beleza e pelo charme das táticas, que são verdadeiramente cativantes. Entenda os princípios. Pense na teoria. Leia acompanhado por sua organização, por amigos, por colegas. Faça um grupo de estudos e se debruce sobre o livro. Discuta pela internet. Troque. A reflexão é inerente à condição militante.

Se tomarmos esses pequenos cuidados, todas e todos podemos nos beneficiar enormemente deste livro. Com intervenções cênicas, desafios quase impossíveis cumpridos, resistência ao autoritarismo, recusa em reproduzir opressões dentro do espaço de militância e ativismo, novas formas de organização baseadas na confiança mútua, no respeito, no protagonismo líder de todo e cada um: a revolução poderá não ser televisionada, mas certamente será um espetáculo.

Boa leitura!

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Escola de Ativismo

A Escola de Ativismo tem a missão de fortalecer o ativismo no Brasil por meio de processos de aprendizagem. Site: http://ativismo.org.br