Quebrando os Limites entre Nintendo e Square

Fabio Santana
20 min readNov 19, 2015

Ou “Por que Cloud Strife em Smash Bros. é mais significativo do que parece”

No último Nintendo Direct, no dia 12 de novembro, aconteceu isto:

Quando, no finalzinho da transmissão, apareceu aquela câmera vagando no espaço por entre estrelas e as primeiras notas da “Opening ~ Bombing Mission” tocaram, todos os fãs de Final Fantasy VII imediatamente ficaram atônitos. Quando a câmera desceu e o logo de Super Smash Bros. for Nintendo 3DS / Wii U apareceu, todos sacaram que vinha mais uma colaboração entre o jogo competitivo da Nintendo com um personagem emblemático de um título third party — no caso, Cloud Strife de Final Fantasy VII, da Square Enix. O suspense foi substituído por euforia e êxtase (e como é saboroso curtir essa sensação quando a notícia não vaza).

Quem se recorda do contexto histórico entre Nintendo e Square, e do que representa Final Fantasy VII nas relações entre as duas empresas, porém, provavelmente continuou com um sentimento de incredulidade durante toda a duração do trailer que revelou a desejada, mas improvável notícia. Para quem não se lembra completamente, ou não viveu aqueles tempos de verdadeira Guerra dos Consoles™, é preciso voltar no tempo…

Melhores Amigas

Era uma vez uma pequena empresa japonesa de videogames que criava títulos de vanguarda para diversos computadores, sem resultados de venda expressivos. O destino da Square, esse estúdio de jovens talentosos e sem muito rumo, só começou a mudar quando, no finalzinho de 1985, ela se tornou a 18ª empresa licenciada pela Nintendo a publicar jogos para o ascendente Famicom. E os alicerces firmes para um futuro próspero se completariam dois anos mais tarde, com o lançamento de Final Fantasy, um RPG que não teria nada de final…

A relação entre Square e Nintendo foi se fortalecendo com os anos, conforme os inovadores e avançados jogos da agora nada pequena third party iam vendendo mais e mais. Tornou-se uma relação simbiótica. O monopólio da Nintendo dava à Square uma base instalada ampla que garantia um público fiel às suas marcas em consolidação (o próprio Final Fantasy, SaGa, Seiken Densetsu) ao mesmo tempo em que permitia a ela o luxo de arriscar projetos menos ortodoxos (Hanjuku Hero, Live-a-Live, Front Mission). Para a Nintendo, essa linha de produção de sucessos garantia um fluxo constante de compradores para suas plataformas, sem contar a fonte de renda da venda dos jogos, proveniente dos royalties, e da própria fabricação dos cartuchos, que era controlada pela Nintendo. Assim, por exemplo, uma miríade de títulos da Square justificava a compra do add-on Famicom Disk System. Assim também, a própria Nintendo decidiu traduzir e publicar o primeiro Final Fantasy nos EUA (três anos depois do lançamento no Japão), fortalecendo o nome da Square no Ocidente enquanto proporcionava ao público americano um jogo mais complexo que os típicos títulos de ação e arcade de então (como fizera um ano antes localizando Dragon Warrior, publicado originalmente no Japão como Dragon Quest pela Enix, rival da Square).

Anos 1990 adentro, a relação de interdependência e confiança entre Square e Nintendo era tão forte que possibilitou um projeto até então inimaginável: Super Mario RPG, de 1996, um jogo com a marca mais forte da Nintendo sob responsabilidade de uma empresa externa, a Square. É verdade que, antes, a Rare já tinha assumido o desenvolvimento de Donkey Kong Country, lançado em 1994, mas, naquele caso, a Nintendo abraçou a tecnologia da empresa britânica com tanta força que adquiriu 49% de suas ações e fez dela uma subsidiária. A Nintendo controlava a Rare. No caso da Square, era realmente uma empresa autônoma e forasteira que desenvolvia, em parceria, um projeto-chave envolvendo o personagem mais importante da Nintendo — mais tarde, a prática seria mais comum, e entre as parcerias mais notórias pode-se citar a Hudson fazendo Mario Party, a Sega com F-Zero GX/AX, a Treasure com Wario World e a Namco com Star Fox: Assault e Donkey Konga. Mas, como dito, Nintendo e Square conheciam bem a expertise uma da outra, e o resultado com Super Mario RPG foi mais um lançamento bem-sucedido para todos — pelo menos nas aparências (adiante, mais).

O sucesso da parceria chegou a um nível de notoriedade que, por aqueles meados dos anos 1990, já havia um conceito de que o sistema que tivesse Final Fantasy (e Dragon Quest) ganharia a guerra dos consoles. Conceito esse que era verdadeiro até ali, para felicidade da Nintendo, mas que seria colocado à prova em novas circunstâncias…

Uma Nova Geração

Ao fim de 1995, a Nintendo havia anunciado o nome definitivo de seu próximo console, Nintendo 64 (após anos referindo-se ao sistema como Project Reality e Ultra 64), e sua data de lançamento para 1996 (bem depois da previsão inicial de final de 1995). Mas a geração que sucedia o Super NES e Mega Drive já tinha começado há bastante tempo, com um lançamento precoce do Jaguar e 3DO em 1993, com a chegada da nova investida da veterana Sega com o Saturn em 1994 no Japão e com a estreia de um novo concorrente, o PlayStation da Sony, também em 1994 no Japão. O início da nova corrida em terras nipônicas favoreceu a tradição: ao final de 1994, a Sega havia vendido 500 mil unidades de seu Saturn, enquanto o novato PlayStation vendeu respeitáveis 300 mil unidades. Porém, chegado 1995, uma estratégia de lançamento ocidental apatetada por parte da Sega (poucos jogos, US$ 100 a mais que o console concorrente e uma chegada precoce ao mercado) colocou seu novo sistema em desvantagem em relação ao PlayStation. Resultado: ao final de 1995, o Saturn tinha vendido 400 mil unidades nos EUA, enquanto o console da Sony estava presente em 800 mil lares americanos.

A Nintendo, enquanto isso, dava sobrevida ao Super NES e seguia sua própria agenda, e embora a empresa tivesse perdido uma aliada importante — a Namco, que debandou para o lado da Sony, desenvolvendo as impressionantes conversões de arcade Ridge Racer e Tekken para PlayStation enquanto não tinha nem um único projeto para o Nintendo 64 —, o público estava confiante de que a parceira histórica Square estava criando o próximo Final Fantasy para o console de 64-bit. Tudo por causa de uma notícia distorcida…

O Final Fantasy VII que Não Foi

Em agosto de 1995, rolou em Los Angeles o evento SIGGRAPH ’95. A Square, incerta sobre como seria o futuro de sua principal série, criou uma demo interativa em computação gráfica para exibir no evento. Usando personagens de Final Fantasy VI construídos com polígonos, o experimento envolvia fazer movimentos com o mouse para desferir magias enquanto a câmera dinâmica enfatizava os belos efeitos para a época, tudo rodando numa workstation Onyx da Silicon Graphics — mesma empresa que, era fato notório, estava fornecendo a tecnologia para os gráficos do console de 64-bit da Nintendo. Esse projeto exibido na SIGGRAPH, porém, não era nada além de uma demo de tecnologia batizada de Final Fantasy VI: The Interactive CG Game, e nunca foi considerado internamente como um protótipo de um jogo ou como teste para algum console específico.

A revista americana GameFan, porém, em sua edição de outubro de 1995, publicou telas daquela demo da SIGGRAPH como sendo de Final Fantasy VII (nomeado com todas as letras) para o Ultra 64 da Nintendo, chegando a citar uma fonte interna da Square e até uma data de lançamento: dezembro de 1996. Era totalmente verossímil, e foi no que toda uma geração de leitores ocidentais passou a acreditar (eu incluso), até a popularização da internet e o acesso ao trabalho de arqueólogos da história dos jogos eletrônicos.

A verdade, no entanto, não poderia estar mais distante da notícia…

Edição de outubro de 1995 da revista GameFan distorcendo a natureza verdadeira da demo de tecnologia da Square baseada em Final Fantasy VI
Página da revista japonesa Family Computer, de 6 de outubro de 1995: nome “Final Fantasy VI: The Interactive CG Game” está claramente indicado, bem como o caráter de mera demonstração de tecnologia do projeto

Nintendo Sem Cloudinho, Sou Eu Assim Sem Você

No dia 12 de janeiro de 1996, a Square surpreendeu o mundo ao anunciar oficialmente Final Fantasy VII, um jogo exclusivo para PlayStation previsto para dezembro daquele ano (acabou saindo um mês depois). As primeiras telas mostravam a ambientação futurista e os gráficos poligonais, quebrando com tradições, e os primeiros personagens revelados: Claud, Bullet/Barett e Ealis — traduções não-oficiais válidas para os nomes em japonês de Cloud, Barret e Aerith (ou Aeris, na primeira tradução oficial do jogo). Para armazenar toda essa exuberância, o jogo usaria não um, mas dois CDs! (A versão final ocupava três CDs.)

Revelação de Final Fantasy VII na revista americana Electronic Gaming Monthly, edição de abril de 1996

E, oficialmente, a razão dada pela Square para lançar o jogo no PlayStation, e não no Nintendo 64, foi justamente a mídia de armazenamento: à época, um cartucho de N64 tinha um limite previsto de 128 Mbits (16 MBytes), enquanto um único CD comporta 650 MBytes. Porém, havia razões econômicas para a escolha da Square: cartuchos com chips para gravar custavam aproximadamente US$ 35, enquanto CDs virgens custavam cerca de US$ 6. Basta comparar o preço final dos últimos títulos Final Fantasy para o consumidor japonês no lançamento:

  • Final Fantasy IV com 8 Mbits custava ¥ 8.800 em julho de 1991
  • Final Fantasy V com 16 Mbits custava ¥ 9.800 em dezembro de 1992
  • Final Fantasy VI com 24 Mbits custava ¥ 11.400 em abril de 1994
  • Final Fantasy VII em 3 CDs custava ¥ 6.800 em janeiro de 1997

Sabe quando um jogo da franquia foi lançado no patamar de preço que a Square alcançou com Final Fantasy VII? Em dezembro de 1988, quase uma década antes, quando o cartuchinho de 2 Mbits de Final Fantasy II do Famicom chegou ao mercado custando ¥ 6.500.

Mas as razões para a debandada da Square para o lado da Sony vão bem além do que foi dito oficialmente. Há relatos de que o desenvolvimento de Super Mario RPG não foi exatamente tranquilo. Aparentemente, Square e Nintendo divergiram sobre aspectos do jogo, período de lançamento e distribuição de lucros. Após o lançamento do projeto conjunto (já com FFVII anunciado para PS1), o relacionamento entre as duas empresas só esfriou, e a Square correu para lançar seus últimos títulos de Super Famicom em desenvolvimento (Treasure of the Rudras e Treasure Hunter G) no estado em que estivessem.

“A Atari falhou porque dava liberdade demais às desenvolvedoras terceiras e porque o mercado foi invadido por jogos ruins”
—Hiroshi Yamauchi, presidente da Nintendo

E tem mais. A verdade é que a Nintendo era um parceiro sufocante e que mantinha relacionamentos abusivos. Tal era o estilo mão de ferro de Hiroshi Yamauchi, bisneto do fundador Fusajiro Yamauchi e presidente da companhia desde 1949, tendo guiado a Nintendo de uma manufatura de cartas a fabricante de brinquedos e, por fim, a superpotência dos videogames. Atento aos erros da indústria que levaram ao crash de 1983 nos EUA, Yamauchi estabeleceu regras rígidas para quem quisesse desenvolver e publicar jogos para seu Famicom. Em 1986, o presidente declarou que “a Atari falhou porque dava liberdade demais às desenvolvedoras terceiras e porque o mercado foi invadido por jogos ruins”. Para evitar o mesmo destino, as regras eram claras:

  • A própria Nintendo controlava a fabricação dos cartuchos
  • A Nintendo determinava as quantidades mínimas (e máximas) para a fabricação dos cartuchos de um jogo
  • A fabricação demorava meses até a entrega
  • As produtoras precisavam pagar integralmente pelo pedido com antecedência, meses antes da venda e, consequentemente, da obtenção de receita proveniente do produto
  • Não havia garantias de que as quantidades pedidas seriam entregues, já que a Nintendo poderia diminuir arbitrariamente o pedido caso o lançamento coincidisse com o período de um de seus próprios jogos
  • Um erro de projeção poderia significar ficar com estoque parado, ou ter que esperar mais outros meses até receber outra tiragem para atender demanda (tempo em que a demanda já poderia ter sido atendida por algum outro título)
  • A Nintendo estipulava um limite de 5 jogos lançados por ano por produtora
  • Os royalties cobrados pela Nintendo por unidade vendida de jogo não eram nada baixos
  • Os jogos precisavam ser exclusivos por no mínimo 2 anos
  • A própria Nintendo controlava também o canal, determinando quais redes do varejo recebiam quais títulos e em que quantidades
  • Por fim, a Nintendo também tinha poder de veto sobre o conteúdo dos jogos, censurando profanação, nudez, símbolos religiosos e quaisquer outros elementos que julgasse ofensivos para seu público

É questionável se essa política draconiana garantiu a qualidade que o “Official Nintendo Seal of Quality” fazia supor, mas quem quisesse ter acesso à gigantesca base instalada do Famicom/NES tinha que se submeter a esses termos, que se estenderam pela geração Super Famicom/Super NES, em que o monopólio da Nintendo continuou sem muitos sobressaltos —esse domínio foi só temporariamente ameaçado nos EUA pela Sega, com o Genesis (Mega Drive por aqui); na Europa, o 16-bit da Sega terminou vitorioso, por pouco.

Nos preparativos para a geração seguinte, a Nintendo ainda dava as cartas para quem quisesse desenvolver jogos para o Nintendo 64. A Sega, habituada a operar quase que sozinha (embora seu portfólio de third parties tenha melhorado bastante nos anos finais do Genesis/Mega Drive), ainda basicamente confiava na perícia de seus próprios estúdios para criar os principais jogos de Saturn. Enquanto isso, a Sony, estreante na indústria, cortejava todas as produtoras para garantir um bom acervo de títulos para seu PlayStation. Sabedor dos termos da Nintendo, graças à infrutífera parceria para produzir um add-on de CD-ROM para o Super NES, então batizado de Play Station, Ken Kutaragi, presidente da Sony Computer Entertainment, criou uma proposta de valor irrecusável para as produtoras terceiras com seu novo PlayStation, incluindo:

  • CD-ROM como mídia, com custo mais baixo de produção e maior espaço de armazenamento
  • Maior liberdade e flexibilidade para a produtora determinar seu conteúdo, fazer os pedidos de fabricação de mídia e distribuir seus produtos
  • Tempo de produção de CDs de menos de duas semanas entre o pedido e a entrega
  • Uma arquitetura simplificada, fácil de programar, com CPU e GPU integradas no mesmo chip e memória unificada
  • Kit de desenvolvimento completo e melhor suporte aos desenvolvedores
  • Royalties mais baixos por unidade de jogo vendida

Quando a Square lançou seu primeiro jogo para PlayStation com Tobal Nº 1 em agosto de 1996 no Japão (incluindo uma demo jogável de Final Fantasy VII), outras grandes produtoras que antes haviam sido parceiras exclusivas da Nintendo, como Namco, Konami, Bandai, Capcom e Atlus, já tinham lançado jogos para PS1. A diferença é que, no caso da Square, uma vez que ela passou para o lado da Sony, deixou completamente de desenvolver jogos para sistemas da Nintendo — seu último jogo para Super Famicom foi Treasure Hunter G, e no Super NES foi mesmo Super Mario RPG, ambos em maio de 1996. Depois disso, apenas desavenças e farpas entre as duas empresas.

Já Parou, Square?

Quando Final Fantasy VII foi lançado no mercado americano, em setembro de 1997, uma publicidade de página dupla veiculada em revistas de games dizia, em destaque: “Alguém dê aos caras que fazem jogos em cartuchos uma venda e um cigarro”, uma sentença de morte à Nintendo e seu 64-bit. Detalhe: a parceria entre Square e Sony já era tão forte que Final Fantasy VII, bem como todos os jogos lançados pela Square para PlayStation até o final de 1997 foram publicados no Ocidente pela própria Sony.

Propaganda de revista de Final Fantasy VII nos EUA: “O que talvez seja o maior jogo já feito está disponível só no PlayStation. Que bom, se ele fosse lançado em cartucho, custaria uns US$ 1.200”

Publicamente, a Square criticava o Nintendo 64. Nos bastidores, executivos da Square falavam mal da Nintendo para outras empresas, o que, confessou mais tarde o depois presidente da Square Naoshi Suzuki, convenceu a Enix a se unir também à Sony.

Sem Final Fantasy e Dragon Quest, um ressentido Hiroshi Yamauchi declarou, em 1999, que “Jogadores de RPGs são pessoas depressivas que gostam de ficar sozinhas em seus quartos escuros jogando jogos lentos”.

Do Céu à Lama

No PlayStation, a Square diversificou seu leque de jogos e se aventurou por outros gêneros (como o excelente jogo de nave Einhänder ou o combate com lâminas Bushido Blade), mas Final Fantasy continuou sendo seu carro-chefe: embora o episódio da era Nintendo mais vendido tivesse sido Final Fantasy VI, com 3,48 milhões de unidades acumuladas no mundo todo, sendo 2,55 milhões dessas só no Japão, a estreia no PlayStation com Final Fantasy VII rendeu 10 milhões de unidades mundialmente, das quais 3,28 milhões no Japão — sendo o primeiro da série a vender mais no Ocidente que em sua terra natal, popularizando o jogo do lado de cá do globo. Quando Dragon Quest VII, da rival Enix, finalmente foi lançado no PS1, já no ano 2000, quebrou recordes ao vender 4,06 milhões no Japão. Infelizmente para a Nintendo, o console que tinha Final Fantasy (e Dragon Quest) realmente ganhava a guerra da geração: até março de 2000, o PlayStation tinha 72,92 milhões de unidades vendidas no mundo todo, contra 29,57 milhões do Nintendo 64.

Embora os jogos subsequentes da Square não tenham vendido tanto quanto o recordista Final Fantasy VII, tudo estava bem com a empresa. Até que aconteceu Final Fantasy: The Spirits Within: o filme em CG levou quatro anos para ficar pronto e custou US$ 137 milhões à empresa (o orçamento originalmente previsto era de US$ 70 milhões). Lançado em julho de 2001 nos cinemas, o filme arrecadou apenas US$ 85 milhões nas bilheterias do mundo todo, colocando a Square em uma situação delicada.

Para salvar suas finanças, a Square apelou para a sua benfeitora Sony, o que resultou na dona do PlayStation injetando capital e comprando 18,6% das ações da Square em outubro de 2001. O negócio parecia solidificar a parceria entre as duas empresas, mas a Sony ainda não era sócia majoritária, e o então presidente da Square Hisashi Suzuki declarou: “Nós não temos necessariamente nenhum compromisso com a Sony por causa desta negociação”.

Com o Rabo entre as Pernas

Na realidade, a Square já vinha tentando se reaproximar da Nintendo, de olho no sucesso do novo portátil Game Boy Advance, lançado em março daquele ano de 2001 no Japão — um segmento em que a Sony não atuava e ainda nem tinha planos para isso. Na época, a Square já desenvolvia jogos para o portátil concorrente WonderSwan Color, da Bandai, inclusive lançando remakes de FFI e FFII (um remake de FFIII estava previsto, mas foi cancelado; mais tarde, uma versão de FFIV seria lançada para WSC). Porém, o console da Bandai era pouco expressivo frente ao monopólio da Nintendo no ramo de portáteis com a linha Game Boy.

“Gostaríamos muito de fazer jogos para Game Boy Advance, e faremos o que for preciso para isso”
—Hisashi Suzuki, presidente da Square

Já em janeiro de 2001, numa reunião de acionistas, Hisashi Suzuki afirmou que “gostaria muito de fazer jogos para Game Boy Advance”, e que “faria o que fosse preciso para isso”. Dias depois, o líder da Nintendo, Hiroshi Yamauchi, certamente ainda ressentido, rebateu: “A Square pode dizer o que quiser, mas não há nenhum plano para um contrato, e as chances de que isso aconteça no futuro são mínimas”. Aparentemente, a Nintendo queria que a Square também oferecesse suporte para seu GameCube, revelado em sua totalidade na última Shoshinkai, em agosto de 2000, e previsto inicialmente para julho de 2001 no Japão (acabou saindo em setembro de 2001 por lá, e em novembro nos EUA). Com a gigante dos RPGs demonstrando interesse apenas no portátil GBA, a Nintendo não iria abrir suas portas — houve boatos de que a Square se candidatou formalmente a ser uma desenvolvedora para o GBA, mas teve o pedido negado.

Em agosto de 2001, Minoru Arakawa, presidente da Nintendo of America, declarou: “Ainda não é hora da Square Soft”. Em outubro (já depois do fracasso de Spirits Within e da compra das ações da Square pela Sony), Hisashi Suzuki da Square voltou a falar publicamente sobre o assunto, admitindo que “nosso verdadeiro inimigo foi o nosso orgulho” (quando criticou o Nintendo 64 e convenceu a Enix a passar para o lado da Sony também).

“Nosso verdadeiro inimigo foi o nosso orgulho” — Hisashi Suzuki, presidente da Square

A situação só mudou mesmo depois que Suzuki, desafeto de Hiroshi Yamauchi, foi substituído na presidência da Square por Yoichi Wada, em dezembro de 2001. Um mês depois, o novo presidente declarou que “O GameCube é um sistema mais amigável para se desenvolver software do que o PlayStation 2. A Square está buscando um acordo com a Nintendo”.

Reportagem do editor Pablo Miyazawa na revista Nintendo World 39, edição de novembro de 2001, cobrindo os acontecimentos recentes que sinalizavam a possibilidade de uma reaproximação entre Square e Nintendo

O Bom Filho à Casa Torna

Então, na edição de 9 de março de 2002, numa manhã de sábado, o jornal Nihon Keizai Shimbun deu a manchete: “Square volta a produzir jogos para a Nintendo”. Após quase sete anos de uma separação traumática e de desavenças, Square e Nintendo faziam as pazes. O acordo previa a criação de jogos da série Final Fantasy para Game Boy Advance e GameCube, de maneira que os usuários das duas plataformas pudessem jogar juntos.

Dias depois, mais detalhes sobre o reatamento: a Square estava fundando uma nova empresa para o desenvolvimento dos jogos para a Nintendo, chamada Game Designers Studio. Na realidade, era só uma empresa de fachada, com um único funcionário, para poder criar jogos para GameCube sem afetar o relacionamento com a Sony — que aprovou a decisão, desde que não afetasse a produção de jogos para PS2. A Square detinha 49% das ações do Game Designers Studio, enquanto 51% ficavam com Akitoshi Kawazu, designer e executivo da Square desde 1985 e chefe da divisão Square Product Development Division 2, responsável principalmente pela série SaGa. Com a manobra, a produção ainda pôde se beneficiar do Fund Q da Nintendo, uma verba dedicada a financiar projetos para GameCube, uma iniciativa de Hiroshi Yamauchi, composta por US$ 160 milhões do próprio bolso do presidente.

Reportagem minha na revista Nintendo World 44, edição de abril de 2002, relatando a volta da Square à Nintendo e especulando quais seriam os primeiros jogos da re-união

O primeiro produto da Square para um sistema Nintendo após a volta foi Chocobo Land, lançado no dia 13 de dezembro de 2002 no Japão para Game Boy Advance (àquela altura, a Square já tinha lançado 11 jogos para PS2 em território nipônico, incluindo Final Fantasy X e sua versão International, Final Fantasy XI e Kingdom Hearts). O primeiro Final Fantasy após o retorno foi Final Fantasy Tactics Advance para GBA em fevereiro de 2003 no Japão, e o primeiro jogo da série para um console doméstico da Nintendo após um hiato de mais de 9 anos (FFVI para Super Famicom fora lançado em abril de 1994 no Japão) foi o exótico Final Fantasy Crystal Chronicles, já em agosto de 2003, publicado pela própria Nintendo e incluindo conectividade com o GBA, como estipulava o acordo do novo matrimônio.

Porém, Crystal Chronicles já chegou numa nova era: no dia 11 de novembro de 2002, Square e Enix anunciaram que, após meses de negociação, fecharam acordo de fusão das duas rivais históricas, passando a funcionar como uma única entidade, Square Enix, a partir do início do ano fiscal seguinte, em 1º de abril de 2003. Após a fusão, a Sony perdeu voz no conselho de acionistas, passando a deter 8,62% das ações da Square Enix, em comparação aos 18,6% que detinha quando era apenas a Square sozinha, o que tornava a nova companhia mais autônoma para definir a distribuição do seu portfólio por plataforma. Mesmo assim, Crystal Chronicles foi o único jogo da empresa desenvolvido para o GameCube, embora a produção para Game Boy Advance tenha seguido bastante profícua, como era a intenção original da Square ao buscar uma reaproximação com a Nintendo.

A Square, agora unida à Enix, estava livre para voltar a lançar Final Fantasy (e todas as suas outras franquias) para os consoles Nintendo. O que nos leva de volta ao argumento original deste texto…

Carga Emocional

Mesmo que Square e Nintendo tenham d̶a̶d̶o̶ ̶o̶ ̶m̶i̶n̶d̶i̶n̶h̶o entrado em acordo novamente, a parte do passado que melhor simboliza o período de rixa — Final Fantasy VII — meio que se tornou anátema. É bem verdade que Cloud já apareceu em sistemas Nintendo de lá pra cá (em Kingdom Hearts: Chain of Memories do GBA e Kingdom Hearts Re:coded do DS, em ambos Theatrhythm do 3DS e em Final Fantasy Explorers, também do 3DS — todos portáteis), mas apenas em jogos desenvolvidos e publicados pela própria Square Enix, sem participação ativa da Nintendo. Como no saudoso Super Mario RPG, a Square Enix já voltou até mesmo a desenvolver jogos para a Nintendo com seu personagem mais famoso (Mario Hoops 3-on-3 do DS e Mario Sports Mix são criações da gigante dos RPGs). Mas, formalmente, os legados permaneciam claramente separados.

Os Final Fantasies da era PS1 hoje estão disponíveis como PSone Classics na PlayStation Store, para se jogar no PS3/PSP/PS Vita, mas nunca foram relançados oficialmente numa plataforma concorrente da Sony (apenas em sistemas “neutros”, como PC e, mais recentemente, dispositivos móveis). Quando Final Fantasy X foi remasterizado recentemente, só ganhou versões para PS3, PS Vita e PS4. Cloud Strife como conteúdo especial de LittleBigPlanet foi encarado como algo natural. Final Fantasy VII é, primeiramente, uma propriedade da Square (Enix), claro, mas, no consciente coletivo, é também um patrimônio da história do PlayStation. É um dos ícones mais fortes de uma era com CDs de fundo preto, Memory Cards, videogame de ponta-cabeça e polígonos gouraud shaded. E, para quem acompanhou a guerra dos consoles em meados dos anos 1990, é também símbolo de uma mudança de liderança que causou desavenças num nível corporativo. Por isso, quando a participação de Cloud em Super Smash Bros. for Nintendo 3DS / Wii U foi revelada no último Nintendo Direct, minha reação foi esta:

Não que eu desaprovasse o crossover, longe disso. O nível de carinho e atenção a detalhes que Masahiro Sakurai coloca em cada personagem da série Smash Bros. torna a inclusão de Cloud em Smash 4 o sonho molhado de qualquer fã de Final Fantasy VII. O portador da Buster Sword tem seus limit breaks como ataques direcionais, possui um traje alternativo de Advent Children (note que sua espada muda para a Fusion Swords) e até mesmo parece entrar em um modo de batalha aprimorado com o nome de Limit Break. O cenário de Midgar traz de volta algumas das criaturas de invocação de FFVII (Odin, Leviathan, Ramuh, Ifrit e Bahamut ZERO aparecem no vídeo), provavelmente como ameaças de estágio. O próprio trailer faz alusões claras a cenas-chave do jogo: Cloud caído na igreja e acordado por Aerith (aqui, Zelda), a encarada final contra Sephiroth (Ike) e a punição com Omnislash (certamente o Final Smash de Cloud aqui) e até mesmo a referência ao enjoo de Cloud. Sem dúvida, é uma versão de luta do personagem melhor do que a de Ehrgeiz e possivelmente tão ou mais legal que a de Dissidia — e, permita-me ressaltar, essa presença no jogo da Nintendo torna ainda mais ultrajante para os jogadores de PlayStation o fato de nenhum personagem de Final Fantasy ter participado de PlayStation All-Stars: Battle Royale, o “Smash Bros. da Sony”.

“OK, mas Solid Snake também não é tradicionalmente um personagem ligado à Nintendo e foi o primeiro lutador convidado de Super Smash Bros. Brawl”, alguém bem lembra. Sim, mas não nos esqueçamos de Twin Snakes, o remake de Metal Gear Solid para GameCube, distribuído pela própria Nintendo. (E nem preciso falar que Sonic hoje é bróderzão do Mario e veio no pacote quando a Sega se tornou uma third party, certo?) O fato é que Final Fantasy VII esteve no centro de um triângulo amoroso entre Nintendo, Square e Sony, e a presença de Cloud em Smash 4 mostra que a Nintendo, a parte “traída” na história, está pronta não apenas para esquecer de verdade as brigas do passado, como também para aceitar de bom grado o presente que foi dado à “outra”.

Perspectivas para o Futuro

O que isso significa? Bom, por ora só significa mesmo que Cloud estará em Smash 4. Também é seguro apostar que teremos um amiibo do personagem no futuro. Porém, fica a dúvida se a Nintendo, que está tão empenhada em agradar os fãs de JRPG, não está derrubando as barreiras para trazer o Final Fantasy VII original para uma de suas plataformas (a adaptação para Steam possibilitou o lançamento para smart devices e chega ao PS4 em breve). Ou, com o misterioso NX no horizonte, faz pensar se a Square Enix já não estaria cogitando lançar o remake de Final Fantasy VII no novo console da Nintendo também (lembrando que o trailer revelado na última E3 termina com “Jogue primeiro no PlayStation 4”).

Seja como for, um passado de brigas foi esquecido com o anúncio do último Nintendo Direct, e isso é sempre algo bom para todos.

P.S.: escrevi tudo isso, mas só queria dizer que o que importa mesmo é que agora há esperanças de Geno em Smash 4. :P

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Fabio Santana

Profissional formado no ramo editorial de videogames. Editor. Crítico. Teórico. Ensaísta. Colunista. Não-ista. Dou pilão sem pular.