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Desfecho

Flagrare
5 min readJun 5, 2018

Eu nunca entendi muito bem o significado de “desfecho”. Eu sabia que, de certa forma, era o mesmo que “final”, mas ainda assim eu tinha impressão que era algo diferente.

A primeira vez que li Harry Potter e as Relíquias da Morte — 11 anos atrás, o que parece ser inacreditável parando bem pra pensar — eu não entendi muito bem o que a Rowling quis dizer com “eu abro no fecho”: a famosa frase deixada no pomo de ouro ganhado pelo Harry. A expressão, pra mim, nunca fez muito sentido. Inicialmente achei que pudesse ser por culpa de algum erro de tradução ou coisa assim. Depois, vendo a frase original, fiquei ainda mais confuso e nunca pude dizer com convicção de que havia absorvido todas as nuances da simbologia da expressão. Pra dizer a verdade, até o momento desse post eu ainda tenho muitas dúvidas e algumas poucas respostas e teorias que, em sua maioria, apenas arranham a superfície do poder da sentença.

Mas mesmo não entendendo, ao longo dos anos carreguei essa frase comigo com um peso inacreditável. Volta e meia a frase voltava, às vezes sem motivo. Inegavelmente a inscrição no pomo deixou sua própria marca cravada em mim.

Nos últimos meses eu tenho tido uma inclinação quase inconsciente e involuntária em terminar de assistir séries que comecei e não terminei ou de retomar livros que iniciei a leitura e larguei pela metade. O primeiro sinal de um grito de socorro que precisa de um desfecho, tentando remediar com doses homeopáticas um problema muito maior. Halopático. Enraizado.

Ler esses livros é uma tortura: minha cabeça não foca, não concentra, não se prende. Minha atenção fica difusa e dispersa a todo momento. As séries? Assisto fazendo outras coisas, só pelo dever de terminar. E com a mesma intensidade que sinto esse dever, sinto o desinteresse e o destacamento dessas coisas.

Mas a vontade de fechar pendências permanece. É como se cada uma dessas partes inacabadas me acorrentasse em algum ponto no chão, me impedindo de seguir em frente. É por isso que, ao longo desse ano, fiz o máximo pra identificar novos e antigos medos — como o de altura. Fiz o possível e o impossível para enfrenta-los — as vezes fraquejando e sendo derrotado no meio do caminho. Tudo em busca de um encerramento. Mas qual?

Talvez um pouco disso se deva às incontáveis histórias que não saíram do rascunho ou os intermináveis projetos que jamais saíram do estágio de concepção. Ainda há aqueles que, quando saíram, me sufocaram, entregando-me a profundas crises de ansiedade.

Mas por que tantas coisas inacabadas? Por que tantas pendências? Por que eu não consigo seguir em frente?

Você já se sentiu preso em um ciclo interminável? Como se sua vida não caminhasse, não saísse do lugar? Como se os fantasmas das suas escolhas te assombrassem todos os dias com as mesmas consequências? Como se seu “eu” do passado tivesse construído uma armadilha perfeita pro seu eu do futuro, e agora você não sabe sair dela?

Há alguns dias, resolvi ler o conto de um colega escritor que veio a ser escolhido em uma seletiva em que eu não fui. Essa seletiva aconteceu há mais de dois anos, mas só agora percebi o tamanho do peso que isso exercia em mim todos esses anos. Eu me lembrava com todos os detalhes de todas as etapas da seletiva, todos os detalhes e critérios de escolha. Ele, que foi escolhido, não. Eu nunca tive coragem pra enfrentar o trabalho dele, porque sentia que isso invalidaria o meu. Senti que lendo eu perceberia um abismo imenso entre eu e ele, que eu jamais seria capaz de preencher. Uma coisa tão simplória, tão irrelevante, mas que por dois anos ficou guardada na minha mente, me corroendo aos poucos. Tudo porque eu não dei fim. Tudo por que, até aquele momento, eu não tinha dado um desfecho.

Foi então que eu me dei conta da quantidade enorme de pequenas histórias sem fim que eu enterrei ao longo da minha vida.

Eu encontrei alívio enfrentando situações que, outrora, eu consideraria irrelevantes, soterradas no meio de um abismo emocional de grandes feridas abertas e latejantes. Foi só escolhendo esses pequenos pontos de pressão que eu percebi o quanto eles incomodavam. Lidando com eles, um a um.

Foi só desenterrando os pequenos ossos que eu pude perceber o tamanho do esqueleto que ainda se encontrava na cova.

Que metáfora fúnebre eu fui escolher, né?

Mais adequada impossível.

Eu nunca visitei o túmulo do meu pai. Desde que ele morreu, eu jamais me permiti olhar pra trás. Desde 2009 eu venho correndo de um inimigo invisível, um fantasma, cujas sombras podem me alcançar em qualquer momento. Eu nunca me dei direito ao luto. Eu não chorei quando ele faleceu. Eu não fui ver o corpo no caixão no velório. Naquele momento, tantos anos atrás, eu me distanciei da minha vida. Eu agi como se tudo tivesse sob controle, mas não estava. Eu abri uma fissura tão profunda na minha alma que tudo que pude fazer em seguida foi enterrar tudo de ruim que aconteceu na minha vida, antes que eu pudesse superar, em cima, numa tentativa desesperada de sepultar, de uma vez, aquele sentimento de perda.

Mas ele voltou. Ele sempre voltou. A perda sempre me cobrou uma reação. Perda, é so o que eu sinto, toda vez que uma coisa da errado. E as coisas tem dado errado numa sequência assustadora e repetitiva de vezes. E eu nunca percebi, nunca conectei as coisas. Tudo o que eu fiz nos últimos anos foi fugir. Fugir da perda. Mas ela sempre vinha, de outras formas, pra me lembrar daquele sentimento que eu enterrei com tanta força. Mesmo agora, escrevendo esse texto, eu tenho dificuldade de chorar. Uma parte de mim resiste a se entregar.

Não pode ser real.

Eu não quero que seja. Mas foi.

E eu preciso enfrentar essa dor. Tudo o que eu tenho feito é tentar tapar pequenos orifícios de uma represa, enquanto uma fissura enorme está se formando no meio e eu ignoro, na esperança de que ela vá sumir.

Mas ela não vai, e pode me submergir a qualquer momento. Essa sensação de incompletude. A necessidade de dar fim que não passa.

Onze anos depois eu ainda luto pra entender. “Eu abro no fecho”. Harry percebeu que o fim era a resposta.

Mesmo agora, enquanto escrevo esse texto, fico fugindo de termina-lo. Estou há quatro horas com o editor de textos aberto, indo e voltando, me distraindo e me recusando a mergulhar de cabeça no que estou escrevendo.

Então eu finalmente entendi.

Desfechos existem pra que você consiga encerrar um ciclo, e começar novamente.

Abrir, no fecho.

Des-fechar.

Originally published at flagrare.tumblr.com.

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Written by Flagrare

☉Aspirante a escritor, argonauta na @FlagrareInd, mago na @GrimoriumApp, piromaníaco na @ATAR365 e Mestre de Masmorra no @historiativa. Multipotencialista. 🔥

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