O Inevitável Feminicídio Dois Apartamentos Ao Lado

Aquele que a culpa também é nossa.

Gabriel D. Lourenço
7 min readOct 28, 2017

A peculiaridade da morte de Selma Rapachinski Ferreira não se dá apenas por sua condição de mulher, mas pelo fato de seus dois dias de cárcere privado se darem num condomínio majoritariamente universitário — e ninguém perceber.

#1. Vizinha

Um amigo e eu só planejamos dar uma passada rápida em casa, deixar as coisas rapidinho e pular pra Hercílio Luz. O plano era uma dessas aventuras que a gente quer se meter, sentir o frio na espinha, correr um ou dois riscos, se arrepender momentaneamente e, depois que nada de ruim aconteceu, rir e botar a culpa da inconsequência no Jornalismo.

Mal descemos as escadas e o apartamento 707 se abriu. Loira, cabelos curtos, olhos verdes, vestido folgadinho. Um braço apoiado na porta, na outra mão pendia uma garrafa de vinho.

“Será que vocês podiam me ajudar com essa garrafa?”, nos interrompeu.

A rolha arrebentou no meio do gargalo. Sozinha, com faca, era pior pra tirar. No meu apartamento, tentamos com faca, garfo, chave de fenda. Mas estava difícil.

“Vinho vagabundo é uma desgraça,” ela riu. “Deixa pra lá, meninos. Não quero incomodar vocês, não.”

Insistimos. Levou meia hora até dar certo. O resto da rolha entrou com tudo, por insistência da chave martelada com as costas de uma concha de sopa. Quando entrou, espirrou bebida pra tudo quanto é lado. O preço da vitória era o pano que teria que passar.

“Desculpa pelo trabalho, pessoal. Não querem um gole? É merecido, hein.”

Recusamos. Eu não bebia em serviço. Meu amigo não bebe.

Agradecida, saiu, deixando no apartamento o cheiro do vinho e gotas de um roxo que escorriam pela parede. Se olhar bem pra minha cozinha, ainda dá de ver as marcas.

Foi assim, mais ou menos um mês atrás, que conheci Selma, minha vizinha recém-chegada. Um amor de pessoa.

Morta a tiros dentro de sua própria casa.

#2. O feminicídio que não querem ver

No dia 06 de outubro deste ano, o Notícias do Dia contou que Selma Rapachinski Ferreira, 32 anos, pagava as contas trabalhando de cabeleireira num salão no bairro Santa Mônica. Oferecia atendimento à domicílio no grupo do condomínio no Whatsapp. Tinha uma criança de seis anos pra criar e uma vida toda pela frente. Interrompida pelo ex-marido, Leandro Magalhães Maciel, 34 anos, motorista de Uber. Que a manteve em cárcere privado por dois dias e, uma vez vingado, se matou.

Você pode ler isso como apenas uma tragédia. Ou então, observar pela realidade que o delegado não descarta e eu tenho dificuldade de enxergar de outra forma: um feminicídio.

Feminicídio, quando a morte imediatamente ligada ao gênero feminino, foi tipificada em lei em 2015, passou a integrar o rol dos crimes hediondos — puníveis de dois a 30 anos de prisão. Aos dinossauros que argumentaram (estamos falando de você, CONJUR) que a alteração “conspira contra o equilíbrio, a equidade e a lógica do Código Penal”, faltou calma pra não falar merda. Um ano depois, a ONU emitiu diretrizes nacionais para orientação dos órgãos públicos em investigar estes casos no Brasil.

Como se, claro, estar acima da lei fosse o maior e mais absurdo exemplo de conspiração feminazi[sic] mundial. Milhares morressem pra que uma tenha o poder de usar brecha na lei pra foder com os outros. Sororidade, manas.

Mas claro, eu entendo a sisudez. Quando se trabalha com a relativização das coisas, deve ficar bem difícil entender a emergência de exigir punição maior como forma de evitar pelo medo. Como se esta não fosse da natureza do Código Penal — porque o Estado é o único autorizado a ser violento com os outros nesta sociedade civil – ser sempre assim. Vigiar, punir e viver à sombra de seus piores pensamentos. O medo da consequência.

Deve ser difícil entender quando pessoas viram números:

No primeiro semestre deste ano, segundo registros da SSP (Secretaria de Segurança Pública) de Santa Catarina, 26.213 mulheres vítimas de violência no Estado. Até chegar ao fim dessa reportagem, possivelmente uma nova vítima terá entrado para essa estatística. Nos registros por município, Florianópolis está no topo da lista da violência contra a mulher no Estado, com 1.860 casos relatados à polícia, resultando em 1.919 vítimas, sendo a maioria por crime de ameaça (797), lesão corporal (560) e estupro (86). No período, até 30 de junho, na Capital, os casos de feminicídio somaram 4 vítimas.

Via Notícias do Dia.

Mas não é difícil de entender quando, numa palestra sobre cobertura de guerras, o mesmo grupo do condomínio não pare de falar, alguém morreu, a polícia tá aqui, não saiam. O assustador medo de voltar pra casa.

Ao fim desta reportagem, o fantasma da morte dois apartamentos ao lado está sendo enterrado pela massa corrida e tinta das obras. Na memória, entanto, o trinco arrombado pela polícia, que nunca se fechava direito, continua como um amargo reflexo do que se foi, dando bom-dia, boa-tarde e boa-noite.

E ao passarmos por ele, lembra-nos: talvez poderíamos ter evitado.

#3. A morte anunciada que não escutamos

O trinco torto e o dossiê sobre feminicídio da Agência Patrícia Galvão dizem a mesma coisa, ainda que por vias diferentes:

Para além de tirar essas raízes discriminatórias da invisibilidade, uma dimensão importante para pensar o feminicídio é compreender que uma parcela considerável desses crimes poderia ser evitada — e assim apontar a responsabilidade da sociedade e, sobretudo, do Estado quando não são acionados os mecanismos de proteção às mulheres.
Como evitar Mortes Anunciadas”, dossiê sobre Feminicídio da Agência Patrícia Galvão

Selma havia se separado porque o marido a surrava. Prestou dois B.O.s à respeito. Parte da responsabilidade é, sim, do aparato estatal que não atendeu aos apelos e indícios. Proteção para ela. A ele, reorientação em visitas a grupos reflexivos de autores de violência contra a mulher.

Nenhum dos dois aconteceu.

Mas se o Estado não fez sua parte, tampouco fizemos a nossa. A diferença é que um deles só se importa depois que alguém morreu.

O que o relatório não diz – e o trinco torto faz questão de lembrar – é que a condição da morte de Selma era inevitável. Estamos falando de um feminicídio a metros de distância da UFSC, o iluminado núcleo progressista de Florianópolis. O maior e mais violento imbecil dos arredores do campus, ainda que um total degenerado, teria tomado cuidado diante de condomínios de segurança máxima e rondas policiais constantes. Então, por que, apesar de tudo, uma mulher fica em cárcere privado por dois dias bem debaixo da porra dos nossos narizes? Como nenhuma alma desgraçada reparou?

Simples. Porque não damos a mínima pros outros.

#4. A apatia universitária nossa de cada dia

Queria usar a desculpa de que minha janela é o único lugar ventilado de verdade na grande muralha que é o condomínio. Mas a verdade é que, durante a noite, eu gosto de olhar. De saber que a vizinha do bloco da frente só consegue fumar depois das 11h da noite porque é quando o bebê já está no segundo sono. Que o careca que sempre me cumprimenta à distância tem dificuldade pra dormir porque não apaga a luz do apartamento antes das 1h da manhã e sem sentar na cadeira de plástico e devorar dois cigarros. E que no andar lá de cima, a única luz acesa é porque o vizinho fica até mais tarde jogando — e já deixou alguns palavrões escapar.

Admito, sem vergonha nenhuma, sou um voyeur social. Numa sociedade universitária e transitória, se importar com o que acontece ao outro ao lado tem outro nome. O creepy. O estranho. O escroto em potencial.

O modus operandi comum nestas horas é a ignorância. E tem seu porquê: do êxodo rural ao inchaço metropolitano, o ser humano nunca teve de dividir espaços comuns com centenas de desconhecidos.

Este comportamento foi apontado já em 1910, pelo sociólogo Georg Simmel. Informação demais, acredita-se, seria neuroticamente impossível de computar neste cotidiano urbano. Daí nossa atenção seletiva. Então, adotamos a postura blasé ante a realidade. Pra não encararmos uns aos outros na fila do pão, na condução, nas calçadas e no mundão, preferimos encarar o nada.

Esta, a perspectiva normal, também é a mesma que não fez nada pra evitar a morte de Selma. Porque em ambientes tão efêmeros quanto o entorno universitário, normal é cagar pra vida do estranho ao lado.

E tudo bem.

#5. Indiscreta, mas não o suficiente

Naquela mesma noite, voltando pra casa, cruzei caminho com Selma no corredor. Era noite, hora de jantar. Vinha ela acompanhado de mais um.

“Desculpa pela mancha na parede,” ela comentou. “Deve ter ficado um cheiro horrível na cozinha.”

“Não tem problema,” respondi. “Já vou cozinhar o jantar, de qualquer forma.”

“Opa, vizinhos que cozinham!”, riu o cara ao lado dela. Tempos depois, ouvi falar morar ali no bloco também. Um relacionamento que, por questões de exposição, acho melhor deixar de fora aqui.

“Quem sabe a gente não cozinha alguma coisa e faz um jantar qualquer dia desses?”

Sorri e respondi a ela que seria uma boa ideia. Hoje lamento não ter levado à sério.

O filósofo e sociólogo Walter Benjamin, em suas leituras sobre Baudelaire, lamenta que o ser humano teve de abrir mão de muito de sua humanidade pra viver em metrópole. E o flaneur é aquele que ainda mantém vívido interesse nas ruas, no outro e devora cada detalhe com os olhos.

Talvez, se da prática do flaneur pudéssemos transpôr um mínimo de curiosidade pela vida do outro, presencialmente, a situação seria diferente. Grupos de WhatsApp não substituem por inteiro os vizinhos que tem um mínimo de noção sobre o outro. E num ecossistema social tão transitório e que não se conhece os outros, talvez o revolucionário gesto de conhecer o outro à sua frente possa recuperar o que perdemos.

Antes que tragédias piores como essa aconteçam.

Tenho dificuldades de ficar olhando pra rua à noite desde então. Estranho pensar que, com um mínimo de intimidade, talvez esse crime pudesse ter sido evitado de alguma forma.

É duro reconhecer que não adianta muito a Janela ser Indiscreta se a morte acontece ao lado.

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Gabriel D. Lourenço

Jornalista. Escritor. Co-fundador do NEURA Magazine e Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre. Encrenqueiro profissional.