NOSTALGIA CULINÁRIA

Uma reflexão sobre a comida de rua brasileira quando você mora em outro país

Irlandês Voador
4 min readDec 29, 2017

Uma das saudades mais comuns de se sentir quando você está morando longe do seu país de origem é a saudade da comida. Eu sinto bastante. Mas não é porque aqui não existe certo ingrediente ou o tempero é mais ou menos picante do que aí, nem nada disso. É mais de certos tipos de culinária bem específicos. Você estaria certo em dizer que deve ser a comida da minha mãe e especialmente da minha vó, que tem aquele gostinho único que se você cresceu com mestre cucas em casa também conhece bem. E mesmo que você tente cozinhar a mesma coisa seguindo os mesmos passos, ou que vá a algum restaurante, o gosto nunca será igual porque elas possuem um know-how milenar e secreto que só é liberado após você virar mãe e depois vó. Bom, tirando essa que é uma saudade evidente e que você sente recorrentemente mesmo sem estar longe, tem uma outra que eu sinto especificamente morando aqui em Dublin. Que é a saudade do Podrão. Ou como eu chamo agora: Big Rotten.

Só falta colocar aquele sachê de ketchup de 2009 de uma marca desconhecida

O Podrão, que inclusive eu não sabia que era um termo amplamente utilizado pelo Brasil, nada mais é do que aquela deliciosa e gordurenta comida de rua. Talvez em alguns lugares do Brasil o Podrão seja um prato específico, tipo cachorro-quente=podrão. Não sei. Mas quando eu me refiro é basicamente qualquer tipo de comida de rua que seja meio questionável, igualmente gordurosa e deliciosamente gostosa. Principalmente depois daquele rolê com a galera. Ah, você sabe do que eu tô falando.

O fato é que não existe Podrão aqui em Dublin. Acho que existir até existe, mas não é a mesma coisa. Pra começar, comida de rua aqui é caro, o que já tira parte da experiência singular que essa arte gastronômica proporciona. Além disso, é muito difícil encontrar lugares que fazem esse prato especial. No centro é praticamente impossível, pois tudo se resume a McDonald’s e Burger King. Você poderia até fingir que um Big Mac é um X-Qualquercoisa só pra não sofrer com essa nostalgia, mas a ambientação não permite. Além do preço, da falta de ̶g̶o̶r̶d̶u̶r̶a̶ sabor e de um eventual pedaço de um ingrediente extra desconhecido, falta um dos principais componentes da tradição Podronística, que é o tiozão/tiazona característico do estabelecimento.

Uma típica tia do lanche

Esses seres são únicos no folclore do Podrão e se tornam tão essenciais, ou em alguns casos até mais importantes do que a própria comida. Eles viram parte do processo, você os chama pelo nome ou eles te chamam pelo seu. Assuntos internos no seu círculo de amigos são criados a partir deles e você nunca seria capaz de imaginar elx fora do amado estabelecimento. Quase sempre eles trazem uma característica ímpar que os torna inesquecíveis ou então um apelido muito bom pra ser verdade. Quando você vai lá com seus amigos, você tem certeza que aquele é um cantinho que você pode chamar de seu.

Na minha caça por um novo cantinho aqui em Dublin, estou tendo que me render aos turcos. Acho que algumas das lanchonetes que eles têm espalhadas por aqui é o que mais se aproxima das opções que eu tinha no Brasil. Mesmo assim o sabor não chega nem perto, muito menos o carisma dos personagens. O que acaba resumindo o Podrão deles a apenas um lanche de procedência duvidosa qualquer e não um dos pilares da alta gastronomia.

E se for pra arriscar a minha saúde alimentar é melhor que seja com alguém que pelo menos eu vou olhar e recordar com carinho, invés de raiva.

Convenhamos que ao comer um Podrão você aceita os riscos que ele pode causar. É como se fosse um contrato mental silencioso entre você e o seu fornecedor que aquilo ali pode fazer você não dormir muito bem nessa noite, ou até perder um dia de trabalho, mas vai valer a pena por aqueles breves instantes em que você saboreia aquele doce néctar de banha.

Até desses riscos eu sinto falta. Quanto mais folclórico o lugar, maior a nostalgia. Ah! como tenho saudade do gosto daquele pastel regado a óleo em que você podia enxergar a tia dentro da cozinha rodeada por “paredes” feitas de bambu e cimento chapiscado com uma cobertura de lona, escorada numa banqueta com uma perna erguida toda enfaixada por conta da trombose e com o buço engraxado num mix de suor e gordura, fritando aquela massa divina e assobiando um ritmo inexistente…

Talvez esse seria um ramo interessante para se investir aqui na Irlanda. Que tal?

--

--