Quando eu sou o único negro nos retiros

Gil Santanna
4 min readNov 8, 2018

Em meados dos anos 2000, um tio meu — marido da minha tia, branco e italiano — resolveu me ensinar a meditar e contar toda a história do Sidartha Gautama para mim. Na época eu tinha 10 anos de idade e lembro que na primeira vez que sentei (cheio de vergonha), cruzei as pernas em posição de lotus, fechei os olhos e não conseguia me concentrar pois a única coisa que estava na minha mente era "será que estão me olhando?", "o que será que está acontecendo lá fora?".

Com o tempo eu aprendi a perceber minha respiração, comecei a aprender a identificar emoções no meu corpo e aos poucos essa se tornou minha principal ferramenta contra o bullying que eu sofria na escola por ser feio, negro, magro e nerd. Quando eu começava a sentir muito medo e raiva, ia para o banheiro e meditava, pois era o único local em que eu conseguia estar sozinho pelo menos por algum tempo — quem é da periferia e tem irmãos, geralmente não sabe o que é ter quarto individual e em alguns momentos nem quarto tinha, era a sala pra dormir mesmo.

Guru Jetsun Kusho

Aos 12 anos então, meu tio me levou para uma iniciação budista em Amitayus com a Guru Jetsun Kusho. Se eu bem me lembro, a cerimônia foi em Ipanema e eu era o único negro no local. A minha tia é loira com o cabelo alisado (naturalmente é crespo) e eu lembro que uma moça elegante perguntou a ela: "que legal da sua parte trazer o filho daquela moça que trabalha na sua casa para conhecer o budismo!".

A cerimônia teve início e em certo momento, a guru pedia um pedaço de cabelo para que ela nos "abençoasse", no entanto eu só cortava o cabelo com maquina 1 para não ficar com "aparência de mendigo", segundo minha família.

A meditação se tornou meu segredo, pois falar isso nas escolas que estudei em Olaria parecia "viagem de gente da zona sul espiritualizada". Com o tempo, a meditação me ajudou a entender minhas emoções, ser mais sociável e lidar com todas as dificuldades que passei ao longo do meu caminho de estudante, como passar 6 meses sem luz em casa, andar 3h de ida e 3h de volta todo dia para a faculdade (não existia RioCard Universitário na época), passar fome todo mês e chegar na faculdade e lidar com pessoas ricas e brancas reclamando que a faculdade estava matando a vida social delas. Uma respiração por vez me ajudava a seguir o caminho.

Eu (Gil) e o pfr. Kabat-Zin, que criou o protocolo de 8 Semanas de Mindfulness

Em 2014 eu me tornei instrutor de meditação mindfulness em Londres e na minha turma com 23 alunos, eu era o único negro. Estava prestes a compartilhar esta habilidade que tanto me ajudou e me ajuda com o mundo. Voltando ao Brasil, voltei a frequentar meus retiros de Vipassana (minha fonte de aprendizado sobre mindfulness) e pasmem: De 20 homens, haviam em média de 2–3 negros por turma. Comecei a oferecer cursos de mindfulness no Rio de Janeiro e em outros Estados do Brasil e advinha como era meu público? Acertou quem disse que o número de negros não passava de 3 por turma.

Ache um negro meditando nessa foto

O curso é para aprender ferramentas e estratégias para lidar com o estresse, dificuldades e ansiedade. Será que negros não sofrem disso? ABSOLUTAMENTE NÃO É ISSO!

Acontece que em nosso país racista, quando nós negros precisamos de refúgio, acabamos na prisão, trabalho duro e morte. Quando brancos precisam de um refúgio, eles acabam na reabilitação ou em meditações nas montanhas.

Tirando o vipassana que é um retiro baseado em doações e você pode fazer mesmo sem ter dinheiro (existe até sistemas de caronas para te ajudar a chegar no local), retiros de meditação e yoga são extremamente caros e elitistas!

É muito fácil falar de compaixão, amor, paz e #govegan quando você nunca tomou tapa da polícia por estar andando na rua depois das 00h na sua comunidade. É fácil juntar um grupo e discutir sobre educação transformadora, meditação nas escolas quando você não precisa convencer amigos da sua escola a não sucumbirem ao tráfico e ver alguns deles morrerem mais tarde. Eu não estou dizendo que não podemos falar, mas antes de começar com esses discursos de amor e compaixão, você precisa reconhecer no seu discurso qual o seu lugar de fala.

Ok, sou negro e vim fazendo todos esses discursos e eu era o único negro a estar nas rodas de meditação e yoga. Sabe a razão? Eu sem tomar consciência, ignorei o fato de ser negro, sofrer racismo severo e ter tido um passado muito, mas muito difícil. Eu comecei a ser aceito nos grupos da zona sul e intelectuais que frequentava, desde que não tivesse discursos sobre negritude.

CHEGA!

O discurso que grande parte dos instrutores de meditação e simpatizantes utilizam não comunica com nossa comunidade negra e periférica, simplesmente não chega. O vipassana é uma técnica tão libertadora, hoje sinto um dever em traduzir essa comunicação para meu povo. Não é só sentar e meditar, muitas vezes não conseguimos nos sentar e meditar enquanto a bala está comendo lá fora e nossa mãe ainda não chegou em casa. Precisamos nos unir.

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