A CRISE DE IDENTIDADE

Guilherme Mendes
27 min readApr 19, 2016

Seis meses após o rompimento da barragem da Samarco, quase mil sobreviventes vivem um dilema: como se adaptar à vida urbana, sem nenhum item do passado, numa cidade tão dependente daquilo que quase os matou?

Prólogo

O Antônio Marcos, marido da Sônia, abre o Whatsapp. Fuça aqui e ali e coloca o aparelho no ouvido. Dali a pouco, salta uma voz acusando gente como ele de oportunismo. “Pessoas que não tinham um barraquinho de lona hoje têm tudo”, exclama a voz, que se identifica como de funcionário da mineradora Samarco. “Não tem ninguém desabrigado, tem casa com três, quatro banheiros. Eles estão bem!”, reafirma. A casa onde moravam era tão normal como todas as outras, com garagem, cozinha, dois quartos, lavanderia, um Uno 1996 na garagem, essas coisas. A casa onde vivem agora tem os rebocos aparentes na fachada, muros altos, cômodos onde o sol não bate. O senhorio mora no andar de cima, e a moto de Antônio se espreme com as roupas do varal.

Sônia balança a cabeça depois de ouvir aquilo mais uma vez. “Eles querem nos colocar como se fôssemos culpados de a barragem estourar”, conta. “Como disse uma pessoa lá da comunidade: ‘não fomos nós que construímos nossas casas embaixo da barragem, mas a barragem que foi construída em cima de nossas casas’.” Ela afirma que a discriminação não vem de todos, mas a mesma pele que mergulhou naquela lama agora sente o preconceito de muitos conterrâneos.

E quando saiu num jornal local (o Ponto Final) o artigo em que um morador acusava os desabrigados de extorquir a empresa, já que eles “tinha(m) uma vida com dificuldades financeiras e muito desemprego, com casas ruins e quase sem mobílias”? A Mônica se revoltou. Pegou ela própria da caneta e escreveu um artigo em resposta, ainda naquele mês de janeiro, com o título “Não somos mendigos pedintes nem desonestos”. Na descrição, se definiu como “simples moradora que amava aquele lugar e a vida que levava”. Aquele lugar que hoje não existe mais.

Quase seis meses depois do colapso da barragem da Samarco em Bento Rodrigues, distrito na zona rural de Mariana, a cerca de 100 km de Belo Horizonte, os desabrigados pela lama se veem em território hostil. Em um município movido pela mineração — e onde a Samarco sempre foi admirada por empregar uma parcela significativa dos 60 mil moradores — eles são, aos olhos de alguns, um estorvo. O áudio no celular do Antônio segue: “Eles querem dinheiro. Eles só querem encher o bolso, e o povo que se exploda”, intima o narrador, na fala de seis minutos, vazado no final de março.

Antônio Marcos vira um copo de café. Vice-presidente da associação de moradores do bairro, o pedreiro não estava em casa na hora do desastre. Ao ver a cena, do alto do morro, achou que sua família já estivesse morta — claro que não pensou no bolso. Correu até o primeiro bairro no caminho da lama e salvou quantas pessoas pôde.

I. “Um barulho que nem dá pra descrever”

Dona Sônia e dona Rosana não se conhecem, mas têm muito em comum: baixinhas, morenas e bastante resolutas e comunicativas, ambas não sabem nadar — a primeira nunca viu, e a segunda não gosta do mar; as duas moravam desde bebês nas mesmas casas, na zona rural de Minas Gerais. As duas são mães orgulhosas de seus filhos. E as duas se lembram, perfeitamente, da tarde de 5 de novembro de 2015, quando fazia um sol forte sem nuvens ali pelos lados de Mariana.

As duas também se lembram do barulho: pouco depois das quatro da tarde, Sônia Xisto dos Santos, 37, achou que um cano d’água próximo de sua casa, em Bento Rodrigues, tivesse estourado. “Eu estava no meu quarto vendo televisão, e meu filho entrou no banheiro pra tomar banho e ir pra escola”, recorda. “E, de repente, a luz acabou, mas não saí de casa pra ver”. Achou que a barulheira da rua pudesse ser uma prima escandalosa. Achou que o alarme feito por uma vizinha sobre o estouro da barragem fosse algo estranho, mas nada alarmante. Só deu tempo de pedir para o filho sair de debaixo do chuveiro.

De alguma forma, cinco minutos depois, Sônia estava agarrada ao muro que tinha cedido ao lado de sua casa, seu corpo tomado de lama, o seu filho gritando para ela não desistir, o seu sobrinho pequeno pedindo para não morrer. O Fiat Uno 1996 deixado na garagem pelo marido, que estava trabalhando em um distrito vizinho, foi carregado pela garagem e tombou na área de serviço. Todas as construções próximas iam sumindo, uma a uma, levados por uma lama tão espessa que triturava as paredes. As moradas dos parentes e dos amigos se foram, a igreja de anos e anos desabou e sumiu. Pouco depois, a onda alcançou o teto e arrancou o telhado da sua própria casa — indo parar, quase intacto, a meio quilômetro. Enquanto isso, sem suspeitar de nada, Rosana regava a sua horta.

Mariana, a cerca de 100km de Belo Horizonte, é uma cidade histórica sem o potencial turístico das vizinhas Congonhas e Ouro Preto, mas com dividendos mais fartos que suas irmãs: pode-se dizer que 90% da sua renda vem da mineração que, desde os tempos áureos em 1700, dão fama ao lugar. “Metade do ouro da Europa no século XVIII veio das minas de Mariana”, afirma, com algum orgulho, o Tenente Freitas, presidente da Câmara Municipal. O protagonismo, que nos idos de Tiradentes era o ouro, até pouco tempo era do minério de ferro. Foi este mesmo ferro que trouxe o maior desastre ambiental do país para a região.

A barragem de Fundão, pertencente à Samarco, uma mineradora controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, existia para comportar rejeitos de extração, normalmente rochas misturadas à lama. Quando a estrutura entrou em colapso, na tarde do dia 5, nenhuma sirene ou alarme foi disparado a tempo no vilarejo de Bento Rodrigues, o primeiro na rota descontrolada do vazamento, cerca de 25 km ao norte da área urbana.

Pegos de surpresa por 55 milhões de metros cúbicos de um tsunami vermelho-escuro, os cerca de 800 habitantes do distrito[1] pouco puderam salvar — quase todos ficaram apenas com a roupa do corpo. Da vila, quatro pessoas morreram, junto com outros 15 trabalhadores da Samarco e de empresas terceirizadas que trabalhavam em Fundão. Um empregado de uma empreiteira a serviço da companhia continua desaparecido. A lama avançou pelo rios Gualaxo do Norte, Carmo e Piranga, antes de desaguar no Rio Doce, principal bacia do leste mineiro, causando a mortandade de peixes e o corte no fornecimento de água em diversas cidades de Minas e do Espirito Santo. Poucos dias depois, invadiu o Atlântico.

Os estragos são, até o momento, incalculáveis. Além da turbidez da água e da falta de peixes em uma região antes rica em trutas, lambaris e tilápias, não existe consenso sobre a real composição dos rejeitos — que vazam de Fundão até hoje. Seus efeitos, calculam uns, podem durar um século. Seus estragos financeiros, presumem outros, podem passar dos cem bilhões de reais em toda a bacia.

Mas, estranhamente, uma segunda maré, tão destrutiva quanto a primeira, está chegando agora em Mariana: seis meses depois da tragédia, os desabrigados acusam alguns moradores de agirem com um certo preconceito em relação à situação enfrentada por eles. As mineradoras diminuíram drasticamente a produção na cidade. Com isso, o governo municipal prevê um ano extremamente difícil em suas arrecadações.

E os retirantes, em sua maioria, pairam entre uma esperança disfarçada e a pura melancolia. Sempre relegados a um noticiário envolvendo valores a serem pagos e indenizações, a tristeza destes homens, mulheres e crianças passa por aquilo que dinheiro nenhum pode dar jeito: toda a memória de um vilarejo de mais de 300 anos de idade foi levada em pouco mais de 10 minutos, ou foi enterrada sob uma camada de barro.

Da vida pacata na zona rural, pouco sobrou além das memórias. Antônio Marcos e Sônia Xisto viram o bairro de 300 anos ser apagado do mapa pela lama da Samarco.

Antônio Marcos de Souza, marido de Sônia, é um pedreiro pacato, calmo, que parece nunca ter perdido a calma em seus 43 anos de vida. Nem naquele dia quando vinha de um distrito vizinho e viu a onda de lama. “Foi lá de cima que eu vi a lama voltando para [o distrito vizinho de] Camargos, então resolvi voltar”, comenta. Julgando que a mulher e o filho já estivessem mortos, voltou a Camargos e fez o que pôde para salvar as pessoas que conhecia. “Eu entrei dentro de uma cozinha, de moto. O desespero é tanto que eu entrei, e a mulher ali dentro acreditou em mim, porque ela sabia da história da barragem”. Conseguiu convencer muitas pessoas a fugir antes de voltar para Bento.

Antônio é um dos vários civis que salvaram vidas durante a ruptura da barragem. Arnaldo, um morador da região, jogou-se na lama de cueca e tirou quatro pessoas do perigo. Policiais de distritos que estavam no caminho da onda não acreditavam na força ou no alcance do vazamento. Os moradores argumentam que os bombeiros, talvez pressentindo não ser possível salvar alguém, resolveram não se arriscar.

Mas a onda não parou. Ela continuou destruindo árvores e levando pontes, árvores inteiras, porcos (um morador perdeu 90 deles), vacas e galinhas. Tudo foi descendo pelos vilarejos mais afastados de Mariana e por mata fechada. Quando os telejornais da noite exibiam as primeiras imagens da destruição daquela terra, Sônia estava numa trilha, procurando abrigo e ouvindo o zumbido dos helicópteros sobre sua cabeça. Quando as primeiras equipes de reportagem começaram a chegar por ali, a lama já tinha saído de Bento, rumo ao mundo. E rumo ao quintal de dona Rosana.

Dona Rosana, que por um acaso apenas apareceu em todas as fotos de costas, recebe a todos em sua sala. Inclusive funcionários contratados pela Samarco, a quem vende dunduns (geladinhos ou sacolés) a cinquenta centavos.

A reportagem encontrou Rosana de Paula Silva em frente à sua casa, num banco de madeira, conversando com uma comadre, enquanto o marido — um senhor negro retinto e muito simpático — tirava uma soneca no canto. Na hora do almoço, eles são talvez os únicos seres humanos nas ruas de Barra Longa, a primeira cidade depois de Mariana no rastro da destruição. Quando eu a encontrei, a vi numa cena típica do interior brasileiro.

Devota de Santo Antônio (reza por ele na Igreja) e de Nossa Senhora (vai à Aparecida todo ano, as passagens de 2016 já compradas), Rosana viveu todos os seus 56 anos na comunidade do Morro Vermelho, próximo ao centro da cidade. Quando a onda desceu o rio Gualaxo do Norte e serpenteou algumas localidades de Mariana, já entrou em Barra Longa destruindo o distrito de Gesteira, no norte do município. E quando se encontrou no Rio do Carmo, a menos de dois quilômetros do centro da cidade de seis mil habitantes, já era madrugada, entre uma e quatro da manhã. Mas, assim como em Mariana, ninguém ali dormiu naquela noite.

Os rejeitos chegaram acumulando tudo o que encontrou em quase cinquenta quilômetros. Vilma Carneiro, que mantém uma venda perto da praça principal, relembra que, no meio da noite, alguns moradores já montavam vigília. “O pessoal lá de Gesteira já acreditava que a onda ia chegar na área central, então eles ligaram e pediram que tirássemos as coisas que estivessem ao nosso alcance”.

Era mais de dez da noite e todo mundo já estava na rua, de vigília, alguns crentes, outros nem tanto. O sargento de plantão tentou dissuadi-los a voltar a dormir, sob o pretexto de que nem ele mesmo tinha recebido um alerta na rede.

Mas, então, o barulho que assustou dona Sônia, lá em Bento, apareceu, segundo quase todos de Barra Longa, como “indescritível”. Edivânia de Oliveira, que mora com o marido e três filhas perto do encontro dos rios, lembra do barulho como algo “moendo tudo”. Elaine Carneiro, professora aposentada que mora numa casa centenária na rua principal, fala em algo “que não dá nem pra descrever”. Outros se arriscam: um ruído alto de quebra de bambus, de madeiras, coisas batendo. Uma moto-serra. Algo assustador.

A lama invadiu a rua à beira-rio e destruiu a principal praça dali, tradicional ponto de encontro depois da missa e local de paquera dos jovens, levando algumas das poucas árvores ali existentes; invadiu um restaurante, dezenas de imóveis, o comércio de dona Vilma, a loja de roupas e materiais esportivos de Edivânia. Na parede das casas a cem metros do rio, a marca marrom da lama aparece a um metro e meio do chão.

A maré de detritos seguiu descendo o Rio do Carmo, barrenta, pegajosa e pastosa. Em poucos minutos, dona Rosana estava tirando tudo o que podia do seu quintal — que dá direto na baixada do rio — e tentava salvar sua neta. “Ela é cadeirante, então ela ficava ‘ô pai, eu não quero morrer’”, conta. “Você via carro, caminhão, tudo descendo no meio do rio, e aquela lama só chegando e tampando tudo”. Os bambuzais que protegiam e davam sombra pro conjunto de casas onde ela morava quebraram em alguns pontos. Em outros, a lama subiu em até 2,5m — as marcas estão lá até hoje, resistentes à chuva.

Se dona Rosana tivesse ficado nos fundos de sua casa, na madrugada do dia 6, a onda de lama teria soterrado seu corpo. Mas, acordada, ajudou a salvar outros familiares — como uma neta com deficiência. “Ela é cadeirante, então ela ficava ‘ô pai, eu não quero morrer’”

Ninguém morreu em Barra Longa devido à lama. Vilma fugiu para a casa de parentes na parte alta da cidade. Edivânia se escondeu nos andares superiores da, casa com sua família, enquanto o térreo era tomado. E Rosana assistiu a tudo da rua, na parte alta, enquanto via sua horta, principal fonte de renda da casa, ser coberta por algo que ela não sabia direito o que era. Na mesma hora, Sônia e muitos outros de Bento Rodrigues chegavam à arena multiuso de Mariana, já equipada com colchões e barracas para que os primeiros afetados a chegar pudessem passar a noite. Tudo tinha acabado de mudar para sempre, mas aquilo era apenas o começo.

II. A crise de identidade

Enquanto conversávamos, a diversão da Mônica dos Santos era bater no vidro de um pequeno aquário em cima da mesa de jantar. A prima dela de dois anos viajou, deixou o aquário ali e a Mônica se afeiçoou ao mascote. A noite caía sobre Mariana e aquela moça de 30 anos, que é decidida e forte como a Diadorim do Guimarães Rosa, parecia hipnotizada pela infantil tarefa de chamar a atenção de um peixe Betta azul-marinho, desses que se compram no saquinho em feiras-livres. O Betta ia pra lá e pra cá — era tudo o que um peixe dentro de um aquário minúsculo podia fazer.

Antes acostumada às noites cheias de estrelas e aos animais dos tios, a Mônica agora volta do trabalho e, como milhões de brasileiros, se tranca no apartamento para assistir TV e mexer no celular. De uns dias pra cá, incluiu na agenda cuidar do Bento, nome dado pela menininha ao peixe.

Bento Rodrigues, onde Mônica nasceu e morou a vida toda, era um dos vilarejos mais antigos do estado. Era um pouso da chamada Estrada Real (que vai de Diamantina até o Rio de Janeiro) e foi crescendo até se tornar parte de Mariana, a primeira capital do Estado de Minas Gerais. Segundo Maria das Graças Quintão, mãe de Mônica, prova da tradição se escondia na Igreja de Nossa Senhora das Mercês, no centro do povoado: lá havia um quadro com todos os padres responsáveis pela paróquia — o primeiro teria assumido o cargo em 1717.

Ela mesma também passou todos os seu 59 anos em Bento, assim como sua família: seu pai comprou a casa centenária onde viviam de um antigo tenente; sua irmã Sandra vendia as famosas coxinhas da região em um restaurante no bairro. A igreja, a qual ela ia com frequência, era do outro lado da rua, e de lá mesmo ela ia pra sua atividade preferida — deitar-se em um banco de pedra na frente de casa. Ali ela passava seus melhores momentos. Lá embaixo, perto da baixada do rio, moravam Sônia, seu marido Antônio Marcos e o Juninho, um menino grande apesar dos 16 anos. Sônia trabalhava ali perto, e a casa de Antônio ficava a menos de cem metros. Todos se conheciam. Quase todos tinham hortas em casa. Quase todos iam para a igreja. Quase todos tinham suas memórias afetivas ligadas àquele vilarejo esparso de cerca de dez quarteirões de tamanho.

E todos viram com os próprios olhos 300 anos de história sumirem a olho nu, numa enchente passando em um dia claro sem nuvens. Tudo foi carregado. E, de uma hora pra outra, todos tinham perdido aquilo a que pertenciam.

Ele burla a segurança da Samarco sempre que pode. Jefferson quer apenas voltar ao bairro de Bento Rodrigues, onde viveu toda sua vida

Mas na Sexta-feira Santa, quando muitas famílias da cidade ficam em casa (7 em cada 10 famílias em Mariana são católicas) , Jefferson Inácio pisa fundo com seu Kadett 1990, vidro trincado e velocímetro travado em 0 km/h. A estrada que sai da rodovia, após um aterro sanitário, vira uma sequência de sinuosas curvas na estrada de terra, um subir e descer de montanhas que ele faz com muita calma, ouvindo sertanejo no DVD. Ele já fez essas curvas incontáveis vezes, de carro e de bicicleta. No fim delas, onde as montanhas viram uma baixada, ficava Bento Rodrigues, lugar onde o rapaz nasceu e viveu até não poder mais por causa do desastre.

O velho Bento não existirá mais. As ruínas continuam lá e formam uma espécie de memorial da lama, uma vila coberta por uma cepa brilhante, sem previsão de ser demolida — antes, é preciso conter a lama que ainda vaza da barragem. A empresa diz que são apenas rejeitos de ferros levados pela água da chuva — mas que já construiu três diques para frear este fluxo.

Mas engana-se quem pensa que a lama impede este montador de andaimes de visitar seu antigo distrito. Nada o impede. Para entrar no distrito-fantasma de Bento, hoje, são necessárias autorizações por escrito da Samarco e da Defesa Civil. Naquela tarde de feriado, sem avisar ninguém, o ex-morador manobrou o carro, tirou os sapatos e, quando menos esperava, enfiou os pés no rio lamacento. Com a água na altura do joelho, rumou à outra margem.

Os rejeitos ainda vazam e tornam o rio ocre, denso e turvo onde antes, afirmam os ex-moradores, era possível ver os seixos no fundo da correnteza. Do outro lado da margem, Jefferson se lembra, havia um grande matagal onde hoje nada existe além de troncos inteiros de árvores, uns troços de dez metros de tamanho. É possível encontrar os seixos nas ruas de Bento e nas salas de estar de algumas poucas casas que ficaram de pé.

Bento Rodrigues. Em sentido horário: carro enterrado sobre a lama; antigo trecho de rua; casa destruída na rua principal; detalhe de pixação na parede da Escola Municipal Bento Rodrigues; Corredor da EM Bento Rodrigues; Detalhe da escola. Tudo hoje é manchado de marrom

Ao contrário de muitos moradores, Jefferson já perdeu a conta de quantas vezes voltou a Bento. Com a calma dos mineiros, ele relembra: “dia desse mesmo nós vortamos aqui, trouxemos um cooler com cerveja e ficamos aqui sentados e conversando”. Dada a ilegalidade de nossa visita, pergunto sobre os seguranças da Samarco e aqueles homens que encaram lá em cima, a uns cem metros de distância, enquanto operam uma escavadeira no que é um dique em construção pela mineradora. Ele diz que, em minutos, algum carro a serviço da empresa deverá nos alcançar e, como sempre, pedir para que saiamos.

Questiono se ele já saiu por contra própria alguma vez e, junto com a negativa, vem a explicação: “Como é que eles podem me tirar de um lugar de onde morei a vida toda? E por que eles vem querer me tirar só agora, depois que eles quase me mataram, ?”. Uma única vez, a polícia foi chamada. A picape da empresa então estaciona, e a serenidade da conversa dá a entender que já se conhecem. De longe é possível ouvir “você sabe, é o meu trabalho. Ajuda a gente com a chefia”.

Alguns minutos depois, a picape parte, o motorista parece irritado. Era mais um dia em que ele não conseguiu convencer o Jefferson a sair do bairro.

Em sentido horário: O Fiat Uno 96 de Antônio e Sônia, cinco meses depois; uma mesa de sinuca que os saqueadores não conseguiram fazer passar pela porta; a vista desoladora de Jefferson; detalhe na rua principal; nas duas últimas, banheiro e sala de estar

Como diz aquela música do Milton: quando Bento Rodrigues foi embora, fez-se noite no viver das mulheres fortes de lá. Dona Sônia diz não ter coragem de voltar à sua antiga vizinhança pra ver como as coisas estão: forte ela é, mas não tem jeito, ela teria de chorar. Mônica e sua mãe, Maria das Graças, saíram para trabalhar em Mariana na manhã do dia 5 e só conseguiram voltar vinte dias depois, junto com os bombeiros e a equipe do programa “Profissão Repórter”. Hoje, estão alojadas em um apartamento, mas não se sentem ali. Aquela casa não é delas, e nem é delas aquele lugar. Longe de parentes e amigos, de alguma maneira estão sós e não resistem — têm muito para falar.

Todos têm problemas para dormir, e alguns ainda sonham com a tragédia. Uns ouvem o estrondo, outros sentem a lama. Mônica sonha com a avó que já morreu. “E eu tenho que fingir que estou forte para os parentes. Se eu demonstrar qualquer sentimento, não sei o que acontece”, adverte Maria.

Isto ocorre entre algumas famílias. Na maioria, prevalece a melancolia, uma sensação de uma perda irreparável de parentes que morreram, ou que agora moram longe — de alguma maneira, uma perda de si mesmo. Juninho, filho de Antônio Marcos e Sônia, já não gosta mais de ir à Igreja — uma atividade que ele fazia com afinco em Bento, onde tinha acabado de fazer a crisma.

Entre mais velhos, o baque é ainda mais pesado — houve quem não teve tempo de soltar o próprio cachorro, e uma senhora que perdeu a neta está inconsolável e sem esperança há meses — dois casos que geram preocupação de alguns sobreviventes mais jovens. O tio de Mônica era um colecionador de pássaros e hoje pouco fala, fica andando xoxo de lado. Ela conta que dias depois da tragédia, ao refazer os documentos em um cartório decorado com pássaros, teve um surto e desmaiou, tendo de ser levado ao hospital.

Os desabrigados de Bento Rodrigues acompanham uma sessão da Câmara dos vereadores de Mariana, que definira o repasse das doações recebidas pelo município

A maioria chegou a esses seis meses com os documentos refeitos e vivendo sob o teto de casas com algum padrão de conforto, mas o paraíso de antes não pode ser ressarcido. No dia em que os vereadores aprovaram o repasse de R$800 mil provenientes de doações aos desabrigados, os migrantes lotaram as galerias da minúscula Câmara, um prédio de 1711.

Na porta, um sobrevivente desabafa: “um dia desses eu vi um limoeiro lindo, cheio de limões, e pedi para a mulher me dar alguns. Lá em Bento a gente passava e pedia, eram frutas, todo mundo dava. E então a mulher pegou uma sacola e começou a guardar os limões. E depois foi embora, sem me dar nenhum”.

“Eles devem achar que somos ladrões”, arremata.

O que parecia ser um burburinho inverossímil nos primeiros dias acabou se provando uma verdade bizarra: alguns moradores da área urbana de Mariana os tratam não como ladrões, mas como oportunistas. Culpam os atingidos de se instalarem abaixo de uma barragem, de se aproveitarem da própria tragédia para ganhar dinheiro.

O áudio do funcionário da Samarco de seis minutos, espalhado pelo Whatsapp e ouvido lá no começo pelo Antônio, fala em “pessoas que não tinham um barraco de lona, e hoje tem tudo”. No início de janeiro, um artigo no jornal local, assinado por um morador, acusava-os de morar em casas “ruins e sem mobílias”. Mônica, a combativa, não aguentou: escreveu ela mesma uma resposta, no mesmo jornal, com o título “Não somos mendigos pedintes nem desonestos”.

Antônio Marcos, vice-presidente da associação dos moradores, acredita que exista mesmo uma certa ciumeira. “Tem gente que tá acomodada, tem gente que acha que tem que montar na empresa mesmo”, reflete, mas logo se compõe novamente. “Não, eles são uma minoria mesmo. Mas é que é muita gente humilde, e alguns acham que ficou rico. Mas como me disse o promotor, ‘coloca na cabeça desse pessoal que enriquecer de maneira ilícita também é crime’”.

A casa de Jefferson. As paredes estão pintadas de lama, que subiu ao teto e levou o telhado embora

Subimos, Jefferson e eu, a escada de uma casa no centro de Bento, tomada por seixos de rio, e estamos então em uma das poucas lajes que ficou em pé. A vista é total para o bairro. Ao lado, uma casa sem o teto se expõe como uma maquete — é possível ver por cima um banquinho na sala, uma máquina de fazer arroz no corredor, uma toalha ainda presa no cabide do banheiro. Tudo tem diferentes tons da mesma cor, já que a água entrou pela casa, subiu até o teto e, como na casa de Antônio, arrancou o telhado. A lama secou e fez um piso quase na metade da altura da parede. Não muito longe dá pra ver a antiga escola municipal, suas paredes abertas, as salas sem carteira, as lousas sujas de terra. Colchões estão nas ruas, ferragens estão jogadas para todo lado e uma escada sobe em direção ao nada. Dois urubus caçam alguma coisa no chão ao lado de um esqueleto de um sobrado. Lá ao longe, umas duas quadras de distância, alguns imóveis permaneceram intactos, mas foram saqueados depois que a lama baixou. Uma mesa de sinuca está entalada na porta de uma delas — os ladrões provavelmente não deram conta de passá-la. Todas as construções que restaram em pé estão com a cor marrom. O chão está marrom. O rio é marrom, assim como os bambuzais, as árvores em pé e as derrubadas. As máquinas construindo o dique lá longe pararam por um instante.

O silêncio.

Quase trinta anos depois e o Brasil pôde ter própria Chernobyl.

Jeferson encara um tanto quanto calado a paisagem. E inicia a falar sobre o imóvel em que estamos. “Ali pra frente tinha uma parte que ia até a rua” — ela não está mais ali. “Aqui embaixo tinha um fogão à lenha e aqui era a cozinha e ali era onde minha mãe guardava umas roupas que ela vendia ali na loja da frente. Ali onde está o banquinho era uma sala de estar. Um banheiro e ali era um quarto”.

“E aqui em cima, você sabe se era algo?”, provoco.

“Bem, aqui era meu quarto, e ali outro que eu fiz pra mim também. Eu dormia aqui”, aponta para onde deveriam estar as paredes, mas onde hoje só dá pra ver outros esqueletos de casa.

Viver sem passado: o novo desafio dos moradores de Bento Rodrigues

III. O dilema

Em nota, a assessoria de imprensa da mineradora afirmou que “desde o primeiro momento, mobilizou todos os recursos disponíveis, humanos e financeiros, para atender às emergências e buscar soluções para minimizar consequências socioambientais decorrentes do acidente”, e que “as famílias que tiveram sua renda afetada também recebem um cartão de auxílio financeiro e vêm sendo acompanhadas para que possam retomar o trabalho ou atividades de geração de renda”. Mas, entre alguns dos 60 mil habitantes de Mariana e Barra Longa, nada é tão definido assim.

Andar pelas ruas da área urbana é entrar em contato com placas contra e pró-Samarco em quase todos os bairros. As faixas contrárias a permanência da empresa quase todas são assinadas pelo Sindicato Metabase, que representa os trabalhadores da mineração. Entre as críticas feitas pelo grupo, poucas parecem ter ligação com a catástrofe. No Centro de Mariana é possível encontrar em portas de lojas convites de um abaixo-assinado, pela permanência da empresa. Duas semanas após o desastre, um grupo de moradores articulou o movimento “Justiça Sim, Desemprego Não”, que no fim de março apresentou 15.236 assinaturas em prol da companhia.

A Samarco foi eleita a melhor do seu setor do país e uma das 500 melhores empresas do Brasil para se trabalhar, segundo a Exame. O último prêmio, o quinto recebido pela joint-venture, ocorreu meses antes de suas barragens entrarem em xeque. O mesmo sentimento de respeito é dividido por grande parte da população urbana de Mariana, quase sempre grata por empregos e apoio dado pela empresa aos projetos públicos e privados no município. “Eu não posso dizer o mesmo da Vale, mas a Samarco sempre teve um relacionamento mais próximo com a cidade”, afirmou o Tenente Freitas, em seu gabinete na presidência da Câmara Municipal.

Esse relacionamento se mostra de maneira mais nítida no orçamento municipal: Mariana tem poucos pontos turísticos, além de um comércio voltado quase exclusivamente aos seus moradores. As mineradoras instaladas– Vale e Samarco — contribuem quase que com a totalidade da arrecadação da cidade, por meio de royalties da extração dos minerais. Com as operações da primeira Vale reduzidas a menos da metade, e a da segunda completamente embargadas, o montante recebido pelo município, que chegou a R$ 30 milhões em dezembro do ano passado, caiu para R$28 milhões em fevereiro. Em março, um tombo de 48% na arrecadação fez o PIB de Mariana cair para R$15 milhões.

Esta queda brusca pode piorar, já que os royalties ainda sustentam, mesmo que em menor valor, o montante retido pelos cofres públicos. Em 2016, o governo terá de procurar alternativas para seguir a vida. Sem um turismo consistente, o presidente da Câmara entende que as contas irão fechar apenas com a ajuda de uma indenização contratual paga pela Vale, de aproximadamente R$30 milhões, cobrada pelo não-pagamento de uma taxa nos últimos anos. O quanto esse dinheiro ajudará uma cidade de 1193 km² e 23 bairros, distritos, subdistritos e localidades a não entrar no vermelho, ninguém sabe ao certo.

Quatro dias depois do desmoronamento encontraram o corpo de uma garota no meio da praça em Barra Longa. Algum tempo depois, um álbum de fotos da família de Sônia foi encontrado por amigos que andavam pelas ruínas do distrito de Mariana, algumas poses já queimadas e diluídas na água. A vida e as memórias de um casamento e dos primeiros anos de um filho são itens que indenizações, doações e ajudas de custo não podem ressarcir, pois fogem ao poder do dinheiro.

Mesmo assim, uma parte significativa da população atingida nas duas cidades afirma, quase categoricamente, que o atendimento promovido pela Samarco após a catástrofe não tem deixado nada a desejar. Esse é o segundo dilema enfrentado por quem escapou da onda de lama: apoiar ou não a empresa que quase os matou e apagou quase todas as suas memórias?

O casamento de Sônia e Antônio foi em 1999. Das memórias fotográficas, tudo se perdeu, exceto algumas poses, queimadas pelo ferro e molhadas pela umidade, encontradas na lama por amigos. Essas frágeis ligações são tudo do passado que sobrou para a família — cidadãos de sorte, já que muitos não conseguiram resgatar fotos e documentos

Vendo algumas das fotografias encontradas na lama, Antônio Marcos rememora seu casamento, ocorrido em 1999. “Cara, eu casei bêbado”, desabafa. Quando pergunto o porquê de se embriagar naquele momento, ele se explica. “Ah, eu bebi umas cervejas, aí estava aquele calor, eu de terno, aí subiu e eu fiquei meio tonto” — e cai numa risada, vendo o que sobrou da foto comida nas beiradas pela lama.

Perguntado sobre o atendimento da Samarco para ele, uma resposta positiva: a casa onde eles estão está sendo alugada e paga integralmente pela companhia; eles dispõem de um cartão com um valor mensal de um salário, uma cesta básica e 20% de um salário por dependente (assim como outros afetados); que psicólogos da companhia estão à disposição dos desabrigados, mesmo que os exames pedidos pelos cidadãos sobre a exposição aos rejeitos jamais tenha sido feita.

Em Barra Longa, Rosana mostra as casas já reconstruídas pela empresa, como os fundos da sua casa viraram um canteiro de obras e de como os pedreiros, motoristas de caminhão e engenheiros aparecem com frequência em sua casa e ajudam ela a vender 120 pacotes de geladinho por dia. Ela faz questão de frisar que os funcionários das terceirizadas contratadas para tocar as reformas e reconstruções são educados e que apenas uma vez a encarregada zombou do ícone de Nossa Senhora que ela preserva sobre a geladeira. E ela mesma tratou de expulsá-la da sua casa.

Ela também faz uso dos psicólogos uma vez por semana, e diz que voltou a dormir graças a remédios distribuídos por eles. “A gente recebe já diluído num vidro assim”, ela tenta se explicar, referindo-se às essências florais receitadas pelos agentes de saúde. “A gente não sente nervoso. Ela manda eu tomar uma tampinha, mas eu tomo mesmo é duas. Aí durmo que é uma beleza”. E cai numa risada.

A casa de dona Elaine Carneiro, 61, no centro de Barra Longa, foi comprada pelo avó dela, em algum momento perto de 1850

Não que eles sejam unanimidade: Na outra ponta do município, Edivânia e seu marido José Eduardo reclamam que a região virou um grande canteiro de obras e que a presença constante de poeira causa tosse nos membros da família. Os canos na porta de casa estavam entupidos até pouco tempo atrás com a lama que secou, o que causava enchente durante as chuvas de verão. “Fui eu mesmo quem tive de limpar”, explica José, que trabalha como empreiteiro em Brumadinho, na grande Belo Horizonte. A filha caçula dos dois também é uma das pacientes da assistência dos psicólogos. Quando ela precisa de médicos, principalmente aos fins de semana, a alternativa é levá-la para Ponte Nova, a quase 50 quilômetros dali — o que vai contra a nota enviada pela Samarco, afirmando que, “em Barra Longa, a empresa contratou médicos para atuar em plantões de 24 horas aos finais de semana na Unidade de Saúde.”

No centro da cidade, Elaine é uma das 53 famílias de Barra Longa a pendurar placas de protesto na porta de casa. O número é dado por ela, mas nem todas as casas possuem a placa. A cartolina dela informa: “Fomos atingidos pela lama e esquecidos pela SAMARCO”.

A sua queixa se diz, principalmente, ao tratamento dispensado pelos encarregados da mineradora. “Ela criou um mal-estar com a gente. O que eles criaram não foi um critério (para ressarcir os moradores), mas uma injustiça”, reitera. “Eu gostaria que eles fossem mais verdadeiros, e que tivessem mais carinho conosco”. Elaine argumenta que cercas e muros do seu quintal, junto com sua pequena horta, foram arrastados pela correnteza — mas não autorizou a reportagem a ver o real estrago.

Ainda entediada e brincando com o Bento, a Mônica quis deixar bem claro: “Eu ODEIO a Samarco. Odeio”. A mãe dela ainda se recorda de como as duas ficaram mais de um mês hospedadas em um hotel, e de como só puderam passar o natal em um apartamento por ordem judicial obrigando a empresa a ceder uma residência. “Como que eu ia receber 15 pessoas pro natal, cozinhar para todas elas numa mesa como essa dada por eles?”, indigna-se dona Maria das Graças, apontando para uma pequena mesa de jantar quadrada encostada no canto. “Por isso eu fui na loja e comprei essa maior pra servir todo mundo”, afirma já apontando para um aparelho maior instalada na sala.

A posição de Antônio é ainda mais surpreendente, dada aquela tarde de novembro vivida por ele e sua família. Quando perguntado se aceitaria a volta da Samarco à Mariana ele aceita, com uma ressalva. “Só não peça pra que eu me manifeste. Vou fazer um manifesto pra uma causa que é minha mas me prejudicou? Que quase matou minha família? Eu sou a favor de voltar, mais por causa da economia.”

IV. “O Novo Bento”

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre. Um dia a ajuda provida pela Samarco acabará — e todos não apenas sabem, como esperam com ansiedade por esse dia. Àqueles que tiveram danos nas suas casas, há a esperança de que as obras promovam os devidos reparos. Àqueles que acompanham com apreensão o cataclismo ambiental causado pela vazão de mais de 22 mil piscinas olímpicas cheias de um material ainda desconhecido, se esperam ações mais enérgicas do governo, não apenas contra as controladoras de Fundão, mas capazes de evitar que se viva tudo de novo. Em nota, a mineradora afirmou que o vazamento que ainda persiste “é o carreamento de sedimentos misturados à água da chuva e dos córregos presentes do fundo do vale da Barragem”.

Aos desabrigados que perderam seu passado quase que por completo, não resta muita esperança além do que eles chamam de “Novo Bento”. Na estrada rural, a caminho da terra arrasada pela lama, Jefferson diminui a velocidade de seu Kadett e aponta para a direita, um grande terreno tomado por árvores finas, com uns 300 metros de comprimento. “A gente quer que o Novo Bento seja aqui”. Segundo o Antônio Marcos, aquele local, a uns dez quilômetros do ponto antigo, foi o escolhido pela maioria dos antigos moradores. “Agora nós pedimos os testes do solo pra Samarco”, explica. Será de responsabilidade da empresa construir a casa, assim como o projeto residencial. A ideia de produzir casas iguais pra todo mundo ainda gera algumas rusgas que Antônio Marcos acredita serão resolvidas em breve.

Apesar de o terreno permanecer com a mata intocada, os moradores já começaram a se reunir novamente, por outras jeitos. A associação de hortifrutigranjeiros do distrito, famosa pela produção artesanal de uma geleia com pimentas-biquinho, voltou a operar em um galpão em um bairro da zona urbana recentemente. Sônia é uma das responsáveis por tocar o negócio.

Todo dia 5, às quatro horas da tarde, moradores de Bento se reúnem no centro de Mariana e promovem um ato onde, por um minuto, uma sirene é tocada — a mesma sirene que poderia ter evitado quatro mortes e tantos estragos. Deste projeto, auxiliados pelos jornalistas locais, os moradores criaram um jornal próprio, que já chegou ao quarto número. “A Sirene” nasceu como uma válvula de escape dos desabrigados, uma nova atividade onde eles podem expressar o que pensam. Na segunda edição, Mônica assina reportagens com sua mãe, além de atacar como fotojornalista. “Tenho gostado muito”, afirmou.

No novo bairro, dona Maria quer o velho banco de pedra na praça e Mônica quer o cemitério, para relembrar de grande parte da sua família enterrada no velho distrito. Ainda não existem prazos para as obras, muito menos para a mudança de volta, mas apenas assim os desabrigados de Bento Rodrigues deverão se sentir em paz. Antônio Marcos se mantém otimista com as obras: “E até já dei meu nome lá pra qualquer coisa. Não quero sair de lá nem um segundo.”

E a síntese dos rostos de Bento é Maria que, como diz a música com seu nome, é a dose mais forte e lenta, da gente que ri quando deve chorar — que não vive, apenas aguenta. Mas Maria tem também a estranha mania de ter fé na vida. Por isso mantém um porquinho de porcelana na mesa da sala. Já quase cheio de moedas de 25, 50 centavos e de um real, Maria das Graças promete quebrá-lo quando se mudar pro novo Bento — vai usar o dinheiro para comprar fogos de artifício.

“Vou acender tudo e vou botar fogo no céu de tanta felicidade”. E cai numa rara risada.

No domingo de páscoa, jovens brincam onde, até 6 de novembro de 2015, havia um belíssimo pomar na beira-rio, em Barra Longa. A vida não pode parar
O autor em Bento Rodrigues, março de 2016

O autor gostaria de agradecer ao carinho dos moradores de Mariana e Barra Longa, e a todos os entrevistados que demonstraram uma sinceridade essencial para a prática do bom jornalismo. em especial, à Sônia, Antônio Carlos e Rosana que, além de receber desconhecidos jornalistas em casa, os preparou almoço e provaram que poucos povos podem ser tão aguerridos e hospitaleiros.

(…)

O autor viajou na companhia de Débora Komukai Mayumi, repórter do UOL, a qual também estende os agradecimentos por ter conseguido aguentá-lo por tanto tempo.

Uma versão desta reportagem aparece no jornal “O Estado de S. Paulo” de 1º/5/2016, sob o título “Identidades Rompidas”. Para esta versão, o autor agradece aos esforços de Vitor Hugo Brandalise.

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