Frei Damião: um retrato da comunidade mais carente da Grande Florianópolis

Hora de Santa Catarina
9 min readSep 11, 2015

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Texto: Gabriele Duarte | Imagens: Betina Humeres | Edição: Rodrigo Stüpp
Vídeo e versão online: Tiago Ghizoni

Sem luz e saneamento, mas com um fio de esperança mantém erguida a comunidade Frei Damião, em Palhoça, onde 7 mil pessoas vivem entre o suor fruto do próprio esforço e as promessas das autoridades. Este foi o cenário reencontrado pela Hora, que já cobra melhorias desde 2009. Desde então, pouca coisa mudou neste lugar que é um dos mais carentes da Grande Florianópolis.

Faltam saneamento básico, energia elétrica, água encanada, pavimentação e registro de endereços na comunidade Frei Damião. Sobram lixo, ligações irregulares de luz e água, lama, buracos, desesperança e, muito descaso do Poder Público com mais de sete mil pessoas.

A região de aproximadamente 30 mil m² em Palhoça vive sem serviços essenciais desde o fim da década de 1980, quando ainda pertencia a São José e começou a receber moradores de regiões carentes e de outras partes do Estado. O contraste com o bairro vizinho Pedra Branca, o mais nobre da cidade, é evidente.

— Melhorar é um sonho antigo de quem vive aqui. Fomos vendo a comunidade ser jogada de um lado pro outro e nunca ninguém fazendo nada. Há um projeto que o governador Luiz Henrique [da Silveira] já prometia. Temos medo que ele (o projeto) tenha morrido junto (com o senador, que faleceu em maio deste ano) — aponta Jairo Guesser, o Alemão, que preside a associação dos moradores e veio de Antônio Carlos há 19 anos, quando cerca de 30 famílias viviam ali.

A reurbanização que promete elevar a área à categoria de bairro vem sendo prometida desde 2004, teve recursos aprovados em 2009 pelo Governo Federal para ser executada com R$ 6,5 milhões da Caixa, mas perdeu a verba porque a Prefeitura não tinha projeto — informação que a administração da época nega. Hoje a Secretaria de Infraestrutura de Palhoça tem esse documento, que prevê cerca de 700 novas habitações, rearranjo das ruas, instalação de equipamentos públicos e, principalmente, saneamento básico. Mas a mesma pasta ainda não dispõe dos recursos, que estão orçados em mais de R$ 100 milhões, a serem investidos em pelo menos quatro anos.

— A Frei Damião nasceu de uma invasão. Os moradores que vivem
ali estão de maneira irregular. Pretendemos criar um novo bairro com toda a estrutura que eles não dispõem hoje — promete o secretário de Infraestrutura de Palhoça, Eduardo Freccia.

Autoridades não se acertam

Outro fator que impede a mudança da realidade na Frei Damião é a necessidade de a Companhia de Habitação do Estado de Santa Catarina
(Cohab-SC) transferir à Prefeitura o domínio da área.

— Dizem que pelo fato de a Cohab ser de economia mista, há a intenção de vender esse espaço. Mas estamos buscando alternativas. Não é impossível executar esse projeto enquanto a comunidade pertencer à Cohab, mas é
mais difícil, principalmente para conseguirmos recursos — explica Freccia.

Dona Olália Gonçalves de Melo foi líder comunitária da Frei Damião por 14 anos e deixou o cargo há dois, depois que o coração ameaçou fraquejar. Ela confirma a especulação do secretário.

— Quando o Ronério era prefeito de Palhoça, a Cohab ofereceu R$ 3 milhões para vender o terreno onde a comunidade está. Agora que ele está no comando por lá [Cohab], quer comprar por R$ 10 milhões. Mas isso não vai ficar assim. Estou adorando que a comunidade está se mobilizando. São muitos anos de descaso.

O diretor-presidente da Cohab e ex-prefeito de Palhoça, Ronério Heiderscheidt, nega a cobrança pela área, mas diz que a decisão final é do Governo do Estado, sócio majoritário da Companhia.

— Não existe motivação para ter indenização porque a Frei Damião é uma área totalmente ocupada. A presidência da Cohab é favorável à regularização fundiária por meio da doação do terreno, que tem valor contábil de aproximadamente R$ 10 milhões, mas se depender de mim não será cobrado — garante.

Ronério acrescenta que a Cohab já entregou toda a documentação ao Estado e aguarda a decisão, que deverá passar pela Assembleia Legislativa.

Fonte: Sebrae/2013

Melhorando muito devagar

A Prefeitura de Palhoça diz que, em partes, já começou a colocar em prática o projeto de reurbanização. Em 2012, fez um levantamento socioeconômico e indicou a presença de seis mil pessoas na comunidade — número contestado pelo líder comunitário Jairo Guesser, o Alemão, que crava 7,6 mil moradores, enquanto a Geomais contava 5,4 mil em 2014.

Independentemente da quantidade de habitantes, o secretário Eduardo Freccia diz que a Prefeitura reconhece a precariedade e diz que já vem atuando na região com recursos próprios.

— Estamos trabalhando em ações de curto, médio e longo prazo. Na semana passada instalamos 65 pontos de iluminação pública. Também estamos melhorando as vias e iniciando as etapas de drenagem para, então, fazermos o esgoto sanitário ainda neste mês. Pavimentação e habitações viriam a médio prazo, enquanto mais creches e posto de saúde no longo prazo. Vamos fazer pressão política para conseguir — lista o titular da pasta de Infraestrutura.

Arlene convive com o mau cheiro das valas a céu aberto

Esgoto corre pelas ruas

Arlene Judith da Luz Plácido, 57 anos, fabrica estopa há 27 anos para pagar as contas da casa onde vive na Frei Damião. Ela mora em uma das poucas ruas pavimentadas, mas apesar do sutil avanço em relação à maioria dos outros moradores, ela é vizinha do esgoto.

O que mais incomoda a moradora, que já foi líder comunitária, é a falta de saneamento básico. Os dejetos correm livres pelas ruas ou em valas improvisadas.

— Minha filha quando era criança caiu nessa vala. Quando a tiramos, só apareciam os dentes brancos. É perigoso em todos os sentidos, né? Fora o
cheiro ruim e os mosquitos no verão. É complicado pagar o IPTU certinho
e viver assim — conta.

Ela conta que ouve as promessas de melhoria da comunidade desde 1995, quando o então prefeito de São José, Dario Berger, comprometeu-se com a região.

— Ele até deu o nome do avô, que se chamava Damião. Um dia vai ter que melhorar, né? Só saio daqui quando morrer — garante, enquanto cuida para o líquido preto não entrar em seu quintal.

Fonte: Sebrae/2013
Maria Ana vê o neto crescer sem água, luz, nem vaga na creche e sem pai, morto pelo tráfico

Seca, escuridão e desamparo

A mãe do pequeno Everton, 3 anos, vive em uma casa simples de madeira com a avó do menino em alguma das tantas ruas sem nome da comunidade. O pai, conhecido no local por DJ, levou um tiro no abdômen e morreu depois de tentar impedir a venda de drogas a menores de idade na comunidade, conta Roseli Pedroso, 28 anos.

Ver o filho crescer sem pai, sem lugar na creche (onde faltam mais de 200 vagas) e sem perspectivas faz com que a falta de luz e água seja um dos menores problemas enfrentados por ela e a mãe, Maria Ana Gois, 48 anos. Para ter acesso a luz e água, as duas puxam ligações irregulares — rabichos ou “gatos” — de um ferro-velho que emprega Roseli.

— É o jeito. Não quero e nem posso pagar conta se for para continuar pisando na lama — diz Roseli, que reconhece o perigo e conta com tristeza já ter visto um amigo morrer após mexer na fiação.

A dona Maria Ana diz que a noite é o período mais complicado para quem não tem fornecimento regular de luz e água.

— Temos que fazer as coisas bem rápido quando vem e depois estocar. Eu já não tenho mais esperanças de que isso vai mudar. É o que nos resta — desabafa.

Mãos e pés murchos: a água que leva uma semana pra baixar está na pele da Martha

Lama, lodo e alagamentos

Caminhar pela comunidade é uma tarefa difícil, principalmente depois que chove. As ruas ficam completamente enlameadas e até os carrinhos dos catadores de lixo têm dificuldade de transitar. Isso porque o calçamento vai até a última rua do bairro Brejaru e acaba no primeiro passo dado na Frei Damião.

Em algumas casas, água, lama e lixo não pedem licença para entrar e permanecer. Depois de uma tempestade, a casa onde a uruguaia Martha Florencia Barragan Delgado, 46 anos, vive de aluguel com o companheiro e a filha de 8 anos ficou alagada por pelo menos uma semana.

— É sempre assim. Os móveis já estão podres. A água entra porque a casa é mais baixa que a rua. E aí temos que nos virar. Temos que ficar o menor tempo possível dentro de casa — diz, com as mãos e os pés murchos.
Martha tem esperanças de conseguir se mudar para uma casa de madeira, cuja construção em outro terreno foi prometida pela associação dos moradores — a quem se costuma recorrer pela ausência de apoio Público.

Carlos Eduardo: Prefiro reciclar lixo a viver na rua, onde passei quatro anos

Lixo e mais lixo

O lixo acaba entrando na casa de Martha porque a coleta não passa pela maioria das ruas da comunidade — somente em três, que são pavimentadas. Com a falta de recolhimento, grande parte dos moradores tornou-se catador de lixo e trabalha na reciclagem alojada no terreno que fica atrás da casa de dona Martha. Mas o espaço é comandado por seis donos e a ameaça de fechamento, e consequente fim da renda mensal, é constante.

— Nós sonhamos que isso aqui funcionasse de forma semelhante ao Ceasa, com boxes organizados. Porque nós só queremos trabalhar. Vontade a gente tem, não tem é oportunidade. Nos dão poucas chances de viver dignamente — pontua a catadora de lixo Mara Martinez, 59 anos, natural de Blumenau, que quer trabalhar só até o fim do ano para poder arrumar os dentes.

O paranaense Carlos Eduardo de Abreu, 36 anos, prefere reciclar lixo a viver na rua, onde já passou quatro anos e não pretende voltar.

— A condição para trabalhar é complicada. Tá difícil, mas vai melhorar — torce.

O líder comunitário Alemão se emociona ao falar do preconceito sofrido por quem vive na Frei Damião. Ele conta que há uma espécie de bordão: “Quem é daqui, não pega emprego”.

— Com bastante frequência eu tento arranjar serviço para as pessoas daqui. Chego aos locais com vaga, falo do candidato e, quando aviso que é da Frei Damião, a vaga é automaticamente encerrada. Não querem gente daqui — lamenta.

Falta de registro de ruas dificulta moradores de indicarem onde vivem

Ruas que não existem

Apenas três ruas da comunidade Frei Damião são registradas: Avenida das Palmeiras, 13 de Março e Pasqual Masílio. Os moradores costumam ter dificuldade para indicar onde vivem. Também não têm nem o direito de receber correspondências.

— Eu não sei o que é receber uma carta, moça. Nem uma conta, nada. Nunca tive o prazer de receber algo no meu nome — diz Roseli Pedroso.

Até pouco tempo atrás, uma padaria localizada no fim do bairro Brejaru, que faz divisa com a Frei Damião, recebia e encaminhava as encomendas aos moradores.

— Isso foi acabando. É complicado depender dos outros até para receber algo, né? — conta Alemão.

Maria do Pulmão, num intervalo de sete anos Reencontro com Maria e Josiane (Fotos: Débora Kemplous (E)| Betina Humeres

Em setembro de 2009, a Hora já apontava a situação de precariedade da comunidade Frei Damião. Na ocasião, conheceu a dona Maria da Silva, conhecida por “Maria do Pulmão” — devido aos problemas respiratórios e o problema enfrentado pela catadora de lixo de 57 anos de idade. À época ela utilizava um cabo azul de vassoura como bengala para se equilibrar na casa que ameaçava desmoronar.

Dona Maria do Pulmão ganhou um lar depois da reportagem e diz que a vida melhorou muito. A gratidão está estampada no quadro com as páginas do jornal Hora fixado acima da porta de entrada do novo lar.

— Ah, está muito melhor, né? Continuo trabalhando como catadora de lixo e tomando remédios para o pulmão — conta dona Maria.

Joseane de Jesus, 28 anos, é filha da dona Carmelinda de Jesus, com quem a Hora também conversou em 2009. Há dois anos, a senhora que pedia uma casa melhor para viver com a filha e a neta a faleceu de câncer. Joseane tem outras duas meninas e vive com o marido em uma residência de dois andares ainda sem alvenaria. Apesar da mudança, ela avalia que ainda há
muito o que melhorar.

— O que mais me incomoda é o esgoto e a falta de vaga na creche. Porque me preocupo mais com as crianças — lamenta.

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