“O mundo busca sair de séculos de colonialismo e racismo, que hierarquizou os povos” — uma entrevista com Carolina Matos, professora da City University

Internacionalismo
11 min readNov 23, 2015

--

Por Ivan Bomfim

Nesta primeira edição, o Internacionalismo publica uma entrevista realizada com Carolina Matos, professora do Departamento de Comunicação Internacional e Sociedade da City University, de Londres. Jornalista com experiência em empresas como Folha de São Paulo, Globo, Reuters e Unesco, doutora em Mídia e Comunicações pelo Goldsmiths College (University of London), vencedora do prêmio Jabuti 2014 de melhor obra na área de Comunicação (Mídia e política na América Latina: globalização, democracia e identidade, editora Civilização Brasileira) e radicada no Reino Unido há 13 anos, Carolina se dedica a temas como globalização, política, sociologia, democracia, gênero e América Latina em suas relações com a ambiência midiática.

Profa. Dra. Carolina Matos

Em entrevista por email, Carolina aborda temas como os atentados do dia 13 de novembro em Paris, a imagem do Brasil atual na mídia britânica e mundial e a importância das reflexões e pesquisas sobre globalização e comunicação internacional para a compreensão da realidade contemporânea.

INTERNACIONALISMO: Acontecimentos como o da sexta 13 em Paris reacendem as discussões sobre o terrorismo, o modus operandi de organizações calcado na divulgação extensiva de suas ações, como forma de construção de imagem. Você acha que, desde o 11 de setembro de 2001, há uma mobilização das ações terroristas como espetáculo midiático amplificado pela internet? Como podemos entender as relações entre globalização, mídia e atentados terroristas?

CAROLINA MATOS: Há um grande crescimento nos estudos na área de Comunicação Política, e Relações Internacionais e Mídia, sobre a guerra ao terror, principalmente sobre a cobertura da mídia, o que levou a primeira guerra no Afeganistão e depois no Iraque, e ainda também trabalhos que apontam um aumento grande do preconceito contra muçulmanos, o que lamentavelmente deve ate se intensificar agora mais ainda com os ataques em Paris — veja o trabalho de autores como Des Freedman e Daya Thussu (War and the Media), Entman, Stuart Allan e Barbie Zelizer, por exemplo.

INT: O Reino Unido é constantemente citado como possível alvo de atentados de grupos como o ISIS e a al-Qaeda. Como o tema “terrorismo” está sendo tratado pela mídia jornalística britânica?

CM:A mídia internacional, assim como a inglesa, tem dado cobertura ampla aos ataques, inclusive ao de Beirute (Líbano), que aconteceu um pouco antes. Não é que a mídia não faça a cobertura dos ataques terroristas que ocorrem no Oriente Médio ou pelo mundo, mas se percebe uma cobertura mais forte e incisiva quando as vitimas que são atingidas são dos países do Ocidente rico. O New York Times publicou um texto onde sustenta que o sentimento da população de Beirute é a de que eles estão se sentindo esquecidos. O que é óbvio é que não deve haver uma disputa de tragédias, pois ambas igualmente são trágicas. O que se pode dizer é que o buraco é mais fundo e mais embaixo: o mundo hoje busca sair de séculos de colonialismo e racismo, que hierarquizou os povos e dividiu as culturas “inferiores” das “superiores” (o do “West versus the rest”) e que hoje ainda traz consequências na forma de tratamento discriminatório que é dada às vezes para a segunda geração até nascida nos países europeus e filhos de imigrantes. Sabemos muito mais sobre a cultura francesa, a comida, os autores, etc, que sabemos sobre a árabe, e assim o processo de empatia e identificação fica maior com o primeiro. Por isso que nos estudos chamados pós-colonialistas se busca focar nas culturas que foram anteriormente marginalizadas, e o Brasil faz parte disso também.

INT: A cobertura brasileira sobre os atentados está investindo, de forma geral, na exploração das fortes imagens e de relatos, sendo algo comum abordar brasileiros que moram em Paris para contar como foi o momento de tensão e como está a “vida cotidiana” na cidade. Como este modelo ajuda a entender o contexto geral dos acontecimentos e onde ele é falho?

CM: Acho interessante incluir o olhar brasileiro, mas acho também que ele é muito abusado pelos jornais brasileiros e isso também reflete um certo provincianismo, embora a ideia seja até dar um ângulo não “eurocêntrico”. Mas não deixa de estar inserida dentro desta mesma lógica. A cobertura internacional praticada pela mídia brasileira também segue a mesma lógica da cobertura internacional, e também se vê que as pessoas no Rio e São Paulo tiveram a tendência de se solidarizar mais com o que aconteceu em Paris do que no Líbano, mas acho que no caso de Mariana a comoção foi até bastante forte. Claro que todos têm o direito de escolher as causas que querem apoiar, assim como se solidarizar mais com um evento trágico do que com outro. Mas, no caso do Brasil, o importante é estimular mais a empatia de muitos para o sofrimento dos brasileiros, da morte de negros e favelados pela polícia, e também para a questão da perversidade da pobreza e da desigualdade no país, um mal que merece ser enfrentando com muito mais empenho.

NT: Tendo em vista a atual conjuntura política do Brasil e da América Latina, como você vê a cobertura jornalística realizada pela mídia internacional — e especificamente, britânica — sobre as temáticas latino-americanas?

CM: A cobertura sobre o Brasil melhorou muito nos últimos anos, tendo ficado mais sofisticada e mais atenta aos inúmeros problemas do país. E certo dizer também que há uma diferença entre os veículos em relação ao maior conhecimento sobre o Brasil: os veículos que cobrem politica, economia e internacional mais a fundo e que são a principal referência do jornalismo mundial, estão apresentando de forma mais respeitosa e atenta ao seu publico os desafios pelos quais o Brasil passa, como o combate às desigualdades e os problemas na economia. São estes o Financial Times, The Economist, The Guardian e o New York Times. O Brasil aos poucos deixa de ser o país do futebol e das mulatas de Carnaval e da praia — imagem, no entanto, que ainda circula nas propagandas e na mídia de uma forma geral — para ser um país de diversidade, de potencial criativo, etc, e que a partir do momento que se der conta melhor dos seus desafios, tem tudo para se tornar um país do Primeiro Mundo num futuro não muito distante, quem sabe daqui a uma década. Acho que uma materia que resumiu isso foi a do The Economist Brazil takes Off, de 2009. O discurso do ex-presidente Bill Clinton dado recentemente no Brasil vai de encontro e resume tudo isso que estou falando. Mas você pode perguntar: porque a mudança? O Brasil de fato começa a ter mais respeito, ou atenção, melhor dizendo, a partir dos anos 90, com a sua entrada na globalização politica e econômica mundial, mas pode-se dizer que isso ficou mais forte com o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e o reforço às politicas de combate à desigualdade, que infelizmente ainda não recebem a devida importância pelas classes dominantes no país, condição sine qua non para o Brasil passar a ser visto como mais desenvolvido, e não um país “pobre de Terceiro Mundo”, como ainda é visto e sofre preconceito e discriminação por causa disso.

INT: Tendo em vista essas questões, como perceber o Brasil na dinâmica da comunicação internacional? Quais as grandes diferenças da abordagem sobre o país na passagem entre os governos Lula e Dilma?

CM: O Brasil sempre teve (e ainda tem) uma imagem negativa no âmbito internacional, visto como violento, desigual, injusto, dividido entre ricos e pobres, corrupto, etc, apesar também de ter crescido um maior carinho e apreço pelo país, visto como cheio de belezas naturais, de clima bom, com um povo simpático, festeiro e com um potencial criativo e até politizado. Durante a gestão Lula, até pelo crescimento da economia, foi o momento quando o Brasil teve a sua melhor imagem, até de bastante euforia e de crença que o pais estava avançando muito rápido e de forma espetacular. Isso não esta sendo o caso com a presidente Dilma Rousseff, que tem enfrentado inúmeras dificuldades por uma série de razões que já sabemos, mas aqui também a cobertura — apesar de crítica em relação a sua fraqueza politica, problemas na economia e em relação à corrupção –, também tem apontado o seu papel em avançar as investigações sobre a corrupção e a sua vontade de fortalecer a democracia no pais, como foi o caso dos jornais Financial Times e New York Times, e na sua maioria a grande imprensa internacional tem sido critica a um impeachment ou processo de ruptura que possa colocar em risco as conquistas democráticas (salvo algumas exceções, como a do artigo recente do jornal conservador francês Le Point, que vê a necessidade de sua saída). Há sim muitas criticas à condução da economia e, na verdade, a principal preocupação é com o pais perder o seu lugar nos BRICS, não ser mais o que se achava antes na época de Lula, o que de fato afastou alguns investidores e deixou alguns mais apreensivos.

INT: Você realiza pesquisas multidisciplinares, tratando de questões políticas, sociológicas e comunicacionais. Como caracterizaria as relações entre sistemas midiáticos e sistemas políticos na América Latina?

CM: O meu último trabalho falou da importância do papel da mídia pública no desenvolvimento do país e no fortalecimento da democracia, comparando o papel que as emissoras públicas tiveram na Europa, e na Inglaterra com a BBC, com o potencial que poderiam ter no Brasil, isso sem esquecer a importância de se melhorar a qualidade da mídia comercial e do jornalismo de uma forma geral (que precisa ser menos maniqueísta, mais sofisticado, crítico e imparcial). Infelizmente, o debate sobre a mídia no Brasil é muito pobre, e nem os governos de Lula e Dilma conseguiram avançar muito coisa, fora a criação da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) — onde, no momento, os funcionários estão em greve por melhores salários e por uma mídia pública de maior qualidade — e a realização da Confecom em 2009, levantando o debate com a sociedade. Em relação ao resto da América Latina, o Brasil também está estagnado ou andando para trás: já se avançou na Argentina com a lei dos meios e em outros países. O problema que ainda há no Brasil desentendimento em relação ao que seja uma regulação positiva e a favor da maior competição do mercado e do aprofundamento da democracia, e que é frequentemente confundida com censura, o que é colocado pelos grandes grupos de comunicação e a população que não entende do assunto aceita. Na verdade, há pouca ousadia e até medo, inclusive por parte da esquerda, de irritar os setores mais conservadores da sociedade e levar a sério esses debates de forma madura, já que os meios de comunicação nacionais têm medo de perder privilégios, e infelizmente não há um real comprometido ao liberalismo econômico, que é a favor da concorrência. O que se vê no Brasil atualmente é uma diversidade jornalística crescendo na Internet e em vários blogs, como o Pragmatismo Politico, Brasil 247, etc, e pouco na grande imprensa, apesar de suas exceções e mais do que havia no período dos anos 80 e 90.

INT: Como a inserção de veículos internacionais no ecossistema midiático brasileiros (casos do El País Brasil e do HuffPost Brasil, por exemplo) podem impactar positiva e/ou negativamente em uma sociedade como a brasileira em temas como democratização política?

CM: Acho extremamente positivo, pois é de concorrência também que o pais precisa, o que obrigará os atuais veículos a melhorarem, e poderá criar mais oportunidades de emprego para as pessoas, fora mais espaços para a diversidade de vozes e posições. É fato que a cobertura da mídia internacional é bem mais sofisticada que a brasileira, e isso se deve a vários fatores, incluindo não só a alta educação dos jornalistas, mas uma maior independência política, já que no Brasil há uma subserviência muito grande à autoridade e ao empresariado, a quem tem dinheiro, resultado do legado autoritário do país, e poucas críticas a esses grupos. Hoje vemos isso com a falta de punidade dos militares envolvidos em torturas no passado, com os pedidos de intervenção militar (quase não questionados e repudiados, como seriam em qualquer país desenvolvido) e a atuação dos políticos da direita. No Brasil, o El Pais Brasil esta dando um banho em jornalismo crítico, imparcial e maduro.

INT: Um de seus temas de análise são os processos globalizacionais. Como você analisa o atual estágio da globalização, tendo em vista os sistemas midiáticos em escala nacional e internacional?

CM: Desde a década de 1980 que temos visto um crescimento da comercialização da mídia e a formação de grandes conglomerados (pesquisadores como Robert McChesney e Chomsky tratam do assunto). O que tem ocorrido a nível mundial é um declínio das emissoras públicas, o jornalismo politico sendo pressionado e o aumento do espaço jornalístico dedicado ao entretenimento e às celebridades. Algo que foi bastante positivo foram as discussões sobre o escândalo dos grampos na Inglaterra, aplicados pelo tabloide sensacionalista News of the World, de Rupert Murdoch, que acabou fechando (e o último também perdeu influência, mas não caiu), e da instalação do Leveson Inquiry, que além do relatório de intenções, ainda precisa mostrar resultados concretos. Depois de três anos desde a Levenson Inquiry, foi instalado o orgão Press Regulation Panel (PRP), com o objetivo de facilitar o acesso do cidadão comum à justiça contra jornais que invadirem a sua privacidade.

INT: Desde os anos 1990, há um amplo debate acerca das possibilidades trazidas pelas novas tecnologias de comunicação e informação (NTICs), seja pelo incremento dos fluxos econômico-financeiros, seja pelas possibilidades de ampliação de participação política. Como você vê o impacto das NTICs no cenário contemporâneo global? Em quais áreas elas aprofundaram diferenças e em quais suas consequências positivas são mais marcantes?

CM: Há muitas coisas para serem exploradas nessa pergunta. O principal debate em relação às novas tecnologias é sobre sua capacidade para melhorar a democracia, contribuir para um maior debate na esfera publica, fora da grande mídia, incluindo setores excluídos, dando mais voz às minorias e outros grupos políticos para se organizarem, mobilizando e trabalhando contra estereótipos e a favor de seus causas. Também há o papel das novas tecnologias na educação, e no caso do Brasil, o debate principal é a inclusão digital. Mas hoje se da mais atenção às teorias sobre as NTICs de teor mais realista e que reconheçam limitações das novas tecnologias, ao contrário um pouco das análises excessivamente otimistas e um tanto utópicas dos anos 90, inclusive de Manuel Castells. Não se vai mudar o mundo na Internet, não é possível mudar todas as desigualdades: os sites que são mais acessados ainda são os de grandes companhias e não os pequenos, portanto há uma forte comercialização da Internet e esta é ainda principalmente usada para comprar produtos. Há estudos também sobre o potencial das novas mídias, como Facebook e Twitter, e isso tem atraído muito a atenção dos jovens interessados em pesquisar mais sobre o assunto, embora várias pesquisas também apontam para o crescimento do isolamento social devido ao uso das novas tecnologias, o seu uso como reforço da personalidade de forma narcisista, etc, e menos para a mobilização politica e para mudar o mundo.

INT: Você já mora há mais de dez anos no Reino Unido, e parte significativa de seus estudos enfocam questões relativas ao Brasil ou que envolvem de alguma forma o país. Como vê essas questões em uma perspectiva pessoal?

CM: Tenho dupla nacionalidade, obtida não há muito tempo e já estou há 13 anos aqui. No momento estou pesquisando sobre gênero, mídia e globalização. O olhar daqui é bem mais critico em relação ao Brasil, e a nossa experiência no exterior só faz reforçar esse olhar e permitir maiores comparações entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, em sentido de ver o que poderá ser feito para melhorar o Brasil, o que serve para nós e o que não serve, como podemos também nos tornar um pais mais maduro e avançado e que ofereça mais oportunidades para a maior parte das pessoas. É esse o grande desafio do Brasil.

--

--