Remakes, Nostalgia e Kowloon Generic Romance

Izana
10 min readApr 7, 2024

--

Minha opinião sobre Remakes e nostalgia através de duas obras e seu contexto histórico.

Embora sendo um termo científico, a cultura da reprodutibilidade técnica em cinema, jogos e animações recentemente tornou-se a principal pauta de muitas conversas entre amigos e para as indústrias que produzem os produtos destas mídias. O termo Remake por este motivo acaba sendo o grande destaque desta história, sendo o protagonista de críticas negativas, onde muitos dizem ser uma atividade desnecessária e outros que assim como eu, apoiam fortemente tal atitude porém com algumas ressalvas.

Muitas das críticas negativas sobre remakes hoje em dia se originam muito pelo contexto atual que se encontra. De acordo com os próprios críticos, nós vivemos em uma era onde a nostalgia toma conta do consumidor, pois há uma hipótese sobre uma tal crise criativa das indústrias (o que sabemos que não é verdade).

Por mais que teoricamente a arte representada por Aristóteles seja uma mimese da vida, dando para muitos uma ideia de que tudo se copia quando falamos de arte, ainda assim sempre encontramos coisas novas e criativas, até mesmo vindo de um remake onde muitas delas também demandam uma certa criatividade querendo ou não, independente do resultado final. Um grande exemplo que vale destacar é o Remake de Final Fantasy VII quando visitamos os créditos, o primeiro destaque vai para o Tetsuya Nomura como diretor criativo.

Ao mesmo tempo que eu discordo com a afirmação das críticas negativas, há argumentos apresentados que de certa forma eu entendo e não posso negar. A nostalgia vende, e muitas das empresas sabem disso e para entendermos melhor o porquê, vamos entender primeiro o que é a nostalgia.

Nostalgia e os seus problemas

A nostalgia é aquela sensação que o indivíduo tem de sentir em um contexto passado que não existe mais. A partir disso, podemos pensar na estética da nostalgia em uma produção artística e cultural criada para provocar o efeito citado. A nostalgia como categoria estética ou como uma proposta artística é válida, porém o grande problema é quando isso se torna a única forma do sujeito conseguir se relacionar com a arte, pois a nostalgia em si é uma tentativa de reconstruir e recuperar um passado que não existe mais, que em outras palavras, relacionar-se por esta perspectiva trazem muitos problemas sendo entre elas a questão da própria arte.

Muitas das boas obras de arte são acompanhadas de um adjetivo, este sendo a palavra “clássico”. Uma obra clássica, em um de seus significados, refere-se a um período de tempo onde uma cultura ou expressão artística atinge o grau máximo de desenvolvimento, tornando-se influência para muitas obras posteriores. Uma boa obra de arte, geralmente são obras que possuem múltiplas camadas, seja desde uma obra que uma criança consiga entender e levar algum conhecimento através dela quanto a um adulto que possui conhecimento mas que também acaba despertando novas sensações, perspectivas e descobertas através da mesma obra ao revisitar. E quando me refiro em múltiplas camadas, posso exemplificar a questão narrativa, onde a obra possui a narrativa de primeiro plano, ou seja, a literal, ao mesmo tempo que temos a narrativa subjetiva onde teremos diversas analogias e metáforas do tema apresentado. Um grande exemplo que eu gosto de fazer é sobre o filme Shin Godzilla de Hideaki Anno que a primeiro plano, trata-se da luta dos japoneses contra uma criatura que traz consigo a capacidade de dizimar o país inteiro mas que na camada subjetiva do filme, o Anno destaca a sua crítica à burocracia japonesa, usando o Godzilla como analogia a um fenômeno da natureza de um evento passado que foi o grande terremoto de Tohoku em 11 de Março de 2011, onde grande parte do prejuízo (se excluirmos a catástrofe natural) se deve ao próprio governo japonês.

“Como muitas das produções que abrigam o monstro, Shin Godzilla tem um contexto bem interessante. Foi feita como uma alegoria do universo político e burocrático japonês, tendo como pano de fundo o desastre nuclear de Fukushima e o terremoto e tsunami que destruíram Tohoku em 2011.” (Boca do Inferno)

Dito isso, uma boa obra são aquelas que não se esgotam na sua primeira leitura, são aquelas que adquirimos novas experiências cada vez que voltamos a observar depois de ter obtido novas vivências ao decorrer da vida. Ao contrário de uma boa obra, aquelas visadas somente pela nostalgia por sua vez delimita justamente estas novas experiências que adquirimos ao revisitar. Contudo, por muito das vezes a culpa não se devem às obras e sim ao leitor pois conceitualmente, um remake tem como intuito usar desta nostalgia para reinventar, adaptar a história trazendo o seu tema principal para o contexto atual e muitas vezes acrescentando consigo novas ideias em cima deste mesmo tema, como o Final Fantasy VII Remake anteriormente citado. O tema principal trata-se da importância da consideração da preservação e do futuro do planeta, a Teoria de Gaia de James Lovelock. O Remake também aborda sobre esta questão, mas ao mesmo tempo usam novos elementos para criar um novo tema, que seriam os murmúrios, seres misteriosos que posteriormente descobrimos que são entidades que tentam preservar a linha temporal do Remake para o mesmo do original e para quem jogou, sabe que isso não foi concluído, dando-se origem a um novo rumo para a história que já conhecíamos para o completo desconhecido, eis o porquê do segundo jogo chamar-se Rebirth. Ou seja, os murmúrios formam um novo tema acrescentado sobre a obra onde justamente discutem sobre o próprio objetivo do remake, de reinventar uma nova história ao mesmo tempo que preservam o tema principal do original, pois o tema sobre a teoria de Gaia ainda permanece em ambas as obras.

Muitos dos problemas do leitor com a nostalgia se deve ao leitor se recusar a querer adquirir novas experiências, recorrendo então àquilo que o mesmo sentia quando mais novo. E muito disso se resulta na crítica mais errada sobre obras que tiveram remakes, sendo esta frase a famigerada:

“Fizeram uma nova versão da obra x que eu assistia quando criança, estragaram totalmente a obra e minha infância.”

Kowloon Generic Romance e Wong Kar-Wai

Alerta de leves spoilers devido a sua sinopse, não chega a estragar a sua experiência ao decidir lê-lo ou assisti-los, porém eu sei que pode incomodar alguém.

Kowloon Generic Romance de Mayuzuki Jun, mesmo autor de After Rain, conta a história de uma cidade murada que realmente existe em Hong Kong, que inclusive possui o mesmo nome. No meio de luzes prestes a queimar, seus becos velhos e mofados, e seus vizinhos morando neste espaço confinado e até mesmo claustrofóbico, por algum motivo, novos estabelecimentos não costumam durar muito em Kowloon, isso porque nas próprias palavras do mangá: Kowloon deve permanecer como um “lugar nostálgico”.

Imagem retirada do Mangadex.

E esta seria a palavra certa para descrever o mangá até certo ponto, nostalgia. O mangá foca justamente nas pessoas que vivem neste espaço, principalmente a vida de nossa protagonista, a Kujirai.

Mulher de 32 anos e empregada de uma imobiliária, Kujirai divide espaço de trabalho com Kudou no qual posteriormente acaba percebendo seus sentimentos pelo seu colega de trabalho. O problema inicial é que parece que durante as suas tentativas de querer se aproximar de Kudou, Kujirai percebe que há algo que ainda o impede de aproximá-lo, seu colega de trabalho diz que a nossa protagonista lembra muito alguém do passado ao ponto de se confundir com ela às vezes. No decorrer do mangá, ainda em seu início, Kujirai posteriormente encontra uma foto de Kudou com a suposta pessoa que o mesmo diz parecer muito com ela, e então Kujirai se espanta ao perceber que estava vendo ela mesma na foto, o que parece não fazer muito sentido já que a mesma diz não lembrar de nada além dos seus últimos 6 meses.

E a partir daí que a história se desenvolve, com diversas reflexões e crises de identidade onde a mesma se questiona se suas ações são as mesmas que a suposta pessoa que Kudou recordava exercia, atacando a sua própria personalidade. Durante várias teorias, linhas de pensamentos e debates entre os personagens da série, Kujirai então se pergunta se ao tentar recuperar as suas memórias, ela estaria perdendo tudo que constituía o seu eu atual.

Embora eu particularmente não achei nada genérico vindo do romance de Generic Romance, o mangá obviamente possui forte inspiração no cinema de Wong Kar-Wai.

Em Amor à flor da pele, passando em Hong Kong, a história também conta a vida de dois personagens casados que acabam descobrindo a traição de seus cônjuges. A partir daí, acompanhamos o relacionamento de ambos personagens que foram esse lado dos traídos da relação de seus antigos pares. O novo casal então acabam passando os seus tempos juntos, recriando hábitos e costumes de seus parceiros antigos até que chega em um ponto onde ambos não sabem mais se o amor pelo outro é pelo seu eu ou pelo outro que já foi, e se qualquer incômodo na relação derivam-se novamente do próprio ou do par projetado. Chega a um ponto em que umas das personagens se desaba aos prantos por conta desse relacionamento mas seu parceiro pede para se se acalmar pois tudo não passava de um ensaio, ou seja, o filme atinge o ápice em que não se sabe mais se qualquer diálogo do filme é genuíno ou falso, não sabendo mais se a relação entre eles é uma reprojeção de uma nostalgia ou de uma tentativa de começar algo novo.

Vale lembrar o contexto histórico onde ambas as histórias se passam. Hong Kong na década de 90 passou por um período de efervescência nas discussões de devolução, ainda colônia britânica para a China. Um processo que durou vários anos até a devolução em 1997, marcando o fim do que ficou conhecido como o “século da humilhação” na China. Neste período antes da devolução, é marcada pela incerteza em relação ao presente e futuro. E este conflito se reflete no cinema e mangá com personagens confusos sobre a sua identidade e pertencimento ao mundo, em busca de seu significado. É como se Hong Kong não pudesse abrigar nada que fosse duradouro e longevo e sim apenas coisas passageiras e nos romances da obra, é nítido a nostalgia como tema já que incertos de seu presente e futuro, os personagens buscam permanecer ao passado como certa forma de conforto ao passageiro, o que acaba resultando em uma certa melancolia.

Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-wai.

Projeção sentimental e conclusão

Há um conceito chamado “Einfühlung”, desenvolvido por um teórico alemão chamado Theodor Lipps, que é traduzido algo como “Projeção Sentimental”. O mesmo defendia que o gosto de um sujeito não se dá completamente em razão do objeto que ele aprecia, mas também de um impulso narcisista de se auto elogiar. Quando uma pessoa vê em algo (que pode ser uma obra de arte) características com as quais ele previamente se identifica e projeta como sendo suas, ele sente afinidade por este objeto justamente pela identificação destas características e, desta forma, projeta a si próprio no objeto. Então quando o sujeito elogia esse objeto que tem características que considera também sua, ele está elogiando a ele próprio. O grande problema acontece quando o sujeito não consegue mais distinguir-se deste objeto, pois, nesta situação, quando alguém critica o objeto, o sujeito entende que a crítica passa a ser contra a sua própria pessoa em conjunto. Então a pessoa que gosta muito de algo antigo a ponto de projetar-se junto a sua personalidade, acaba por sua vez interpretando a versão nova como uma negação à versão antiga, como se esta versão fosse se tornar obsoleta. Como os mesmos não diferenciam mais o objeto de si próprios, interpretam como se fosse também uma negação à personalidade deles. Com isso temos o choque e a resposta reacionária de que a obra está estragando a sua infância ou passado. Porém vale lembrar que:

“Uma adaptação de filme baseado em um livro, não faz que a obra original deixe de existir”

Um grande exemplo disso são os livros de Senhor dos Aneis, e mesmo sendo a adaptação de um livro, o filme não necessariamente é idêntico ao livro pois ambos possuem linguagens diferentes, houve uma reimaginação da obra ao projetarem para uma nova mídia, que é o cinema.

Ou seja, a ideia de remakes sempre existiram pois essa sempre foi a experiência natural da arte. As ideias, personagens, mitos e conceitos sempre continuarão a existir porém serão interpretados de acordo com as novas interpretações sociais a partir das mudanças históricas. Algumas fábulas da Disney que conhecemos não passam de remakes das fábulas de Hans Christian Andersen. O Rei Leão que todo mundo ama é um uma releitura da obra de Hamlet de William Shakespeare, ou seja, negar remakes, seria dizer adeus a animação do Rei Leão que tanto ama e recorrer ao Hamlet caso queira conhecer a história. E independente de ser necessário ou não, a obra original nunca deixará de existir e, por muitas das vezes, os remakes também são uma tentativa de convencer o leitor a revisitar a obra original.

E com isso, eu agradeço a todos que chegaram até aqui. Para todos que leram, recomendo fortemente todas as obras citadas neste texto.

A ideia do texto veio logo quando foi anunciado um anime de Kowloon Generic Romance e a minha felicidade com a notícia, visto que a obra não tem tradução brasileira oficial aqui no Brasil. Se você gosta de After Rain, recomendo de imediato a leitura!

--

--

Izana
Izana

Written by Izana

Estudante de Design em Animação. Grande fã de história, cultura japonesa, JRPG's, animes e mangás. Uso desta conta para aprimorar minha escrita.

No responses yet