Cidadania digital: como a Estônia se tornou um paraíso para empresas e freelancers

Luciano Rocha
6 min readSep 17, 2018

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Como um país com ares medievais e passado de tirania se tornou uma referência em tecnologia? (Fonte: Unsplash)

Um país com extensão territorial apenas duas vezes maior que a do menor estado brasileiro (Sergipe) e população equivalente a da cidade do Recife. Olhando apenas para esses números, qualquer um poderia passar despercebido pela pequena Estônia, país europeu situado na costa do mar Báltico e conhecido por belezas como a da foto acima, tirada na capital Tallin.

Entretanto, e se dissermos que a Estônia possui um PIB per capita maior do que o do Brasil (US$ 19.000, contra US$ 13.000 aqui nos trópicos)? Ou que do país surgiram empresas como Skype e Pipedrive, algumas das mais conhecidas em seus ramos no mundo inteiro? Olhando assim, o país se torna um pouco mais atraente, não?

Pois se você, caro leitor, é uma pessoa que gosta de inovação, belezas naturais e de um lugar que seja amigável com imigrantes, então realmente deve parar por alguns minutos, sentar ao meu lado e conhecer mais sobre a Estônia e seus benefícios, especialmente se você trabalha a distância ou possui uma startup. Aí, meu caro, a terra do Skype será um paraíso na Terra.

Das ruínas de um sistema moribundo

Foto por Doug Maloney on Unsplash

Antes de falar do presente, precisamos caminhar um pouco pelo passado. Até porque eu adoro história e também porque precisamos entender o sofrimento da Estônia para admirarmos ainda mais sua recuperação.

A Estônia foi uma nação independente até o início da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, o país foi ocupado pela União Soviética (URSS), um “benefício” concedido a Josef Stalin em virtude de seu pacto com o ditador alemão Adolf Hitler. Após o final da guerra, os países bálticos — nos quais se incluem a Estônia — permaneceram como parte da URSS e sob o julgo da tirania socialista, sofrendo horrores inenarráveis por mais de 50 anos.

A independência do país foi conquistada apenas em 20 de agosto de 1991, com o desmantelamento da União Soviética. E aí começou o grande desafio para a Estônia.

Um país em reconstrução

Foto por Hasan Almasi on Unsplash

Ao se tornar independente, a Estônia enfrentou desafios similares ao de outras nações que foram libertadas do jugo socialista: economia em frangalhos (após décadas de planejamento central ineficiente), inflação galopante (que chegou a quase 90% ao mês em 1992) e, consequentemente, uma alta desconfiança quanto ao governo local.

Com todos esses desafios, o governo que tomou posse em 1992 tinha um enorme trabalho pela frente. E o que fez a grande diferença na história estoniana foi a postura tomada pelo país, que foi radicalmente diferente dos seus pares ex-socialistas.

A primeira atitude da Estônia foi a de criar uma nova moeda, que estava atrelada ao marco alemão (ainda não havia o euro na época). Dessa forma, o governo passou a credibilidade de que sua política monetária seria responsável e previsível, algo que começou a atrair investidores e capital estrangeiro.

Além disso, a Estônia começou a privatizar antigas e ineficientes estatais pré-soviéticas, realizou cortes radicais nos subsídios para empresas (lembra da relação BNDES/Eike Batista/JBS? Pois é, a Estônia também possuía isso) e fez o principal de tudo: criou uma lei que proibiu o governo de apresentar orçamentos com déficits.

Não bastava apenas o governo gastar pouco: a lei o proibia de apresentar qualquer orcamento cujas despesas fossem maiores do que as receitas. Isso, aliado ao controle da inflação e as políticas de privatizações e fim de subsídios, levou os políticos do país a serem mais responsáveis com os gastos públicos.

A Estônia hoje

Foto por Estonian Saunas on Unsplash

Quase 30 anos depois desse “choque de gestão” (um choque de verdade, sacou, Aécio Neves?), os resultados se mostraram mais do que positivos.

A modernização e necessidade de redução de burocracias transformou a Estônia no mais próximo do que podemos chamar de “estado digital”. A título de comparação, 97% das escolas estonianas possuem plataformas online (e isso já em 1997) e as reuniões do governo não utilizam papel desde 2000. É tudo totalmente digitalizado.

Enquanto a maioria dos países sequer imaginava o grande impacto mundial que a internet teria, a Estônia já tornava suas escolas e seu governo digital apenas cinco anos depois da popularização mundial dessa ferramenta global.

A Estônia, cujo espírito de integração econômica está fincado em suas raízes (o país fez parte da Liga Hanseática) hoje é um dos destinos mais desejados para empresas e nômades digitais no mundo. E isso tem uma razão: a sua cidadania digital.

O eResidency

Foto por rawpixel on Unsplash

Ora, digitalizar escolas e eliminar papel é fácil! Quero ver a Estônia brincar direito e digitalizar até o próprio governo.

Bem, eles entraram na brincadeira, meu caro. Aliás, não só entraram como criaram as regras e até passaram dos limites (como toda boa zoeira deve ser).

Em 2014, a Estônia resolveu lançar o seu revolucionário serviço chamado eResidency. E foi justamente esse serviço que fez o país se tornar um dos locais mais procurados por startups e empreendedores digitais.

Basicamente, o serviço oferece uma cidadania digital para quem deseja estabelecer um negócio na Estônia. A principal facilidade é a rapidez exponencial para abrir uma empresa através do eResidency: apenas 15 minutos.

Juro que não estou bêbado ou de zoeira, amigo. São realmente 15 minutos que levam para abrir uma empresa através do e-Estonia, nome do programa. A título de comparação, no Brasil são necessários mais de 100 dias para realizar o mesmo procedimento — isso com negócios tradicionais, pois uma empresa digital, cujo terreno regulatório ainda pode ser nebuloso, pode demorar até mais tempo.

Adotar o eResidency é relativamente simples: basta acessar o site e preencher os dados (o formulário está disponível em inglês). Após a aprovação, será necessário retirar o documento na Estônia — é possível retirá-lo na embaxada estoniana em seu país, mas o Brasil fechou a embaixada da Estônia, o que torna essa opção impossível para nós.

Feito isso, você receberá um cartão de identificação que possui um mecanismo inteligente. Com ele, é possível acessar todos os serviços disponíveis através de qualquer parte do mundo. Basta possuir uma conexão de internet.

E que serviços. Veja uma pequena lista do que é possível fazer com o eResidency:

  • Abrir e administrar uma empresa online — e com “sede física” dentro da União Europeia;
  • Realizar transações bancárias online;
  • Ter acesso a provedores de pagamento internacionais;
  • Assinar digitalmente documentos (relatórios anuais, contratos, etc) dentro da empresa, bem como com parceiros externos;
  • Verificar a autenticidade de documentos assinados;
  • Criptografar e transmitir documentos com segurança;
  • Declarar impostos online.

E o melhor: qualquer pessoa pode solicitar o eResidency, não importa de onde você seja ou onde more.

Para quem é útil?

O serviço, infelizmente, ainda não fornece a plena cidadania estoniana. Porém, o Ministro do Exterior do país afirmou que estão trabalhando na possibilidade de fornecer um visto especial para quem trabalha de forma digital possa ter mais facilidade em ter uma “base” para se estabelecer.

A previsão é de que esse visto esteja disponível em 2019 e permita a quem o possui ficar na Estônia por até 365 dias, incluindo um visto de trabalho de 90 dias tanto lá quanto em qualquer outro país membro do Acordo de Schengen.

Portanto, o futuro visto pode ser extremamente útil para quem trabalha de forma digital e deseja ter mais tempo para passar na Europa, visto que a sua duração é muito superior aos 90 dias que geralmente são dados aos brasileiros para ficarem no Velho Continente sem ter visto ou com visto de turista.

Além disso, possuir uma empresa na Estônia permite, como vimos acima, uma extrema facilidade de acesso ao mercado europeu, o que é muito útil para conseguir potenciais clientes.

Não é à toa que diversos profissionais e empresas, inclusive aqui do Brasil, estejam em busca de abrigo na Estônia para fugir do pesado ambiente de negócios daqui.

Conclusão

Com metade do tamanho da Paraíba e uma população menor que a da cidade do Recife, a Estônia conseguiu se tornar um exemplo e referência em tecnologia que poucos países conseguiram. E isso em menos de 30 anos.

O desenvolvimento do país é algo notável e digno de ser usado como um grande case de sucesso. Que o Brasil possa seguir o mesmo caminho.

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Luciano Rocha

Escritor freelancer, escrevo aqui todas as segunda-feiras. Para ler textos antigos, clique aqui: https://walden3site.wordpress.com