Imagem: Jucinara Reis, adaptada de Freepik.com

Vamos parar de romantizar o sofrimento?

De Saberes
4 min readJan 31, 2018

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Temos o hábito de acreditar que o sofrimento, as dificuldades, tornam as pessoas felizes e que a busca por conforto, posse de bens materiais e dinheiro é ambição desmedida, prejudicial e nos trará infelicidade. Será que somente o sofrimento e o despego material constroem histórias felizes?

Um pouco de história, para contextualizar

Meus avós são pessoas que eu amo, exemplo de retidão de caráter e generosidade. Mas também são exemplos de como a falta de oportunidades afeta a vida das pessoas e sua descendência.

Nenhum dos dois aprendeu a ler. Ele por ter que contribuir desde criança com o sustento da família. Ela, porque o pai não queria que aprendesse a escrever bilhetes para os namoradinhos (todos os irmão homens foram matriculados na escola). Ambos perderam os pais muito jovens, minha avó, aos 16 não tinha mais pai nem mãe e já era responsável por cuidar dos seus vários irmãos mais novos.
Minha avó foi casada com um homem abusivo antes do meu avô, hoje têm uma união de 50 anos e juntos criaram filhos, sobrinhos, irmãos, agregados e netos, continuam ajudando seus filhos, sobrinhos e netos como podem.

Sim, são exemplo de muita coisa boa que trago comigo, mas, vamos olhar com cuidado os pontos que apesar de serem louváveis, não podem ser romantizados, embora o discurso da demonização da busca por melhores condições financeiras nos leve a fazê-lo?

Estamos falando de dois pretos, analfabetos, que viraram arrimo de família antes da idade adulta. O que eles almejaram foi uma casa onde abrigar sua família e alimento suficiente para que nenhum de seus amados passasse fome. Os sonhos não eram para realização própria, eles eram muito cientes de que construíam o esteio para que as próximas gerações pudessem aprender a ler e ter alguma profissão. Eles sabiam que eram o chão onde as próximas gerações poderiam desenhar, plantar e colher alguns sonhos.
Estamos falando de dois SOBREVIVENTES.
E sobreviver é o que o pobre faz bem.

Cada passo alcança um privilégio, mas, as conquistas só são firmadas a longo prazo, desenhando-se através das gerações

Minha avó e o meu avô nunca puderam escolher em que trabalhar. Na adolescência, não puderam ser apenas filhos, tiveram também que ser pais.
Todos os que viveram com eles tiveram a oportunidade de serem alfabetizados, por eles, todos estudariam até concluir o Ensino Médio. Mas, a criança e o adolescente pobres sabem que seus pais batalham por sustento, pagar as contas, comprar comida… se quiserem uma roupa, um calçado, um brinquedo ou um lanche diferentes, eles mesmos tem que batalhar por isso. Assim meus tios, meus primos, minha mãe, começaram a trabalhar muito cedo também. Não eram trabalhos de meio período, o cansaço se acumulava, junto com as matérias pendentes e dos sete filhos do casal, apenas duas concluíram o Ensino Médio, sendo que uma só o conseguiu depois de adulta, casada e com duas filhas.
Eu sou herdeira dessa história, tive privilégios que as gerações anteriores não tiveram. Reconheço e agradeço. Eles foram meu chão e minha raízes, mas, eu ainda não pertenço à geração que vai colher os sonhos. Vim de uma realidade que não permite “ser o que quiser”, contudo, sou a primeira do núcleo familiar a ter diploma universitário. Também sou esteio, terra, raiz e forma para que aqueles que vêm depois de mim, tenham direito a sonhar e a escolhas que eu ainda não tive.

Existem milhões de histórias como esta: duras e reais, que tentam fazer com que você acredite que são o que todas as pessoas deveriam almejar

Eu sei que a história da minha família seria bem diferente se começasse de forma menos violadora com os meus avós. Sim, eles foram violados em suas oportunidades e o fato de sobreviverem a tudo isso faz com que um monte de gente proclame aos quatro ventos que uma vida sem dinheiro não pode ser senão sinônimo de felicidade. Que trabalhar até as costas doerem, as mãos sangrarem e criarem calos no cabo da enxada é o máximo de realização que uma alma deve almejar. Não possuir bens. Não ter dinheiro.

É assim que se romantiza a falta de mobilidade social do preto e pobre.

Vamos ter honestidade e admitir que o caminho que os pobres, os pretos, os analfabetos, os milhões de Joões e Helenas percorrem, tem pedras, espinhos e por vezes abismos até alcançar coisas que para aqueles que defendem o discurso meritocrata não é mais questão, já é garantido, básico. Tão básico que eles nem percebem que o seu ponto de partida é o ponto de chegada para milhares de outras pessoas.

Não. Os meus avós não são infelizes.
Não. Dinheiro não é essencial para a felicidade humana.
Não. Dinheiro não evita que uma pessoa fique doente.
Não. Dinheiro não faz com que a morte esqueça de você.

Mas, que tal, em vez de fazer ode ao sofrimento, você começar a pensar em uma estrada pavimentada para todos?

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