QUESTÃO DISPUTADA – SE HÁ AUTORIDADE NO ESTADO MODERNO

Luciano Takaki
20 min readJul 20, 2024

--

INTRODUÇÃO

Muitos católicos, depois de se esclarecerem sobre a origem do Estado moderno, principalmente conhecendo a influência tanto doutrinal como prática dos inimigos hereditários da Igreja, tendem a rejeitar a autoridade do mesmo. Isto é, não apenas o Estado moderno é mau por promover leis iníquas como também não deveria sequer ser reconhecido como tal.

Tal pensamento, como será demonstrado, é errôneo e perigoso. A intenção com o presente artigo é demonstrar que o Estado moderno, ademais da sua iniquidade, tem sim autoridade, ainda que defeituosa. Para tal, decidimos fazer em forma de questão disputada usando dos mais fortes argumentos contra a autoridade do Estado moderno donde usaremos para essas objeções: os argumentos tirados da própria Sagrada Escritura, um argumento tirado de Santo Tomás de Aquino e outro de razão.

O corpo de resposta, no entanto, seguirá o caminho inverso por razões didáticas, mas nas respostas às objeções manteremos a ordem.

A intenção do artigo não é legitimar o modelo do Estado moderno per se, pois ele é realmente tirânico. No entanto, isso não o faz perder a sua autoridade como se explicará mais tarde.

OBJEÇÕES

Discutiremos se o Estado moderno — que se iniciou oficialmente após a Revolução Francesa, em 1789, ainda que esteve em germe com o fim da Idade Média, mas que se consolidou durante o século XX, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, com a fundação da Organização das Nações Unidas e outros órgãos mundialistas — possui alguma autoridade. E parece que não possui.

Primeiro, ensina a Sagrada Escritura, pela boca do primeiro Papa, São Pedro Apóstolo, que “deve-se obedecer antes a Deus que aos homens” (Atos V, 29). Ademais, a Sagrada Escritura ensina também que na tripla tentação (cf. Mateus IV e Lucas IV), Satanás ofereceu todos os reinos do mundo e Cristo rechaçou, reconhecendo de algum modo que Satanás realmente tinha tal domínio já naquela época. Hoje é muito mais. Mesmo no Antigo Testamento, lemos que Raab mentiu aos agentes do governo de Jericó em favor dos espiões de Josué (cf. Josué III). Ainda temos o caso de Aod, que matou Eglon, rei de Moab, ou seja, praticou o regicídio (cf. Juízes III). Podemos ver que a Sagrada Escritura ensina que não necessariamente precisamos ser dóceis. Inclusive ensina que podemos até mesmo por fim a um tirano. Muito mais podemos aplicar ao contexto moderno, onde os atentados contra a natureza se tornaram leis. Logo, é evidente que não há de fato nenhuma autoridade por parte do Estado moderno.

Ademais, temos a autoridade de Santo Tomás de Aquino, que cita o Papa São Gregório VII: “Nós, observando o que foi estatuído pelos nossos santos predecessores, pela nossa autoridade apostólica, desligamos do juramento àqueles que por fidelidade ou por juramento estão ligados a excomun­gados e proibimos de todos os modos que lhes guardem fidelidade até que estes venham reparar sua falta” (GRATIANUM, Decretum, P. 11, causa 15, q. 6, can. 4. Nos Sactorum. apud. S.Th. II-II, q. 12, a. 2, sed contra. Grifo meu). E agora, citando o próprio Santo Tomás: “Ora, os apóstatas da fé são excomun­gados, como os hereges; assim diz a Decretal Ad abolendam. Logo, não devem os súditos obedecer aos príncipes que apostataram da fé.” (S.Th. II-II, q. 12, a. 2, sed contra. Grifo meu). Assim, fica claro que o próprio Magistério proíbe isso. Pois se excomungados, hereges e apóstatas não devem ser obedecidos, é porque não possuem nenhuma autoridade. Sendo a sociedade atual apóstata, e a sociedade é um conjunto de homens, assim devemos deduzir que o Estado moderno não possui nenhuma autoridade.

Ademais, temos ainda um argumento de razão, pois mesmo uma sociedade não cristã, como ensina Aristóteles, deveria nos conduzir à virtude. Segundo o Filósofo, aqueles que organizam a vida política deveria antes de tudo visar o aperfeiçoamento da natureza humana, i.e., ajudar o homem a viver de tal maneira que não será na medida em que o homem é homem, mas sim na medida em que tem algo de divino dentro de si, o intelecto (cf. Política, 1278 b 6–1279 b 10). Assim teríamos um Estado realmente com verdadeira autoridade pois cumpriria o mínimo do mínimo. Se o Estado já não é mais católico como deveria ser, dada a apostasia geral, ao menos deveria cuidar das meras virtudes naturais e adquiridas. No entanto, o Estado moderno sequer cuida disso. Com tantas leis contra a natureza, o Estado moderno escandalizaria até mesmo o pagão Aristóteles, que mesmo defendendo e ensinando coisas inadmissíveis (eugenia e escravidão, por exemplo), ao menos tinha o sincero cuidado com as virtudes mais elementares, desincentivadas pelo atual Estado. É impossível que tal Estado tenha alguma autoridade, pois sequer busca um mero fim natural do homem.

SED CONTRA

Mas contrariamente, ensina o Apóstolo: “Toda a alma esteja sujeita às autoridades superiores, porque não há autoridade que não venha de Deus e as que existem, foram instituídas por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus. E os que resistem, atraem sobre si próprios a condenação. Com efeito, os príncipes não são para temer pelas acções boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás o louvor dela, porque (o príncipe) é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal. É pois, necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo temor da ira, mas também por motivo de consciência. De facto, também por esta causa é que pagarás os tributos, pois são ministros de Deus, quando exercem o seu oficio. Pagai, pois, a todos o que lhes é devido: a quem o imposto, o imposto; a quem as taxas, as taxas; a quem o temor, o temor; a quem a honra, a honra. A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor mútuo, porque aquele que ama o próximo, cumpriu a lei.” (Rom. 13, 1–8). E ainda o Apóstolo: “Adverte-os que sejam sujeitos aos magistrados e às autoridades, que lhes obedeçam, que estejam prontos para toda a boa obra; que não digam mal de ninguém, nem sejam questionadores, mas modestos, mostrando toda a mansidão para com todos os homens.” (Tito 3, 1–2. Grifos meus). Ora, as palavras do Apóstolo são palavras reveladas por Deus e estas lições se aplicam até hoje e se aplicarão até o fim dos tempos. Negar isso é cair na condenação do decreto Lamentabili sine exitu, aprovado por São Pio X.

Ademais, o Apóstolo dirigiu-se aos romanos, que na época viviam no ferocíssimo e ímpio governo de Nero. Ir contra a verdadeira Religião também é ir contra a natureza e não tem atentado contra a natureza maior do que esse.

Ademais, Nosso Senhor Jesus Cristo disse ao ímpio Pilatos: “Tu não terias poder algum sobre mim, se te não fosse dado do alto. Por isso, o que me entregou a ti, tem maior pecado” (João 19, 11). Ora, o futuro do pretérito acompanhado de negação é uma afirmação. Ao dizer “não terias”, significa que Pilatos tinha realmente esse poder, ainda que seja totalmente dependente de Deus, pois logo depois disse foi dado do alto. Pilatos não perdeu seu poder mesmo podendo praticar uma injustiça, o que de fato fez.

RESPONDO

A existência de autoridade em qualquer modelo de Estado é uma necessidade decorrente da própria natureza humana. No entanto, devemos entender as devidas distinções: o Estado é uma necessidade da própria natureza humana e a autoridade é o poder advindo de Deus para governar os súditos. O fato de um governante abusar de sua autoridade para impor leis contra a natureza não necessariamente a tolhe, ainda que fique precária. A autoridade sempre existirá em qualquer um que governe um grupo de súditos. Para isso, é necessária uma extensa explicação.

O homem enquanto homem e sua natureza política

O homem nasceu para viver não apenas na sociedade ínfima, mas também na civil, como o próprio Aristóteles ensina em sua Política. Isso se dá por conta da sua própria natural que consiste em ser um composto de corpo animal e alma racional. Com essa constituição, ele vive no tempo e por viver no tempo precisa de um intelecto que obre conforme suas ações no tempo, por isso funciona discursivamente. Assim, o homem para viver como homem precisa aprender ciências e artes, pois sem isso é impossível viver bem.

No entanto, o homem não pode aprender sozinho nenhuma arte ou ciência. Nem sequer mesmo a linguagem, a primeira arte que aprendemos, aprenderíamos sozinhos. Uma criança depende geralmente dos pais para aprender a linguagem e mesmo outras coisas. Com a linguagem, aprendemos também todas as outras artes e ciências. Assim, as pessoas dependem umas das outras para aprender artes e ciências. E também dependem também com respeito às obras, pois, por exemplo, a maioria das pessoas não sabe construir um navio ou um avião e também a maioria não sabe pilotá-los. Precisamos de pessoas que saibam construí-los e pilotá-los. Também precisamos de pessoas capazes de realizar cálculos, construir prédios, organizar vias etc.

Com efeito, é necessário assim também que as ações humanas também precisem ser ordenados por um ordenador, pois com tantas pessoas trabalhando e agindo de formas tão diferentes, é de se presumir que haja também pontos de conflitos e necessidades de acordos. Assim, em certas regiões, será necessária uma unidade para que melhor se ordene a um fim determinado. Numa sociedade com tantas pessoas diferentes, mas com todas buscando um fim último determinado, é necessário um governo para todas elas para que se preserve a unidade, a ordem e ajudem-nas a viver virtuosamente, pois é mais fácil governar pessoas virtuosas do que viciadas.

Assim, demonstra-se que a sociedade civil, o Estado, a cidade, é uma necessidade da natureza humana. Aristóteles mesmo ensina que “é evidente que a cidade existe por natureza e que precede o indivíduo; pois se cada um em separado não for autossuficiente, estará igualmente às outras partes em relação ao todo” (Política, 1283 a). Citemos ainda a Santo Tomás:

“… é necessário ao homem viver em multidão, de modo que um ajude ao outro, e diversos se ocupem de investigar diversas coisas por meio da razão, por exemplo, um na medicina, outro em outra coisa, e outro em outra coisa ainda. E isto ainda se mostra evidentissimamente pelo fato de que é próprio do homem o uso da fala, pela qual um homem pode exprimir totalmente a outros o seu pensamento. … Com efeito, como os homens são muitos e cada um provê o que lhe é congruente, a multidão dispersar-se-ia em diversos sentidos se não se encontrasse também alguém que tomasse cuidado do que compete ao bem da multidão, assim como o corpo do homem ou de qualquer animal se desagregaria se não houvesse no corpo alguma virtude regitiva que tendesse ao bem comum de todos os seus membros. Considerando-O, disse Salomão [Prov. 11, 14]: ‘Onde não há quem governe, perecerá o povo’. E isso sucede razoavelmente.” (De Regno, lib. I, cap. 1).

Podemos perceber que um governo é uma necessidade decorrente da natureza humana. Leão XIII, em seu magistério, ensina praticamente subscrevendo a doutrina de Santo Tomás:

“… como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor.

“Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. ‘Todo poder vem de Deus’ (Rom 13,1).” (carta encíclica Immortale Dei, 1º de novembro de 1885)

Ou seja, que a própria natureza humana exige a existência do Estado é tanto uma verdade constatada pela razão natural como uma verdade de fé, como confirma a Sagrada Escritura (ver o sed contra) e o próprio Magistério. Assim, um anarquista pensa e prega contra a fé e por isso um anarquista é necessariamente um anticristão.

A lei a autoridade

Primeiramente, definamos o que é a lei: “certa regra e medida dos atos, segundo a qual alguém é levado a agir, ou a apartar-se da ação” (S.Th. I-II, q. 90, a. 1, corpus). Ou ainda: “o ditame da razão no que presi­de, pelo qual os súditos são governados” (idem, q. 92, a. 1, corpus). A autoridade, portanto, é simplesmente o poder de promulgar e executar as leis e julgar segundo as mesmas. Ainda há uma distinção entre a autoridade e quem a exerce, ainda que chamamos o segundo pelo terceiro.

A autoridade, enquanto poder de fazer leis, é a forma do Estado, como a alma racional é a forma do corpo humano. Pois é a autoridade que ordena a sociedade ao seu devido fim. A autoridade deve estar sustentada numa doutrina e por meio das leis ordenar a sociedade ao fim devido. O fim próximo é o bem comum da sociedade mesmo e o fim último simpliciter é a Deus mesmo.

No entanto, vamos adentrar noutro ponto: o Estado, a sociedade civil, é, em seu gênero, perfeita. Assim como o homem, enquanto composto de corpo humano e alma racional, é perfeito. No entanto, as coisas criadas, ainda que perfeitas em seu gênero, sempre são perfectíveis. Assim como o homem pode ser mais perfeito pela Graça santificante, a sociedade civil também pode ser mais perfeita como membro da Igreja e se subordinando ao poder eclesiástico. Nesse caso, seria o Estado católico.

O Estado deve ou deveria ser católico

Sendo a sociedade civil um complexo de sociedades menores composta por homens, é de se deduzir que o Estado tem necessariamente o mesmo fim último que o homem. Por essa razão, o Estado deve ser católico. O laico Jean Ousset escreve:

“É impossível que uma doutrina não reine sobre o Estado. Quando não é a doutrina da verdade, será uma doutrina do erro. Assim exige a ordem das coisas. Exige que a força obedeça ao espírito e, de fato, obedece sempre a um espírito: espírito de verdade ou espírito de demência.” (Para que Él reine, La Ciudad Católica – Speiro, S.L., 1962, p. 39)

Sendo a sociedade civil regida por leis e sendo leis obra mesma da razão, a sociedade deve estar fundamentada sobre determinado princípio e uma doutrina que a regerá, tal como o agir humano é ordenado segundo o que está no intelecto. Se o homem precisa ser católico para não apenas salvar-se como para viver de forma perfeita, também o Estado para ser perfeito e ajudar a população a salvar-se precisa ser católico. Com efeito, ensina Pio XI:

“… aos governos e à magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo acusará aos que o expulsaram da vida pública, e a quantos, com desdém, o desprezaram ou desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige que o Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e os princípios cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de administrar a justiça, quer da educação intelectual e moral da juventude, que deve respeitar a sã doutrina e a pureza dos costumes” (carta encíclica Quas primas, 11 de dezembro de 1925)

E ainda São Pio X:

“Que seja preciso separar o Estado da Igreja, é esta uma tese absolutamente falsa, um erro perniciosíssimo. Com efeito, baseada nesse princípio de que o Estado não deve reconhecer nenhum culto religioso ela é, em primeiro lugar, em alto grau injuriosa para com Deus; porquanto o Criador do homem também é o Fundador das sociedades humanas, e conserva-as na existência como nos sustenta nelas. Devemos-lhe, pois, não somente um culto privado, mas um culto público e social para honrá-lo.” (carta encíclica Vehementer nos, 11 de fevereiro de 1906)

Vemos que o Estado católico deve ser governado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim ensina Cardeal Pie de Poitiers:

“Talvez a Restauração não tenha feito mais que vós. Mas deixai-me dizer que nem a Restauração nem vós tendes feito por Deus o que é necessário fazer, porque nem um nem outro tendes elevado Seu trono, porque nem um nem outro tendes renegado os princípios da Revolução, então vós combateis somente as consequências práticas, porque o Evangelho social no qual se inspira o Estado é ainda a Declaração dos direitos do homem, a qual não é outra coisa, Imperador, que a negação formal dos direitos de Deus. Ora, é o direito de Deus de comandar aos Estados assim como aos indivíduos. Não é para outra coisa que Nosso Senhor Jesus Cristo veio à terra. Ele deve reinar, inspirando as leis, santificando os costumes, esclarecendo os ensinamentos, dirigindo os conselhos, regulando as ações dos governantes assim como dos governados. Onde Jesus Cristo não exerce esse reino, existe desordem e decadência.

“Porque nem um nem outro renegou os princípios da Revolução… porque o Evangelho social no qual se inspira o Estado é ainda a Declaração dos direitos do homem.” (Chanoine E. Catta, A doutrina política do Cardeal Pio, p. 303. Apud DANIEL LEROUX; Pedro, tu me amas?, Edições do Mosteiro da Santa Cruz, p. 48)

O Estado católico assim, deve ser membro da Igreja Católica a título de pessoa moral. O poder temporal no Estado católico está essencialmente subordinado ao poder espiritual. Esse ideal durou infelizmente durou pouco. Do Imperador Teodósio até Felipe IV, o Belo. Felipe IV vai pôr fim ao que chamamos de Cristandade.

A corrupção dos Estados e a sua autoridade

A corrupção dos Estados começou com a queda da própria Cristandade. Ela já estava incipiente em diversos escritos heréticos como de Dante Alighieri (cf. De Monarchia), Marsílio de Pádua (cf. Defensor Pacis) e Guilherme de Ockham (cf. De Imperatorum et pontificum Potestate). Dante quis separar os poderes temporal e espiritual. Marsílio de Pádua quis subordinar o espiritual e temporal tal como Guilherme de Ockham, que chegou a escrever que o “Papa, nem por direito humano nem por direito divino, recebeu tal poder, que lhe permita estender-se no seu domínio para as coisas temporais” (De Imperatorum et pontificum Potestate, cap. VI). Dante Alighieri impiamente escreve:

“Se o homem é, portanto, uma realidade intermédia entre as coisas corruptíveis e as incorruptíveis, e se todo ser intermédio participa da natureza dos dois extremos, é necessário que o homem tenha uma e outra natureza. E como toda natureza está ordenada a um fim último, segue-se que para o homem deve existir um duplo fim. De forma que assim como entre todos os seres o homem é o único a participar da corruptibilidade e da incorruptibilidade, assim também é o único entre todos os seres que está ordenado a dois fins últimos, dos quais um é o fim de seu ser enquanto corruptível e o outro é o fim de seu ser enquanto incorruptível. A inefável Providência, portanto, propôs aos homens a consecução de dois fins: a felicidade da vida presente, que consiste na operação da própria virtude, e que é simbolizada pelo paraíso terrestre, e a felicidade da vida eterna, que consiste no gozo da visão beatífica, à qual a virtude própria não pode elevar-se sem a ajuda da luz divina, felicidade esta que chamamos paraíso celestial. […] Por esta razão foi preciso que o homem tivesse uma dupla direção em ordem a esse duplo fim, a saber, a direção do sumo pontífice, para que, segundo a verdade revelada, leve o gênero humano à vida eterna, e a direção do imperador, para que, segundo os ensinamentos filosóficos, conduza a raça humana para a felicidade temporal.” (De Monarchia, lib. III, 16).

Lê-se aqui uma defesa ao Estado laico avant la lettre. Ao ensinar a herética tese de que o homem tem dois fins últimos, acaba ensinando outra heresia: de que a Igreja e o Estado devem estar separados, cada um cuidando de um fim último. Marsílio de Pádua, com efeito, também ensina:

“Tais regras não foram dadas por Cristo na Lei Evangélica; em vez disso, ele aceitou como boas as regras que foram ou seriam estabelecidas nas leis humanas e ordenou que toda alma humana as observasse e que obedecesse aos homens que governassem em conformidade com elas, ou ao menos com aquelas que não contrariavam a Lei da salvação eterna. Por isso temos, no décimo segundo capítulo de Mateus e no décimo primeiro de Marcos: ‘Dai a César o que é de César’, indicando por ‘César’ toda e qualquer lei. Disse também o Apóstolo, no décimo terceiro capítulo de Romanos, e vale repetir: ‘Que cada alma se submeta aos poderes civis’. E, do mesmo modo, no último capítulo da primeira Epístola a Timóteo: ‘Mesmo a senhores infiéis’.” (Defensor Pacis, II, 9.9)

E ainda:

“Diante de tudo isso, resta bastante evidente que Cristo, o Apóstolo e os santos tinham por opinião que todos os homens devem estar sujeitos às leis humanas, e aos juízes, de acordo com tais leis.” (Idem)

Não preciso aqui grifar nenhum trecho: as citações bastam por si para perceber por que o herege entende que o poder espiritual deve subordinar-se ao temporal. Marsílio de Pádua entendia que a interpretação das partes mais difíceis da Sagrada Escritura cabe a um conselho de legisladores do poder temporal e não ao papa e ao magistério (cf. loc.cit., II, 19.3).

É inegável que esses pensamentos influenciarão e muito os imperadores rebeldes ao papa e à Igreja. Os escritos de Guilherme de Ockham influenciarão Lutero, e os de Dante e Marsílio de Pádua influenciarão os humanistas. Daí não demorará muito para surgir os iluministas e outros pensadores ímpios como os que fomentaram a Revolução e deram o origem à maçonaria. A Revolução fez surgir o Estado laico na prática e não apenas na teoria, como foi no pensamento dos pensadores mencionados acima.

Com o Estado já sem Religião e sem Deus, não vai demorar para chegar no apogeu da impiedade: o comunismo. Não temos mais um Estado meramente laico, mas um Estado sem Deus e contra Deus. O Estado comunista já é o Estado mais antinatural de todos, pois temos aqui um Estado cujas leis atentam contra a natureza e que reprime a prática de qualquer religião, mesmo a Religião verdadeira.

No entanto, um Estado assim não pode durar muito tempo, pois um Estado tão contra a natureza tem vida curta. Atualmente, apenas a Coreia do Norte subsiste dessa forma. Até Cuba se viu obrigada a ter certa abertura. A queda da União Soviética e a abertura econômica da China nos evidenciam esse fato. Atualmente, a tendência é a de que os Estados tendam à social-democracia, um tipo de socialismo mitigado que se mescla com o liberalismo. É o mais perfeito meio para a Revolução se perpetuar. Ele pode dar certa liberdade para a Religião verdadeira, mas dá também liberdade para todas as outras sem nenhuma exceção (inclusive religiões satânicas) e promulga toda sorte de leis contra a natureza (e.g., divórcio, aborto e união civil de sodomitas).

Chegou a hora de concluirmos.

Conclusão

Vemos aqui que o Estado moderno é um resultado de séculos de mornidão, apostasia e mesmo oposição à Religião. Temos até aqui dois fatos: (1) São Paulo Apóstolo ensinando ensina submissão a um dos mais furibundos perseguidores da Igreja, Nero; (2) Nosso Senhor Jesus Cristo reconheceu a autoridade do ímpio Pilatos. Com efeito, ensina Santo Agostinho:

“Absorvemos, portanto, seu ensinamento, o qual transmitiu também por meio do Apóstolo, de que não há autoridade que não venha de Deus (Rm 13, 1), e também de que mais peca quem por inveja entrega um inocente à autoridade para ser morto, do que a autoridade mesma se o mata por medo de alguma autoridade maior. Com efeito, Deus dera a Pilatos uma autoridade sujeita à de César; por isso Nosso Senhor diz: ‘Tu não terias poder algum sobre mim’, isto é, ‘não terias esse poder que possuis’, se, por minúsculo que seja, não te fosse dado do alto. ‘Mas, porque conheço seu tamanho (e não é grande o bastante para que tenhas total liberdade), quem me entrega a ti tem maior pecado. Esse, afinal, me entregou à tua autoridade por inveja; e tu hás de exercer em mim a mesma autoridade por medo’.” (apud. S. TOMÁS DE AQUINO; Catena Aurea, In Ioannem, cap. XIX, lec. III)

Pois isso significa que mesmo os maus possuem a autoridade para governar se de alguma forma forem designados para tal. No entanto, enquanto não forem depostos por um superior ou se perdem o cargo por algum acidente, mantêm sua autoridade, mas a tal autoridade será sempre precária. Assim resolve-se o seguinte: o poder do mau governante, o mau chefe da pólis, não cessa com a promulgação e execução de leis más tal como acontece com um papa que ensina heresias. O chefe de Estado não goza do carisma da infalibilidade e nem é obrigado a ser católico para governar (conquanto seja obrigado a ser católico para se salvar). A potência para governar (promulgando e executando leis) deve permanecer para que se mantenha pelo menos as leis que, ainda de forma defeituosa, ajude a ordenar a sociedade ao bem comum ou mantenha a potência para tal. Assim é até antes preferível um governo tirânico que uma anarquia. Tal como ensina a própria Sagrada Escritura (Prov. 11, 14).

Assim, responde-se às objeções.

RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES

Quanto à primeira objeção,

devemos rejeitar a obediência às leis que vão contra a reta razão, que vão contra a natureza ou contra a Religião. É exatamente nesse sentido que São Pedro quis dizer: devemos obedecer a Deus seguindo a reta razão, a natureza e a Religião, antes que aos homens, se eles ordenarem qualquer coisa que aborreça a Deus. Ademais, na tripla tentação de Cristo, de fato podemos dizer que todos os reinos estavam formal e realmente sob o domínio de Satanás, mas não significa que eles estejam sem autoridade nenhuma. Tanto isso é verdade que lemos que Nemrod era “poderoso na terra”, isto é, tinha muito poder. A própria palavra de Deus reconheceu isso.

Tampouco podemos dizer que Raab não reconheceu o poder dos agentes de Jericó, se ela mentiu, foi porque sabia que eles executariam a autoridade sobre os espiões de Josué. Assim também podemos dizer que se Aod matou Eglon, é porque recebeu tal poder de Deus e foi inspirado para isso para que sejam cumpridas as profecias.

Ademais, sem a devida autorização de uma autoridade superior, é ilícito o católico matar um tirano e ensinar tal coisa é heresia, pois é ensinado o seguinte:

“A proposição: ‘Todo tirano pode e deve licitamente e meritoriamente ser morto por qualquer de seus vassalos ou súditos, mesmo recorrendo a ciladas, à adulação ou a lisonjas, não obstante todo juramento ou aliança contratados com ele, e sem aguardar sentença ou ordem de qualquer juiz que seja…’ é errônea em matéria de fé e de costumes, e o concílio a reprova como herética, escandalosa, sediciosa e prestante a fraudes, enganos, mentiras, traições e perjúrios. Além disso, ele declara, decide e define que aqueles que sustentem com obstinação essa perniciosíssima doutrina são hereges.” (S.S. GREGÓRIO XII; Concílio de Constança, sessão XV, Decreto Quilibet tyrannus, 6 de julho de 1415, Denzinger-Hünermann 1235)

O que responde parcialmente a segunda objeção.

Quanto à segunda objeção,

o decreto de São Gregório VII se aplica somente aos excomungados. Na época, o governante realmente perdia a sua potestade por apostasia, mas isso se dá no Estado católico, coisa que não temos hoje. A Igreja não pode atualmente sentenciar um chefe de Estado que nunca foi católico governante de um Estado que não é mais católico. Ademais, o próprio Santo Tomás ensina no mesmo local:

“Como foi dito acima, a infidelidade em si mesma não exclui o domínio, pois este foi introduzido pelo direito dos povos, que é um direito humano. A distinção entre fiéis e infiéis é fundada no direito divino, que não suprime o direito humano. Ora, quem peca por infidelidade pode, em virtude de uma sentença [de uma autoridade superior], perder o direito de governar, assim como pode também perdê-lo por causa de outras culpas. Mas não cabe à Igreja punir a infidelidade dos que nunca receberam a fé (Ad Ecclesiam autem non pertinet punire infidelitatem in illis qui nunquam fidem susceperunt).” (loc. cit., corpus)

Na resposta à primeira objeção do artigo citado, lê-se que “deve-se dizer que à época, a Igreja, ainda nova, não tinha o poder de reprimir os príncipes terrenos. Por isso, tolerou que os fiéis obedecessem a Juliano Apóstata, naquelas coisas que não eram contra fé, a fim de evitar que ela corresse maior perigo”. E Santo Tomás ensina também que devemos suportar os maus governos como se lê:

“Com efeito, ensina-nos Pedro que os súditos devem ser obedientes não só aos senhores bons e moderados, mas também aos díscolos. Porque é uma graça o suportar alguém contrariedades, sofrendo injustamente pelo conhecimento do que deve a Deus; por isso, quando muitos imperadores dos romanos perseguiram tiranicamente a fé de Cristo e se converteu à fé grande multidão tanto de nobres como de plebeus, esses merecem ser louvados não por resistir, mas por suportar pacientemente, mesmo armados, a morte por Cristo, como aparece manifestamente na sagrada legião dos tebanos”. (De Regno, lib. I, cap. 7. Grifos meus)

E isso é confirmado pelo Magistério:

“Contudo, se às vezes acontece que o poder público é exercido temerariamente e além medida, a doutrina católica não permite aos súditos levantar-se a seu talante contra eles para que não seja subvertida ainda mais a tranqüilidade da ordem e não derive, com isso, um mal maior para a sociedade. E quando as coisas tiverem chegado a tal ponto que não haja mais nenhuma esperança de salvação, quer que se apresse o remédio com os merecimentos da paciência cristã e com insistentes orações ao Senhor.” (S.S. LEÃO XIII, carta encíclica Quod apostolici muneris, 28 de dezembro de 1878)

Quanto à terceira objeção,

já foi respondida no corpo do texto da resposta. A autoridade é mantida precariamente, mas não é perdida.

--

--

Luciano Takaki

Católico tradicional, tomista engessado e austríaco incorrigível. Esse perfil é o meu caderno virtual.