Dungeon Meshi e reflexões sobre a brutalidade da vida

“A essência da vida, pois é esse comer a si mesma. A vida vive de vidas.” (CAMPBELL, Joseph)

Mylena Machado
15 min readMar 19, 2024

Após muita enrolação, resolvi assistir ao anime de “Dungeon Meshi”, ou Delicious in Dungeon se preferir. Vi todos os episódios disponíveis no streaming vermelho e devorei o mangá logo em seguida (piada intencional). Se você não sabe do que se trata, fica aqui a sinopse feita pela própria Netflix:

Masmorras, dragões e… ensopadinho de monstro!? Em uma missão de resgate em um reino amaldiçoado, um grupo de aventureiros provoca o caos e cozinha pratos deliciosos.

O gênero fantástico me atrai com facilidade. Gosto dos clichês de dragões cuspindo fogo, anões parrudos e elfos com suas visões além do alcance. Mas também adoro quando dão atenção a outros temas menos populares e quando esses estereótipos são explorados de modo criativo.

Dungeon Meshi tem anões parrudos, elfos e dragões cuspindo fogo, mas explora diversos clichês sob uma perspectiva diferente e algumas temáticas não tão populares dentro do gênero.

A organização das masmorras, as nuances entre as raças, as implicações do sonho da Marcille. Muitas coisas me chamaram a atenção, mas o que mais me agradou aos olhos foi o tema principal: comer. A forma como ele é retratado me trouxe algumas reflexões e hoje gostaria de compartilhá-las com vocês.

Já aviso que haverão spoilers para aqueles que não leram o mangá, mas colocarei um alerta antes para ninguém ser preso de surpresa.

Comer é primordial a vida. Isso é tão óbvio quanto a água ser molhada e o fogo queimar. Na obra, isso é esclarecido logo no início quando o grupo de Laios se vê num impasse: eles precisam retornar à masmorra para resgatar uma integrante, mas não possuem dinheiro e perderam boa parte de seus equipamentos.

Não importa o quanto eles sejam fortes, sem alimentos é impossível sobreviver.

Esse problema é “rapidamente resolvido” por uma ideia do líder: ao invés de se endividar para comprar rações secas, por que não comer os deliciosos monstros que florescem em abundância na masmorra?

Eficiente, entretanto um tabu.

A ideia é recebida com resistência e até repulsa por Chilchuck, o ladino halfling, e Marcille, a elfa maga. Monstros? Nojento! Quem comeria um slime pegajoso ou um mímico?! Blergh!

Explicação de Laios sobre a existência de um ecossistema dentro da masmorra. “Onde há carnívoros há herbívoros para eles comerem. Há plantas para os herbívoros comerem e água, luz e solo para nutrir essas plantas. Em outras palavras: humanos também podem se sustentar nas masmorras!”

Como não há outra solução, o trio resolve embarcar nessa deliciosa aventura.

Chilchuck aceita a ideia melhor que Marcille, a qual, mesmo se alimentando dos monstros, passa o resto da aventura reclamando sobre a situação porque comê-los é repulsivo.

Eu não consegui parar de pensar sobre o quanto o pensamento da Marcille é aplicável ao nosso mundo porque qualquer comida fora dos nossos “padrões ocidentais mais básicos” é tratada da mesma forma.

Carne de cavalo, de jacaré, miúdos como cérebro e testículos, insetos em geral…

Eu não vou ser hipócrita, se alguém me oferecer insetos fritos eu educadamente recusarei. Contudo, a Marcille possui um papel importante nessa recusa, e resistência, em provar algo desconhecido e tido como, no mínimo, estranho.

Embora o primeiro prato não tenha sido tão diferente assim, um escorpião gigante muito semelhante a uma lagosta com cogumelos (que andam) e slimeok, o slime é realmente estranho —, Marcille acha a ideia de comer monstros um horror. E não podemos culpá-la porque o mundo funciona assim. Isso é o senso comum: os monstros são inimigos e criaturas nojentas que devem ser evitadas ou combatidas por sua violência e perigo.

Monstros são criaturas fictícias as quais, em geral, causam repulsa ou medo e normalmente são representados como perigosas e ameaçadoras.

“São, por excelência, a marca explícita de algo fora dos pré-supostos de ordem, do “natural” ou, no mínimo, do conhecido. Constantemente, a monstruosidade é entendida como uma transgressão das leis estabelecidas, visando através de sua presença, inspirar temores e dúvidas ou punir contra infrações.”²

Assim, os monstros podem ser entendidos como criaturas diferentes, que se afastam do “mundo normal”, contundo ainda habitam entre nós. Podemos entendê-las como criaturas desumanizadas. O monstro é o Outro, a materialização do externo, do que está fora.

“São híbridos perturbadores cujos corpos externamente incoerentes resistem às tentativas de incluí-los em qualquer estruturação sistemática. Logo, o monstro é perigoso, uma forma suspensa entre formas que ameaçam destruir distinções.”³

Por outro lado, a figura monstruosa também pode provocar fascínio, encanto e dúvida, também ser uma fonte de curiosidade e desejo e encarna um poder além da compreensão humana — guarde isso.

O monstro em seu ideal clássico era identificável através do corpo, sua estrutura física, e não por seu caráter. Contudo, com a associação do conceito de monstro à figura demoníaca na baixa Idade Média, o monstro “passa a ser entendido apenas como a encarnação de algo essencialmente destrutivo, perdendo qualquer outra face que não a da malignidade.”.

A história do conceito de monstro e seus desdobramentos atravessa debates riquíssimos envolvendo política, raça, sexualidade e etc. Eu poderia me aprofundar mais sobre essa concepção, mas hoje nos bastam essas breves reflexões.

Ao que tudo indica, a construção dos monstros em Dungeon Meshi passa por esse raciocínio, sobretudo a parte de inspirar temores e transgredir o que é natural. Portanto, o normal é ter repulsa dessas criaturas e o lógico é não tratá-las como comida porque elas são ameaçadores e abomináveis.

Entretanto, após experimentar a refeição finalizada, Marcille admite que ela é saborosa. E, embora ela continue com as reclamações, ela sempre diz que os pratos são gostosos. Talvez se lhe apresentassem a refeição sem dizer os ingredientes, ela nem reclamasse porque os pratos são sempre muito bem feitos e muito semelhantes a “comida normal”.

A primeira tentativa de Laios com a cozinha monstruosa é um desastre. Senshi, o anão parrudo, é fundamental nessa questão porque é ele quem detém os conhecimentos necessários para transformar os monstros em refeições deliciosas. Ele sabe como limpar as carnes, quais são as partes mais saborosas de cada monstro, o que é comestível e o que não é, como combinar cada sabor, textura e etc.

E isso se aplica a qualquer ingrediente. Se você não souber o mínimo sobre higiene, pontos de cozimento e sabores, sua comida vai ter gosto de desgraça.

As comidas e seu preparo são muito bem detalhados, um dos elementos mais divertidos da obra na minha opinião. Dá pra perceber que a autora fez uma boa pesquisa, ou pelo menos é uma entusiasta do assunto. Até mesmo o nível nutricional dos alimentos é levado muito a sério pelo Senshi. Vendo de fora, tudo parece apetitoso e casar muito bem.

Marcille enfatiza: ela não vai comer nada anti-higiênico, como morcegos e ratos gigantes. Humanoides, como goblins da floresta, estão fora de questão.

Como dito antes, Marcille não cessa as reclamações sobre sua nova dieta. Ela até enfatiza alguns pontos sobre higiene e humanoides. Esse último é até questionado por Laios no encontro com os tritões.

Afinal, o que seriam, na realidade, essas criaturas humanoides?

Laios faz esse questionamento porque, do ponto de vista biológico, eles não parecem ser tão relacionados assim com os humanos.

O líder explica que há dois tipos de tritões: os mamíferos, que são as sereias bonitas que ganham adaptações em live-action, e os tipo peixe, os quais mais parecem criaturas lovecraftianas. Eles colocam ovas, portanto não possuem mamilos ou umbigo, e possuem guelras. Como espécie, eles são ainda menos relacionados com humanos que vacas e porcos… ou ele acha.

Chilchuck fica claramente perturbado com a constatação porque as palavras de Laios fazem sentido, entretanto os tritões lhe parecem inteligentes o suficiente para usar armas e possuem braços e dedos humanoides. O ladino, portanto, rejeita a ideia de comê-los e Laios questiona o porquê. Por que vacas tudo bem, mas tritões não? O halfling responde que ele apenas sente que é errado. Laios reage com raiva, mas logo compreende o que o amigo quis dizer.

É uma questão moral, os tritões apenas parecem humanos demais.

Marcille prefere comer coisas normais, como aves ou frutas.

O mais engraçado é que depois dessa fala ela come uma torta de frutas, de monstros planta, e carne de frango, de cocatriz.

Os pratos monstruosos são inúmeros, tão vastos quanto as criaturas existentes dentro da masmorra. E o ecossistema citado por Laios lá no primeiro capítulo retorna, tanto nas palavras de Senshi, quanto nas de Marcille, cujo um dos sonhos é criar uma “masmorra segura”.

“Agora que eu paro pra pensar nisso… Os tritões comem os peixe-lâmina, Krakens comem os tritões. Nós matamos o Kraken e agora os peixes pequenos estão comendo ele. Laios comeu o parasita do Kraken… E agora ele tem um parasita de um parasita cavando seu estômago. Mais cedo eu estava me gabando sobre sobre “proteger o ecossistema”, mas nós já nos tornamos parte do grande ciclo da vida nessa masmorra.”
“Sabe, essa masmorra… Seu ecossistema aparentemente leva em conta o número de monstros mortos pelos aventureiros. Quando nós matamos os monstros, isso na verdade ajuda a manter o funcionamento regular do ecossistema. Se os monstros forem deixados em paz, eles vão “transbordar” para o vilarejo mais próximo. Por outro lado, o vilarejo convoca os aventureiros para cuidar dos monstros. É um sistema bem planejado.”

Marcille, Laios e Senshi compreenderam que a masmorra é um organismo próprio não muito diferente do mundo externo. Os dois ambientes operam pelas mesmas regras básicas e compartilham elementos mais semelhantes do que alguém poderia achar a primeira vista. É uma visão bem mais perceptiva do que qualquer aventureiro comum pareceu ter, visto que todos eles estão na masmorra pelos tesouros ou por um trabalho lucrativo.

Agora nós iniciaremos a parte com os spoilers pesados do mangá. Se você não leu e prefere se surpreender, eu recomendo parar a leitura por aqui. Se você não se importa com isso ou já terminou de ler: vem comigo!

Após ser atacado por uma súcubos, o leão alado entra no sonho de Laios para ter uma conversa, no mínimo, interessante. Claro, sabemos que o grande antagonista estava manipulando o guerreiro o tempo inteiro, contudo, o teor dessa conversa não deixa de ser instigante.

O leão alado diz que Laios precisa perceber que ele é o salvador do reino. O leão criou a masmorra e todos os monstros para proteger o reino e a população como um pedido de Thistle, o mago louco. Muitos aventureiros foram até a masmorra procurando ouro e eles pavimentaram um caminho sangrento pelos monstros, assim como através dos residentes que se tornaram espíritos. Entretanto, Laios é diferente.
Laios atenta para o fato de que ele também matou alguns monstros e o leão não nega, contudo, no caso dele as coisas foram diferentes. Laios mostrou seu amor pelos monstros. Por ele tê-los comido, ele não deixou suas mortes serem em vão.

Quero me atentar aqui para a afirmação sobre Laios ser diferente. Mais uma vez, embora o leão estivesse manipulando o nosso herói para seu próprio benefício, ele não estava mentindo.

Laios é diferente porque ele vê os monstros sob uma outra perspectiva.

Lá no início da história, o líder do grupo confessou gostar dos monstros. Ele sempre teve interesse pela maneira como eles viviam e pelos seus tipos até chegar ao ponto de Laios pensar sobre o gosto deles. E isso fica bem evidente ao longo da narrativa com seu livro de anotações e com os conhecimentos aleatórios, soltos por ele de ocasião em ocasião.

Laios é um grande nerd de monstros.

Ele não os vê como simples obstáculos a serem ultrapassados, ele os enxerga como seres vivos. Criaturas como qualquer outras que, embora possuam características distintas dos animais, possuem um modo de vida semelhante aos deles, com o extra de serem mais agressivas e alguns muito mais fortes.

Entretanto, é claro, se você entrar no território de uma leoa e ela estiver com fome ela vai tentar te matar. Essa é a natureza das coisas, afinal. Matamos para comer.

Brutal, mas natural.

Ah, mas e o vegetarianismo/veganismo? Sim, esse é um modo de viver, embora certas nuances precisem ser pontuadas nessa filosofia de vida, como consciência de classe e etc. Contudo, o ponto aqui é o ato primordial de comer no sentido de um morrer para que o outro possa viver, um dos temas abordados pela obra.

O próprio leão enfatiza que Laios é diferente porque ele não matou apenas por matar, ele o fez porque precisava sobreviver. Portanto, ao comer os monstros que ele matou, ele honrou suas mortes. A sensação que essa fala me passou foi como se o leão enfatizasse algo sagrado.

Mas os outros aventureiros também matam para sobreviver, já que são atacados. Se não os matarem, serão mortos por eles.

Um ponto válido, entretanto, os aventureiros comuns descem nas masmorras para enriquecer. Eles não se interessam pelos monstros mais do que como inimigos a serem enfrentados, eles não mataram os monstros para que pudessem nutrir sua vida.

Embora Marcille tenha dito no início que algumas pessoas já haviam comido monstros — e que existam alguns monstros como iguarias ao redor do mundo, como os insetos tesouro e o slime — em momento algum a história mostra alguém como Laios, com profundo interesse pela biologia e modo de vida dos monstros e a agência para honrar suas mortes através da comida.

A pessoa mais próxima disso é o Senshi, que preferiu viver na masmorra, adaptando-se a ela. O anão também vê os monstros como fonte de vida e nutrição, parte do ciclo da vida da masmorra, e preocupa-se com o equilíbrio do ecossistema.

E me aprofundo um pouco mais: embora o leão tenha falado sobre Laios ser o salvador do reino por ter uma visão diferente dos monstros apenas para manipulá-lo, ele, mais uma vez, não estava errado. No fim, Laios se tornou rei não apenas porque matou o demônio, mas também por ser capaz de ver diferentes criaturas como iguais. Ele sempre teve compaixão por humanos e por aqueles diferentes dele, embora tenha muito desinteresse pela humanidade devido às situações ruins de sua infância e adolescência.

O próprio Laios percebe que os monstros e o demônio são apenas seres vivos.

“Certo, deve ter sido assim originalmente, mas eu percebi algo depois de falar com ele. “Demônios usam desejos como sustento para crescer.” É, na verdade, um ser vivo com esse conceito de sua natureza intrínseca. Ao consumir os desejos humanos, o próprio demônio transformou-se demais em humano. Embora ele possa entender o que faz as pessoas felizes e o que elas odeiam, isso também significa que ele não pode se libertar de pensar como um humano.”
“Agora o demônio é incapaz de se conter de fazer coisas que antes não precisava. Não é mais invencível! O momento que criaturas comem também é o momento no qual elas estão mais vulneráveis.”

Quando a obra passa para a visão do leão alado, vimos que ele chegou ao mundo sem inteligência e emoções. Curioso com a fome interminável das criaturas do mundo, ele resolveu imitá-las e descobriu o que era ter fome e tê-la saciada. Ao mesmo tempo, ele aprendeu que naquele mundo, coisas que eram consumidas deixavam de existir.

Nessa parte eu gostaria de saber japonês para ter acesso ao original porque alguma coisa na tradução das scans pode ter se perdido. Particularmente, como uma boa fã de Fullmetal Alchemist, entendo que as coisas se transformam. Sobretudo quando se trata de comida e na temática proposta pelo mangá. Não diria que as coisas “deixam de existir”, apenas que elas se transformam em alguma outra coisa.

De qualquer forma, o demônio também aprendeu que os desejos humanos possuíam mais camadas em comparação a aqueles que já havia experimentado por sermos criaturas com sentimentos mais complexos. Assim, quanto mais o leão saciava os desejos dos humanos, mais complexos os seus sabores ficavam, exatamente como uma refeição: quanto mais sabores você combina, mais complexo o prato se torna—é claro, desde que você saiba o que está fazendo.

Como é revelado no final, o desejo do leão alado de consumir desejos era apenas o seu apetite e foi isso o que o deixou mais humano, que o ligou àquele mundo. Ao compreender um ato primordial como comer, o demônio se atrelou a humanidade. O monstro, portanto, perdeu seu poder além da compreensão humana e se tornou “derrotável” se lembram do conceito de monstro discutido lá em cima?

“Eu gostaria de saber… Normalmente você seria uma existência além da compreensão humana. E esse “desejo” que um ser como você está completamente fixado…”
“Quanto mais você come, mais você o quer. Para satisfazer esse desejo… Você começa a achar que você fará qualquer coisa. Isso tem gosto da força que impulsiona a própria vida.”
“Como você possui um estômago sem fundo, essa coisa é como um veneno para você. E a razão pela qual você está aprisionado a esse mundo. Mesmo que você seja algum tipo de ser extraordinário de um mundo diferente… aqui no nosso mundo você vai ter que obedecer as nossas regras! Isso significa…”

O que faz o leão alado ser compreensível para a humanidade é o seu apetite porque ele é algo inerente a qualquer criatura viva no mundo, coisa que não existia no “infinito”. O apetite é um dos desejos mais primordiais que existem para as criaturas vivas.

Algo que também me chamou atenção é o comentário do Laios sobre o sabor do apetite do demônio: “Isso tem gosto da força que impulsiona a própria vida.”

E é exatamente isso: o apetite é a força motriz da vida porque é através dele que podemos comer. Comer é necessário para manter a vida e, para comer, nós matamos. Nas palavras do mestre Joseph Campbell no livro “O poder do mito” (1998, pág. 44):

“Você não consegue se ludibriar comendo apenas vegetais, tampouco, pois eles também são seres vivos. A essência da vida, pois é esse comer a si mesma. A vida vive de vidas.”¹

Isso já vinha sendo construído de modo mais explícito desde a luta contra o dragão vermelho quando Senshi constata que o grupo chegou num nível no qual eles não podem vacilar. De repente, a obra começa a tratar sobre a morte com mais clareza.

“Pense nos monstros que nós comemos antes. Houve algum deles que não lutou para sobreviver? Aqui embaixo é comer ou ser comido. Se nós não contra atacarmos com tudo que temos nós acabaremos como comida de dragão.”
“É comer ou ser comido! Se você vai continuar comendo… Então eu vou comer você para garantir a minha própria sobrevivência!”

Brutal, visceral, mas perfeitamente natural.

Como eu comentei lá em cima, se você entrar na área de um predador faminto você vai ser comido. Essa é a vida.

Ainda no livro “O poder do mito”, Campbell (1998, pág. 44) utiliza a troca de pele das serpentes como uma metáfora para a vida:

“O poder da vida leva a serpente a se desfazer de sua pele, exatamente como a lua se desfaz da própria sombra. A serpente se desfaz da pele para renascer, assim como a lua se desfaz da sombra para renascer. São símbolos equivalentes. Às vezes a serpente é representada como um círculo, comendo a própria cauda. É uma imagem da vida. A vida se desfaz de uma geração após a outra para renascer.”

Esse é o ciclo da vida, é o renascimento. As coisas podem ser transformadas através da morte. Um morre para que outro renasça, um morre para que o outro continue a viver.

Não é uma cobra mordendo a própria cauda, mas…

Campbell dedicou sua vida aos mitos e a tentar compreendê-los. Ele afirma que o caráter comum dos temas nas histórias míticas que permeiam o mundo ronda os princípios mais profundos da vida, a experiência de estar vivo, em exigência da pisque humana. Isto é, os mitos trabalham com os temas intrínsecos à vida humana, aqueles que permeiam a vida de qualquer ser humano, independente de sua cultura, idade, gênero, época na qual vive e etc.

Assim como amar, envelhecer, morrer e etc., um desses temas é comer e por ele passamos pela morte.

Campbell também acredita que uma das funções da mitologia é relacionar você com sua própria natureza e com o mundo natural do qual você faz parte. Ou seja, os mitos te ajudam a colocar-se em acordo com a natureza exterior, a natureza do mundo, e com a nossa própria, a interior. Os mitos te auxiliam na jornada de vida, a passar pelas suas diferentes fases e pelas situações que nela surgem, inerentes a qualquer ser humano.

“Pois bem, um dos grandes problemas da mitologia é conciliar a mente com essa pré-condição brutal de toda a vida, que sobrevive matando e comendo vidas”

Dungeon Meshi mistura o gênero fantástico a esse tema primordial e o desenvolve de modo muito interessante. Os monstros não são degraus para que os protagonistas subam na sua busca por poder, tampouco um pano de fundo para mostrar o quanto Laios e seu grupo são fodões, eles são elementos fundamentais para a narrativa.

Ao longo de toda obra é construída a ideia de que a vida necessita de vidas e que o equilíbrio do grande ciclo da vida deve ser preservado.

E tudo isso nos leva a um dos painéis mais bonitos do mangá:

Isso é a vida em sua forma mais primal.

Enquanto eu relia minhas anotações no livro “O poder do mito” para escrever este artigo, eu encontrei uma foto muito semelhante ao painel acima. Não posso afirmar com certeza se houve uma inspiração, mas a semelhança é inegável. Achei a comparação entre as duas imagens interessantíssima, sobretudo pela inversão de papéis que elas apresentam.

Foto tirada por mim da página 46 do livro “O poder do mito” de Joseph Campbell.

É muito comum encontrar nos mitos histórias nas quais a vida surge de uma morte. Aqui vai um exemplo retirado do livro “O poder do mito”:

“Existe um importante mito, da Indonésia, que fala dessa era mitológica e seu término. No início, de acordo com essa história, os ancestrais não se distinguiam, em termos de sexo. Não havia nascimentos, não havia morte. Então uma imensa dança coletiva foi celebrada e no seu curso um dos participantes foi pisoteado até a morte, cortado em pedaços, e os pedaços foram enterrados. No momento daquela morte, os sexos se separaram, para que a morte pudesse ser, a partir de então, equilibrada pela procriação, procriação pela morte, pois das partes enterradas do corpo desmembrado nasceram plantas comestíveis. Tinha chegado o tempo de ser, morrer, nascer, e de matar e comer outros seres vivos, para a preservação da vida. O Tempo sem tempo, do início, tinha terminado, por meio de um crime comunitário, um assassinato ou sacrifício deliberado.”

Foi através de um ato brutal e primal que a vida surgiu, foi através de um ato primal e brutal que Laios salvou incontáveis vidas.

Laios era o escolhido da profecia porque foi o único capaz de perceber o leão alado, o demônio, como apenas mais um ser vivo e, como um ser vivo, para assegurar sua sobrevivência e de todos os outros, Laios precisou devorá-lo. Assim, como já discutimos, o monstro deixou de ter uma força incompreensível para o ser humano e se tornou “derrotável”.

Laios não derrotou o grande vilão com o poder da amizade e um super golpe aleatório cheio de firulas — que eu gosto também, que fique claro — , mas com algo bem construído durante a narrativa: sua própria astúcia e comer.

Se você não leu/assistiu, fica aqui a recomendação. O início é bem leve e divertido e mais para o meio as coisas se tornam um pouco mais complexas e explícitas, mas nada mirabolante, a leitura continua divertida. É um excelente mangá com apenas 97 capítulos.

Espero que tenham gostado das minhas pequenas digressões! Não se esqueçam de se manterem hidratados e de comerem frutas.

Até a próxima!

REFERÊNCIAS:

¹ CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. 16. ed. São Paulo: Palas Athena, 1998.

² http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=32 (https://comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=29&id=340)

³ COHEN, J. Jerome. Monster Theory: Reading Culture. University of Minnesota Press.

Muito obrigada por ter lido até aqui!

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Mylena Machado

25 anos. Estudante de Letras. Apaixonada por escrita e nerdolices aleatórias. Atualmente muito empenhada no TPK.