“What a piece of work is a man” (Hamlet)
À primeira vista, A Mosca na versão do Cronenberg é o Diogo Mainardi se transformando no Tadeu Melo. Mas o ponto é a personagem de Geena Davis, Veronica, só catar boy-lixo.
Tem quase um subtexto anos 50, de “cuidado com a ciência”, aplicado ao darwinismo social (e à ideia de eugenia e do sonho de aprimorar a evolução humana): ao fim, a psique de Veronica é mais bem adaptada que a de Brundle-Fly e a do outro boy-lixo.
E a chave é o sonho da personagem. (Cronenberg diz que numa cena deletada, em vez de uma pupa, Geena Davis dava a luz um bebê-borboleta.) Só Veronica sonha, só ela sai inteira.
O personagem de Geena Davis termina o filme quase sem arranhões. Já os boy-lixo se revelam fisicamente sem pé (e João-sem-braço) nem cabeça.
Críticos da época falaram de Aids; Cronenberg reiterou em várias entrevistas que se tratava de velhice (e da degeneração do corpo).
Mas parece, em retrospecto, uma retomada da fala de Hamlet a Rosencrantz e também um estudo do papel da mulher no início dos anos 80.
Ainda a respeito dos anos 50 e do tipo de contos de moralidade sci-fi, pirateando ou subvertendo HG Wells e Verne, o filme é cheio de inversões e reversões dos tropos e clichês daqueles filmes. Logo de cara, Geena Davis entrega a meia a Jeff Goldblum sem perder os sapatos. É, como resenhista costuma dizer, emblemática, ao ponto do fetiche, a quantidade de mulheres perdendo os sapatos, mesmo quando não há monstros gigantes nem são elas os monstros gigantes nesses filmes.
Seria Cronenberg o mais canadense dos feministas?