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6 min readMar 20, 2017

DONKEY KONG COUNTRY 3: DIXIE KONG’S DOUBLE TROUBLE! | GUILHERME ALVES

Tem uma diferença essencial entre os desenhos da época de quando eu era criança e os desenhos de hoje. Ou talvez a diferença seja nas crianças e não nos desenhos, mas me acompanhem: apesar de já ter um ou outro bobão que ficava forçando a Teoria Ash em Coma, nós nos satisfazíamos com o que tinha ali na televisão mesmo. O Tom e o Jerry se odiavam por serem um gato e um rato, e mesmo nos episódios que os mostrava agindo de maneira que tivessem alguma simpatia um pelo outro e instigavam nossa imaginação, fazendo-nos pensar neles como seres reais que se desenvolviam como personagens a ponto de, após passar tanto tempo juntos, notarem que precisavam um do outro, no fim das contas estariam trocando agressões de novo nos próximos dez minutos, depois do intervalo do Sábado Animado, antes de começar O Gigante de Ferro.

A rivalidade entre os personagens de desenhos adultos como o Batman e o Coringa é explorada até hoje em suas dezenas de iterações, mas a raison d’être é sempre a mesma, aquela coisa do egoísmo, de um não conseguir existir sem o outro já que eles são o que dá sentido às existências de seus rivais. Dá pra tirar bastante coisa disso, e é por isso que perduram tanto, mas são mensagens que as crianças não entenderiam ou que pelo menos não ligariam por pelo menos uns vinte anos caso entendessem em um nível subconsciente. É por isso que essas não são as lições de Tom & Jerry — o que importava ali era o universo que cada episódio proporcionava, seja o de conflito, o de parceria, o de ciúmes. São coisas essenciais, que as crianças até fisgavam, mas não era o que ficava em suas mentes. O que ficava era a música sempre acompanhando os movimentos, o Tom pisando na pá na frente, atordoado, pisando na pá de trás, atordoado, pisando na pá da frente e assim por diante.

As crianças que cresceram assistindo esses desenhos hoje fazem seus próprios desenhos, só que elas não se lembram direito de como era. Os desenhos saem com pretensões de grandes universos e com muito foreshadowing, red herrings, etc, já que elas, como eu, leram muito o TV Tropes durante a adolescência. Então ficam pistas e discussões e casaizinhos para serem destrinchados na internet. O universo do desenho nunca é o que ele mostra na TV. Não é mais o suficiente. O universo é o que as pessoas criam em conjunto e consegue mais notas no Tumblr, o universo é o que mostra mais progresso, o universo é o que os outros decidem, e não o que você decidia ali, enquanto assistia, sozinho, com a própria imaginação.

Donkey Kong Country 3 é o jogo de um desenho que nunca existiu. Um desenho daquela época, mesmo. E ele não é o único — a grande maioria dos jogos de plataforma que saíram nos anos noventa e tinham algum mascote bonitinho e antropomórfico seguiam a mesma lógica, ou a mesma falta de lógica, dos desenhos que passavam na TV. Até no quesito estético, mesmo, todas as regras dos grandes cartunistas dos anos 50 que criavam personagens facilmente identificáveis através de silhuetas e de seus movimentos, e que quando terceirizavam a produção de episódios eram mais chatos do que a Nintendo fazendo o mesmo para os seus jogos nos anos dez. É legal como as regras parecem vir de pontos mais simples. A macaquinha, por ser menina, tem cabelo comprido. Por ter cabelo comprido, pode girá-lo como um helicóptero e atravessar buracos muito mais compridos. O bebê, por ser menino, é bem mais forte, mesmo sendo um bebê. Então ele segura os barris com os braços e não com o cabelo, já que ele é parrudão. Nós sabemos que no primeiro jogo roubaram as bananas, no segundo jogo roubaram o Donkey Kong, e no terceiro isso na verdade não importa tanto, já que temos um barquinho e dá pra explorar o mapa do mundo quase que livremente. Isso parece não ter nenhuma limitação, e ficamos tentando descobrir o que fazer com as quatro pedrinhas dispostas de maneira esquisita no meio do mapa. Nesse caso acontece algo, mas não tem nada atrás do castelo do chefe final, como parece ter.

Mas de onde vem os macacos? O que está além daquele pequeno arquipélago? Por que os inimigos deles são jacarés? Em uma fase de água nadamos normalmente, mas nessa aqui os comandos ficam invertidos. Existem alguns padrões que ficam se repetindo: fábricas, cachoeiras, o elefantinho, as florestas, os desfiladeiros, mas todas elas são diferentes umas das outras. Cada fase é um episódio daqueles de Tom & Jerry, que tem novas regras, até se justificam pelo lugar onde fica a bandeirinha no mapa, mas o que importa é só o que está lá. O que importa é que os comandos são ao contrário, que as abelhas matam em um ataque só, que alguém predispôs os barris cheios de setas mesmo que fosse mais fácil só colocar uma escadinha.

É claro, nós tivemos aquela animação horrenda de Donkey Kong depois, assim como tivemos o desenho do Mario, de Zelda, mas eles não eram tanto um desenho quanto o próprio jogo. Eles eram feitos para serem desenhos, enquanto os jogos eram feitos como jogos e, por senso-comum, acabavam se parecendo com desenhos.

(os desenhos de Sonic eram legais [tirando o Underground e o X] embora não tanto quanto os jogos)

As crianças ainda param e sentam religiosamente em uma determinada hora do dia para poder assistir desenho ou já vão direto no serviço de streaming a hora que querem? Donkey Kong Country 3 funcionava tão bem justamente por estar sempre lá no Super Nintendo em momentos que não tinha nenhum desenho passando na TV. Aí ligávamos o videogame e jogávamos, já que não tínhamos como assistir. E quando acabava o jogo e não havíamos passado na feira para comprar outro continuávamos jogando, descobrindo organicamente o que significavam as bandeirinhas amarelas e até que se girássemos algumas vezes naquelas pedras aparecia um vulcão com fases secretas. No outro dia de manhã dava pra ver desenho de novo, então o videogame ficava desligado, esperando, como se tivéssemos pausado o episódio de Dragon Ball no Crunchyroll até chegarmos da escola.

Talvez jogos de plataforma dos anos 90 fossem o nosso Netflix, mesmo. Nosso Netflix, Youtube, Spotify, etc. A única coisa que podíamos fazer a qualquer momento (com ordem dos pais, é claro), como um entretenimento reserva que nos tomou tanto tempo que acabou virando uma parte muito maior das nossas vidas do que o esperado, só pela superexposição.

E eles também eram a amarelinha e pião e empinar pipa da geração antes da nossa. É um limbo esquisito, e por isso muitas vezes os “jogos de plataforma de mascote” de hoje em dia não fazem tanto sucesso. Ou eles são feitos para nos fazer lembrar de como era, como serão as remasterizações de Crash, mesmo que Crash ainda esteja completamente jogável e bonitinho através de emuladores mas talvez menos acessível do que uma caixinha na loja; ou coisas como o novo Ratchet & Clank, que acabam existindo mais para satisfazer adultos que gostam de jogos do que para serem universos infantis. Tipo, tem uma arminha lá no R&C que diminui a resolução dos monstros, os fazendo virar uns quadradinhos como se fossem pixels. Uma criança entenderá isso? Talvez não. Talvez daí os pais dela tenham que explicar. Isso é legal, mas poxa. Não é nem que as crianças sejam culpadas por isso, mas não existe mais espaço para o mesmo tipo de criação daqueles anos anteriores, a não ser que sejam justamente para fisgar nós, mais saudosistas, e não os nossos filhos ou sobrinhos.

Então é isso o que dá pra fazer: antes de mostrar o Ratchet & Clank, o Jak, o Sly, o Knack e o remaster de Crash pras crianças, mostrem Donkey Kong Country. Mesmo que seja num emulador de celular. Eu já vi crianças de 12 anos no facebook compartilhando “se você jogou isso sua infância valeu a pena!” e uma imagem de Sunset Riders. Ela provavelmente jogou no emulador de celular. Em primeiro momento até parece revoltante, em uma digestão mais ranzinza, mas ei, o jogo ainda existe e ainda é jogado por crianças de agora. Talvez não tenha o mesmo sentido pra elas que tinha pra gente, mas acho que o que é mais bonitinho é justamente a mutação desses produtos através das épocas mesmo que todos eles tenham sido lançados em sua totalidade lá nos anos 90.

Na primeira vez que passou o episódio da Dixie enfrentando a aranha foi muito fácil, já que ela segura o barril pra cima mesmo, mas umas semanas depois, no reprise, você só tinha o Kiddy e em vez de manter a posição precisava jogar o barril para cima antes da aranha descer totalmente. Não dava pra fazer isso com o que passava na TV. A falta de arquitetura cronológica se refletia não apenas nos horários flexíveis (o videogame, teoricamente, poderia ser ligado a qualquer hora) como na própria concepção do que acontecia, que nunca era totalmente talhada em pedra. O nosso controle era espetacularmente nosso. Não apenas um desenho que nunca existiu, mas um que nós mesmos dirigimos, mesmo sem nos dar conta disso.

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