Do início ao fim, Persona 3 vai deixar claro que você está jogando um jogo sobre morte. A mensagem é martelada na sua cabeça desde a primeira frase, quando diz que o tempo não espera e nos leva ao mesmo fim, e é representada de diversas maneiras ao longo das 80 horas, igualmente tristes e felizes, que passamos com os estudantes da Gekkoukan High School. Mas a morte, apesar de importante na história, é apenas um lado, ou melhor, uma das causas daquilo que pesa como uma sombra sob os personagens que encontramos.
Perda.
Todos os personagens de Persona 3 são perdedores, dos que compoem o elenco principal até aqueles com quem você pode criar um Social Link pela cidade. Não no sentido de serem os perdedores da escola — até porque, Mitsuru, né gente — mas no sentido de terem perdido algo. Algumas vezes esse algo foi a própria morte de um parente ou amigo, em outros casos foi um relacionamento, uma estrutura, uma família, uma chance.
Em todo caso, há perda e luto, é como se o pior já tivesse passado, mas as pessoas ainda não processaram o que aconteceu, não andaram pra frente. Elas estão acorrentadas e presas, com um peso no coração que as impede de alcançar. É um sentimento agridoce, expressado através das músicas, através da invocação dos Personas — aqui feita com o ato de atirar na cabeça, algo pode ser interpretado como uma tentativa de encerrar o sofrimento — e de tantos outros momentos. O mundo de Persona 3 vive em luto, em perda, e com isso é levado ao medo.
“Ninguém me disse que o luto se parecia tanto com o medo,” diz C.S. Lewis em A Anatomia de Uma Dor. Isso explica bastante do que se passa no jogo. Os personagens de Persona 3 ainda estão vivos, ainda respiram e, quem sabe, as coisas podem melhorar. Mas eles não querem andar pra frente, eles não tem fé num dia mais brilhante, porque estão presos ao medo de perder novamente, de ter suas esperanças destroçadas e então levantarem os olhos pra ver uma vida de solidão e angústia à sua frente. Em outras palavras, eles tem a maior de todas as bads.
Persona 3 declara essa condição de aprisionamento na música Burn My Dread, que diz “I once ran away from the god of fear. And he chained me to despair.”
Mas a mesma música também diz:
“I will burn my dread. This time I’ll grapple down that god of fear, and throw him into hell’s fire. Burn my dread. I will shrug the pain and run ‘till I see the sunlight again.”
Esse verso da música ousa ser esperançoso, ao contrário de todo o resto do jogo, que passa uma sensação de amargura, que deixa a entender que entramos num mundo perdido, onde uma entidade de morte suprema é invocada pelo coletivo porque o esquecimento e o nada são opções mais agradáveis ao seu coração do que mais um dia aguentando o sofrimento, a perda da vontade de viver.
Durante o jogo todo encontramos pessoas em depressão, mortas por dentro — um estado representado de forma literal durante a Dark Hour, período onde ocorrem os combates do jogo, quando todos aqueles sem o potencial são transformados em caixões - mas no meio de toda essa escuridão e tristeza, Persona 3 também nos diz pra continuar correndo até ver a luz do sol. Parece fora de lugar, parece uma mensagem perdida de esperança em meio ao desespero que reina aqui. É quase como um barulho, um ruído que podemos ouvir lá no fundo, bem baixinho, mas que não desaparece, e continua gritando uma palavra de alegria. Enquanto comunica tristeza, Burn My Dread também comunica fé.
É algo tão fora de lugar quanto uma robô feita para matar no meio de estudantes no ensino médio. Tipo a Aigis, uma personagem que surge com um arco inverso de transformação. Ela começa fria, sem emoção, sem sofrimento, e pouco a pouco vai se abrindo, vai criando um coração e conhecendo o sofrimento e alegria e amor. Esse é o potencial que impede a nossa party de virar um monte de caixões durante a Dark Hour. Quer eles queiram ou não, a possibilidade de ser feliz está dentro deles, exatamente como o ruído baixinho mas que não desaparece. É por isso que, apesar do medo, eles lutam.
Parece bastante comigo. E eu chuto que parece bastante com você também.
Nós todos passamos por isso. A ansiedade é um denominador comum em 2015, a tristeza que tantas vezes gera tweets engraçados é real e, por mais que desejemos fingir que ele não está lá, o desespero vive respirando no nosso pescoço e transmitindo confusão. O mundo está piorando, a economia está uma merda, a corrupção está em todo lugar, 7 x 1, a menina não gosta de você, você nunca vai ser bom o bastante. Desiste logo. É a solução mais lógica. E pode até ser mesmo, mas aqui estamos nós, dia após dia, andando pra frente, mesmo que o chão esteja coberto de vidro. Alguns andam se apoiando na fé, outros na razão, outros em pessoas mais fortes, mas todos andam. E em Persona todos andam, com a cabeça baixa, chorando, mas andam.
Mas calma, eu não disse há algumas frases que as pessoas do mundo de Persona 3 não querem andar? Como é então que agora elas andam? Esse texto é uma grande contradição? O jogo é uma grande contradição? Bom, sim. Mas ao mesmo tempo que Persona 3 vai contra si mesmo, ele também se completa. O truque é simples, estamos te contando duas histórias ao mesmo tempo.
“Não são todas essas notas, os escritos de um homem que não aceita o fato de que não há nada a fazer com o sofrimento a não ser sofrê-lo?” questiona Lewis. Ele está certo, e os personagens desse jogo, assim como nós, no nosso dia a dia, decidem sofrer, e então chegam à mesma conclusão que o escritor: “Eu achei que eu podia descrever um estado; fazer um mapa da mágoa. A mágoa, entretanto, revela-se não como um estado, mas como um processo.” Conforme esse procedimento acontece, o ruído no fundo passa a ser uma música de alegria. Burn My Dread deixa de falar do medo que nos prende, e passa a falar de como o jogamos no fogo.
Atirar na própria cabeça também pode ser visto como um ato de coragem. Apertar o gatilho numa roleta-russa requer ousadia, e a invocação de um Persona, que é essencialmente a representação física-espiritual de nossa personalidade, ou seja, algo que dá forma e exibe o nosso íntimo, com todas as suas vulnerabilidades e forças, é o ápice dessa motivação. Quando os nossos heróis batalham as Shadows — representações dos terrores humanos, da queda total — eles estão dando passos para frente, literalmente lutando contra o desespero personificado. Os Personas tem atributos simples, são fortes contra alguns elementos e fracos contra outros, assim como nós somos fracos contra certas coisas e fortes contra outras. E assim como nós, eles podem ser desenvolvidos, podem melhorar, evoluir e se transformar em criaturas totalmente diferentes. Só requer a coragem de continuar lutando, literal e figurativamente.
Essa dualidade, do Burn My Dread, de Persona 3, das nossas vidas, é vista em cada canto da obra da Atlus. Alegria, tristeza, esperança, desespero, coragem, medo. São caminhos paralelos, que eventualmente levam à uma escolha. Em certo ponto do jogo, um personagem vai te dizer, com todas as letras, que já era. Não adianta mais tentar, o fim está garantido. E aí você escolhe qual lado dessa história, de pessoas que andam pra frente mas que não querem andar, vai ser o seu lado. É uma história que te conta duas coisas ao mesmo tempo, que parece estar em contradição e harmonia ao mesmo tempo, que sempre tem duas versões, a da perda e a da esperança.
Nenhuma escolha está errada. Esquecimento e esperança são faces da mesma moeda, e cabe a nós, aos personagens do jogo e da vida, decidir de que lado ela vai cair. As duas opções fazem sentido, porque Persona 3 está nos contando duas histórias, uma com o final feliz e outra com o final triste. Uma vez que escolhemos o destino para o qual vamos, definimos se todas as horas anteriores que passamos jogando foram pra mostrar a morte, ou a vida. Nós decidimos se o tiro na cabeça vai ser o fim do sofrimento ou a ousadia de sofrer, de aguentar.
Quando escolhemos o nosso final, duas coisas podem acontecer. O jogo pode acabar na hora, ou pode continuar por alguns meses a mais, e eventualmente terminar com uma felicidade amarga. O sofrimento ainda vai estar ali, a perda ainda é algo que os estudantes da Gekkoukan High vão enfrentar, mas agora a forma como eles encaram isso é diferente.
“Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados,” a Bíblia diz em Mateus 5:4, um verso que pode ser aplicado aqui independente da sua crença (ou da ausência dela). O final “bom” de Persona 3 representa isso, um sentimento universal. Você chorou, e aquela tristeza ainda está na sua memória, mas agora vem o consolo.
Então talvez Persona 3 nos diga que devemos aceitar a dualidade da vida, as duas histórias, que se contradizem e se completam, e que podemos escolher qual delas é a nossa história. Mas Persona 3 também nos diz que uma das escolhas rende mais. Essa escolha não nos livra do choro, da perda, mas no final, vai ter um ombro no qual podemos encostar nossa cabeça e sermos consolados.
Se pararmos de ouvir Burn My Dread antes do seu final, se desistimos de Persona 3 antes da data limite, temos uma história sobre derrota. Se, entretanto, continuarmos ouvindo, continuarmos jogando, encontramos o outro lado, uma outra história.