A Vida de Akagi Shigeru: Uma Reflexão Sobre Mahjong, Nascimento de Mitos, Sadismo e a Ambivalência entre a Vida e Morte.

Nintakun
80 min readNov 29, 2024

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“Ganhando ou Perdendo, quero ganhar ou perder sendo Akagi Shigeru”

Eu não sei quando foi a primeira vez que vi mahjong na vida, mas vou chutar que tenha sido igual a uma boa parte das pessoas da minha idade no ocidente: mahjong solitaire no Windows ou algo do gênero quando era criança. E é até meio engraçado que tenha sido assim, considerando a quantidade de jogos japoneses de SNES que caíam no meu colo quando eu era moleque e nenhum deles ter sido de mahjong

Porém, lembro de uma ocasião na minha adolescência em algum momento dos anos 2000, logo quando eu tava começando a conhecer o mundo dos mangás mais a fundo e vi, lá no extinto Onemanga (quem aí lembra desse site?), um mangá “pra adulto” (o famoso “seinen manga”) com uma arte muito diferenciada e “pontuda”, o que me chamou a atenção na hora. Era capa de algum dos primeiros volumes de “Akagi”, o provável mangá mais famoso de mahjong que existe. Na época acho que eu nem consegui supor sobre o que o mangá era, mas a arte me chamou a atenção pra cacete, e aí um tempo depois descobri o tema, e que essa série era bem famosa e tinha até um anime que havia sido exibido não fazia muito tempo.

Desde então, mahjong é um jogo que me causava algum fascínio, observando de longe, em muito por causa da estética que eu via nos filmes de yakuza quando ele aparecia e coisas do gênero. Em algum momento dessa época anos depois, li o “Mudazumo Naki Kaikaku” do Oowada Hideki, sem entender patavinas de como o jogo funcionava, mas me divertindo horrores do quão exagerado é o negócio, e pelas paródias ridículas de figuras de geopolítica internacional da época. Não entendi bulhufas das estratégias do jogo (e sendo bem sincero, com 16 anos eu também não era tão entendido das sátiras políticas que aconteciam no mangá), mas eu interpretava cada jogada ou resultado como se fosse uma espécie de golpe ou poder sendo atirado no inimigo, como se fosse um combo de jogo de luta ou algo do tipo, e acho que isso facilitou com que eu ainda assim tivesse algum entretenimento com um mangá de mahjong sem saber as regras ou a terminologia básica do jogo.

Dá um fast-foward aí, depois de ter jogado os jogos da série “Yakuza” (ou atualmente “Like a Dragon”) e tendo mais noção de que existem um monte de mangás de mahjong, e já tendo visto o jogo aparecer várias vezes em mídia asiática, corta pra alguns meses atrás da publicação desse post, em maio, e eu acordo num belo sábado de manhã no qual estava muito entediado e penso “hm, e se eu tentasse aprender a jogar mahjong?” e indo procurar algum jogo online pra jogar contra bots. Não apenas isso, como eu queria também a variante japonesa do jogo, o “riichi mahjong”, que é o que eu mais via por aí. Eu tinha uma noção bem superficial de como funcionava por já ter pesquisado de curiosidade uma vez e bateu o “é, isso não deve ser tão difícil assim”. Bom, eu já sabia como go funcionava (oi, “Hikaru no Go”) e tinha aprendido o básico de como shogi funcionava não fazia muito tempo (obrigado, “81 Diver”, mangá que vai morar pra sempre no meu coração como um dos meus novos favoritos), então o que é mais um jogo asiático pra aprender, não é mesmo? Ninguém vai me segurar quando eu aprender a jogar koi-koi, cês vão ver só!

(antes que me perguntem, sou péssimo em shogi e um pouco menos péssimo em go. Eu jogava xadrez quando era criança e shogi é quase igual xadrez, só que com algumas camadas extras de complexidade. Já go… eu não sei como definir, mas acho que é um jogo que exige demais da minha cabeça. Eu sou melhor em mahjong do que em shogi e go somados, ainda que não seja lá muito bom jogador também)

Depois de algumas partidas, sem saber muito bem o que estava fazendo, consegui uma vitória e vi que “hmm, então é possível ganhar nisso!”, e fui jogando e jogando mais, e quando me dei conta, o céu já tinha escurecido lá fora e eu fiquei o dia inteirinho jogando essa merda sem perceber, e comecei a ficar estranhamente obcecado pelo jogo, de um jeito que nem shogi ou go me deixaram, pesquisando estratégias e finalmente aprendendo mais regras a fundo e a terminologia básica do jogo.

Inclusive, fica aí o registro da primeira vitória que tive, num joguinho bem simples de navegador. Hoje em dia que tô bem mais avançado e sei o que tô fazendo olho pra isso e penso “pqp que mãozinha furreca essa, hein!”

O tempo foi passando e aí hoje em dia tô jogando pelo menos uma partida ou duas de “Mahjong Soul” quase diariamente há uns três ou quatro meses, vivendo na pele a frustração e as emoções desse jogo maluco, e o achando cada vez mais fascinante, e chegando no ridículo de “pensar em termos de mahjong” quando vejo situações nada relacionadas no cotidiano às vezes. Ah, e não pensem que a obsessão parou por aí, porque obviamente comprei um conjunto de peças físicas do jogo pra poder jogar presencialmente com amigos e conhecidos, e acabar os ensinando a jogar também no processo. Ninguém que convive comigo aguenta mais me ouvir falar de mahjong!

Acharam que eu estava brincando quando disse que comprei as peças? Arrumei a mesa, bora jogar! (essa foto é minha mesmo, como podem deduzir pela qualidade meio tosca)

Sabem o que mais eu fiz nesse meio tempo que fiquei viciado em mahjong? Decidi que era hora de finalmente ler o tal mangá que me deixou tão encucado com a arte há mais de 15 anos atrás, e que eu enfim estava pronto pra lê-lo e apreciá-lo em sua totalidade, agora que entendo como o jogo funciona e conheço o vocabulário dele. Já conhecia alguns trabalhos do Fukumoto Nobuyuki antes, e havia gostado bastante de vários deles, como “Kaiji” ou “Saikyou Densetsu Kurosawa”, então acho que tava na hora de entrar numa de suas principais facetas, e então eu li a duologia “Ten” e “Akagi”, nessa ordem, vendo que são dois mangás que se complementam tematicamente, enquanto se expõem de forma consideravelmente diferente um do outro. Se eu decidi transformar isso em textão, é porque tenho algo que a dizer que julgo interessante.

uma mesa um pouquinho mais bem arrumada do que a minha com o jogo já rolando

Bom, pra não deixar ninguém muito perdido, acho que eu preciso explicar pelo menos a premissa do que é um jogo de mahjong japonês, né? Não posso contar que todos que estão aqui lendo entendem como o jogo funciona e eu não quero deixar ninguém de fora da conversa, então pode continuar lendo sem medo que eu vou explicar pelo menos o básico do que julgo ser importante pro assunto de hoje, pra vocês poderem ler o resto do texto tranquilamente mesmo sem nunca terem nem visto um jogo desses na vida. Esqueça o mahjong de juntar pares que viu no Windows ou no celular, pois o jogo de verdade é bem diferente daquilo (e bem mais legal), que está mais próximo de “Paciência”’, enquanto o certo seria uma mistura de Poker com Buraco e elementos de “Uno”, usando peças que lembram as de dominó. (Há quem ache mais parecido com “pife” ou “cacheta”, mas esses jogos eu não conheço tão bem assim pra comparar)

Mahjong normalmente se joga entre 4 pessoas (existem variações para três ou até dois jogadores, mas o padrão é com quatro), e cada um tem uma mão com 13 peças, e a cada turno eles precisam comprar uma 14º peça, e logo em seguida descartar alguma da mão pra ficar com 13 de novo.

O objetivo é até simples, em teoria: compor uma mão que contenha quatro conjuntos de três peças (idênticas ou que contenham números sequenciados) e um par de peças idênticas, e a 14º peça que o jogador compra deve completar essa mão, e o primeiro que conseguir fazer isso ganha a rodada.

Há cinco categorias (ou naipes, se quiser chamar assim) de peças diferentes, e há quatro cópias de cada peça circulando pelo jogo (e essa informação é mais importante do que parece), e os jogadores podem até roubar peças descartadas uns dos outros pra ajudar a completar as suas mãos de maneira mais rápida. É um jogo que envolve uma mistura de sorte com habilidade e saber manipular probabilidades, ou tentar prevê-las, que pode recompensar ou até punir, na mesma intensidade, jogadores mais ousados, já que, quanto mais “arriscada” ou elaborada for a sua mão, mais pontos ela vai valer.

Embaralhando as peças num jogo presencial. Essas pecinhas fazem um barulhinho tão gostoso quando batem na mesa ou umas nas outras, galera…

E na variante japonesa do jogo, chamada de “riichi mahjong” (que é a que normalmente vemos nos mangás, animes, etc), ainda entram os “yaku”, que são os padrões e as combinações específicas de peças e/ou situações de jogo que a sua mão precisa para ser considerada válida pra vitória, cada uma tendo seu respectivo valor de acordo com a dificuldade de conseguir. É mais ou menos similar ao conceito das mãos do poker, e a sua mão precisa ter pelo menos um yaku pra ser considerada válida pra vitória. A maioria dos yaku podem ser combinados entre si, assim acumulando mais e mais pontos pra quem vencer nessas condições, e cabe aos outros jogadores tentarem decifrar o que o coleguinha de mesa está fazendo através dos seus descartes e tentar impedir que o cara que tá com uma mão foda muito valiosa vença, mesmo que isso signifique ganhar antes dele com uma mãozinha mixuruca que vale quase nada, como se fosse um grampo sendo atirado dentro de um canhão pra dar pane nele ou algo assim.

Saca só quantos “yaku” esse cara combinou, por exemplo! Essa é uma mão bem gorda.

Ou seja, pense nos yaku como um “golpe” de um jogo de luta, tipo um hadouken ou um shoryuken do “Street Fighter”, por exemplo, e como precisa de no mínimo um deles na mão pra ganhar… ou seja, em termos de jogos de luta, pra sua vitória valer, você precisa ter soltado pelo menos um hadouken durante a luta ou algo do tipo… engraçadamente isso me remete à minha memória de quando li “Mudazumo Naki Kaikaku” sem entender patavinas de como riichi mahjong funcionava, o que me faz crer que a minha imaginação da época não estava tão longe assim da realidade.

A premissa básica do jogo é bem simples, mas os detalhes vão adicionando umas camadas extras de complexidade bem interessantes, permitindo um número gigantesco de estratégias que exigem adaptabilidade, flexibilidade mental e intuição dos jogadores (além de saber aproveitar as marés de sorte quando elas chegam ou jogar de forma defensiva pra não perder seus pontos mesmo quando não há chances pra vitória).

Mas enfim, não pretendo entrar nas minúcias das regras mais avançadas do jogo aqui porque isso não é bem o foco do que eu vim falar hoje, além de que já existem bons materiais por aí ensinando tudo em detalhes, como os vídeos do canal da Associação Brasileira de Mahjong no Youtube por exemplo, e o meu amigo Izzombie fez um ótimo texto focando justamente nas regras do jogo que você precisa saber pra ler e entender o que acontece num mangá de mahjong, mas o que eu quero abordar aqui é o quanto esses mangás conseguem capturar bem a essência do que há de tão fascinante no jogo e criar uma narrativa em volta disso e de seus personagens, e o quanto que ter jogado literais centenas de partidas disso me fez entender e sentir melhor na pele o que esses personagens sentem, então o meu objeto de interesse aqui é um pouco mais específico, mais voltado pra parte filosófica e sensorial da coisa toda. Mas relaxem, que eu pretendo continuar esse texto numa escrita que não exija conhecimento prévio ou lá muito avançado de como o jogo funciona, porque quero que isso aqui seja acessível em primeiro lugar.

Ah, e haverão spoilers lá mais pra frente, majoritariamente de “Ten”, então fiquem avisados, porque quando eu começar a entrar mais fundo nisso, avisarei.

Conhecendo o caminho do “Tenhou”

Indo ao mangá, é até meio difícil escolher se começo por “Ten” ou “Akagi”, sendo que o segundo se passa antes do primeiro mas estreou depois e vice-versa, enquanto saíram paralelamente por uns bons anos (apesar de “Akagi” ter sido terminado uns 15 anos depois de “Ten”), então acho que farei igual o Fukumoto fez, vamos começar por onde eu acho que ele começou a pensar essa história toda

Ten” começou a ser publicado em agosto de 1989 na Kindai Mahjong, uma revista da editora Takeshobo que, pasmem, é focada em mangás de mahjong, o que significa que existem o suficiente deles pra justificar uma revista específica pra eles. O subtítulo da série, “Tenhoudoori no Kaidanji” significa algo como “Um Cara gente boa no Caminho do Tenhou”, onde “Tenhou” é um termo de mahjong pra definir uma mão que já vem pronta pra ganhar ao primeiro jogador da partida, quase como uma bênção celestial, como o nome sugere. E essa mão é um “yakuman”, uma das mãos (yaku, como vimos lá atrás) que valem pontuação máxima e quebram o jogo quase que completamente, tornando garantida, na grande maioria dos casos, a vitória de quem a conseguiu, a menos que um outro milagre ainda mais absurdo aconteça a outro jogador.

Quando você joga mahjong há algum tempo, percebe o quão difícil é pra acontecer um yakuman, então dá pra entender que chamá-los de “milagres” não é nenhum exagero, sendo que mesmo os yakuman mais comuns e “fáceis” de fazer têm uma chance de mais ou menos 0,049% de acontecer numa partida, o que por sua vez faz com que um Tenhou tenha algo em torno de 0,0003025% de chance de acontecer. Parece tão provável quanto ganhar na loteria. (e por incrível que pareça, ele não é o yakuman mais raro de acontecer. Só fica atrás de um outro, que não vem muito ao caso agora)

Sabendo disso e pensando no subtítulo da série, podemos supor que é uma história sobre um cara gente boa que continua sendo gente boa pra ter um caminho abençoado e tranquilo na vida, e é bem isso que o personagem título da série Ten Takashi busca levar: vivendo uma vida despreocupada com suas duas esposas (!) e sendo admirado pela vizinhança, por sempre ajudar quem precisa quando dá, normalmente usando suas habilidades em mahjong pra conseguir dinheiro pra galera em apostas (ainda que frequentemente ele trapaceie). Certamente é um cara que vive a vida do jeito dele, sendo gentil com os outros e até consigo mesmo.

Isso aí que ele fez é um yakuman duplo. Ele combinou o “Tenhou”, que eu expliquei ali em cima com o “chuurenpoutou”, que é OUTRO yakuman. As chances disso acontecer numa partida são extremamente microscópicas, ganhar na loteria deve ser mais fácil (e nem preciso dizer que ele trapaceou pra conseguir, né?)

E nisso, somos apresentados a outro personagem, Igawa Hiroyuki, um jovem universitário que acaba se juntando à pequena comunidade de Ten e, apesar de não ser tão experiente e bom jogador quanto ele, possui potencial pra ser excelente no futuro. Hiroyuki é um cara mais na dele, “certinho”, e que tenta seguir as regras, tanto que isso pode ser visto na forma como ele joga mahjong, de maneira segura no começo da história.

Notem que não chamei o Ten de “protagonista”, apesar de o nome dele estar no título do mangá. Muitos podem até dizer que o Ten de fato é o protagonista da série, mas eu particularmente acho que discordo, porque o verdadeiro personagem principal dessa história, pra mim, é o Hiroyuki. Eu gosto do Ten, mas quem leu o mangá provavelmente concorda comigo que o Hiroyuki é quem acaba roubando os holofotes pra si no caminho, principalmente por conta do seu arco de desenvolvimento de personagem que dura desde o literal primeiro capítulo até o último, sendo, de longe, o personagem que mais muda nessa história. Então, qual seria a função do Ten? Ele é um cara importante, e o intermediador de Hiroyuki com as figuras incríveis do mundo do mahjong que ele irá encontrar no caminho, e tudo só acontece por causa dele no fim das contas. Acho que ele é o cara que dá o empurrãozinho pro Hiroyuki começar a entrar no caminho do Tenhou, se é que isso é possível.

Um tempo depois, somos apresentados ao, discutivelmente, personagem mais importante dessa história toda e o grande motivo de eu estar escrevendo esse texto. Ele, o homem, a lenda: Akagi Shigeru!

Olha ele aí, pela primeira vez (e numa época em que a arte do Fukumoto ainda não tinha desenvolvido totalmente a identidade visual e refinamento que tem hoje)

Akagi é um lendário jogador de mahjong com décadas de experiência e uma reputação de ser simplesmente assombroso no jogo, com uma sorte e intuição que desafiam a lógica humana. Ele joga mahjong tal qual um animal selvagem, se arriscando em jogadas aparentemente estúpidas, mas no fundo, muito bem pensadas, e que na grande maioria das vezes acabam gerando resultados incríveis. Em “Ten” ele já não está mais no seu auge, agora com o que parece ser uns 50–60 anos de idade (mas surpreendentemente, apesar de parecer consideravelmente mais velho, ele tem 41 quando aparece pela primeira vez no mangá), mas ainda se mostra um exímio jogador com táticas de dar inveja a muitos profissionais.

Uma série de coisas acontece e então Ten, Hiroyuki e Akagi acabam tendo que se unir, junto com outros jogadores experientes e famosos da região leste do Japão, em um torneio contra os melhores jogadores da parte Oeste, para disputar quem terá o controle sobre as regras do submundo do mahjong. E esse torneio ocupa quase dois terços do mangá inteiro!

Bom, uma coisa meio triste sobre “Ten”, e que o torna uma recomendação meio difícil e um tanto nichada pros seus amigos leitores, é que uns 80% do mangá é praticamente ilegível e extremamente maçante se você não entende como mahjong funciona ou tem familiaridade zero com o jogo. É entendível, é um mangá feito por um louco por mahjong pra outros loucos pelo jogo, que compram uma revista inteira dedicada a isso, mas essa série fez algum sucesso fora desse nicho. Ele não vai parar em nenhum momento pra explicar como o jogo funciona, pois presume que se você está ali é porque sabe ao menos o básico.

Acharam o yakuman duplo do Ten impressionante? Saca só esse yakuman TRIPLO do Akagi. E vitória limpa! Esse tipo de cena em mangá de mahjong é o equivalente daqueles “começou a mentirada!” que tio de 57 anos comenta de filme de ação. Pra ilustrar bem a sorte insana dele e mais ainda a ousadia de jogar mãos tão arriscadas com chance altíssima de dar errado e alguém levar a vitória antes de você.

Pessoas que manjam mais do jogo vão perceber que até mesmo a forma como alguns personagens tomam decisões durante as partidas (ou até como alguns deles trapaceiam, pois isso acontece com alguma frequência) fazem parte da escrita deles, sendo o Akagi e o Hiroyuki talvez os exemplos mais nítidos disso na série. Esses personagens passam a maior parte do tempo falando sobre o jogo ou jogando, e pouco sobre outras coisas, mas porque essa é a forma deles de expressarem seus comportamentos, então o mahjong acaba sendo uma espécie de meio de comunhão e comunicação entre eles, para que tenham o seu embate mental e de filosofias, e essa aproximação causada pelo jogo é um dos temas mais importantes da série, e vai explodir com bastante força no final dela. Esse é o “desenvolvimento de personagem” que vemos aqui, e que torna alguns desses personagens tão icônicos, pra que sintamos a catarse sobre vários deles próximo ao fim da série, mas vou deixar pra falar disso depois.

E agora, entrando um pouco nos spoilers, por enquanto mais leves, em um dado momento do torneio, no capítulo 88 (volume 10), Akagi faz uma aposta de que ele irá ganhar se uma peça específica completar a sua mão, sendo que haviam duas possibilidades, mas ele apostou em voz alta que seria uma delas. O jogo acaba e a peça que ele precisava não aparece, pois já não estava mais disponível, ainda que já tinha acontecido uma trapaça alheia de um dos jogadores do oeste. Ele poderia ter ganho de outro jeito, mas a forma que ele declarou em voz alta não foi possível, então ele é eliminado do jogo, ainda que injustamente. Hiroyuki tenta convencê-lo a voltar, mas Akagi se recusa, pois seu orgulho é maior, e ele não voltaria atrás na sua aposta, pois isso iria contra a sua natureza, com a qual ele deseja ser autêntico até o último suspiro de sua vida. Ainda que isso seja uma inconveniência para os jogadores do time leste e uma declaração bem teimosa, no meio desse diálogo ele diz provavelmente a sua frase mais marcante no mangá inteiro (quiçá a frase mais icônica do personagem num geral):

Ganhando ou Perdendo, eu quero ganhar ou perder sendo Akagi Shigeru

Ele poderia ter vencido, mas seria uma vitória que trairia a sua aposta anterior. O fato de ter havido uma trapaça no jogo era irrelevante ao fato de que ele declarou que a vitória estaria num 5-sou, o “cinco de bambus” (que por sinal é uma peça meio arriscada de fazer tal tipo de aposta), que ainda não tinha sido jogado e acabou não aparecendo. Foi uma aposta que só alguém com muita coragem e que estava muito certo de sua vitória faria, pois esse tipo de coisa normalmente não se faz numa partida. Akagi não é um cara que volta atrás em suas apostas, e essa foi uma aposta que ele perdeu, e ele aceitou a derrota dentro das condições que ele próprio estabeleceu, sendo justo com o seu microjogo que propôs naquela rodada. Akagi aceitou a própria derrota com sua honra intacta e serenidade, sabendo que não contrariou sua própria essência humana em nenhum momento, honrando o seu lema de viver naturalmente.

E aqui se encerra a participação de Akagi no torneio, e por uma boa parte do resto da série. Isso é no volume 10, e o Akagi só vai voltar no 16, depois disso. Mas vou deixar pra falar parte numa seção separada, pois ela sozinha rende assunto por si só, sendo consequência direta de tudo que aconteceu até agora.

Ten” foi publicado entre 1989 e 2002, tendo capítulos mensais que foram compilados em 18 volumes, e foi o primeiro sucesso expressivo da carreira de Fukumoto, e basicamente o mangá que o lançou à fama, ainda que por meios nichados.

O Akagi foi tão bem recebido pelos leitores que acabou se tornando o personagem mais popular da série, e então ganhou a sua própria série, então é dela que vamos falar agora…

A Lenda do Gênio da Escuridão

Com a popularidade do Akagi em “Ten”, o personagem ganhou sua própria série, em 1991, também escrita e desenhada por Fukumoto. O mangá rapidamente ficou popular e eventualmente se tornaria o principal carro-chefe da Kindai Mahjong, sendo encerrado apenas em 2018, após longuíssimos 27 anos de serialização mensal, com 36 volumes no total (o dobro de “Ten”!).

E isso aqui é o que vocês imaginam, a história de origem do Akagi, vivendo sua juventude e seu auge como grande apostador e criatura selvagem que sempre foi, autêntico à própria natureza. O subtítulo aqui é “Yami ni Oritatta Tensai”, algo como “O Gênio que desceu à escuridão”, dando a entender que veremos Akagi encarar abismos impensáveis para um ser humano normal.

Esse é aquele tipo de mangá que quando você começa a ler, sente que está prestes a testemunhar algo importante, como o surgimento de uma lenda ou um evento histórico. Enquanto “Ten” é uma história mais “humana” e pé-no-chão, aqui a pegada é um pouco diferente, e acho que esse efeito se deve ao sabermos que o Akagi é um personagem visto como lendário na outra série. A gente vai ver como aquele velho fodão nas apostas começou nesse mundo, que tipo de coisas ele viveu, pessoas que ele conheceu. É tipo conhecer de perto o passado de uma figura com grande presença, temendo que por trás da lenda haja só uma história que foi “aumentada” com os tempos. Mas devo dizer que não é bem isso que acontece aqui, pois o personagem honra seu status de lenda, como uma daquelas figuras “maiores do que a vida”, sabe?

E eu nem chamaria o Akagi de “herói” aqui, porque aí estaríamos trabalhando com rótulos binários de moralidade, algo que não é muito apropriado pra um personagem como ele. Ele não tá exatamente lutando por causa alguma exceto a própria sede por adrenalina. Eventualmente ele acaba sendo “contratado” pra acabar com a raça (numa mesa de mahjong, obviamente) de um político importante envolvido em alguns crimes bizarros, mas não é por nenhum heroísmo ou senso de justiça, ele só quer satisfazer a própria fome por um desafio à altura de sua genialidade. Eu não sei nem dizer se o termo “anti-herói” se aplicaria a ele aqui, pois até isso me parece errado.

Akagi é… Akagi.

Olha só o swag desse cara! É óbvio que já teve collab da série dele no “Mahjong Soul”, ou você acha que eles iam perder a chance de fazer um evento com o personagem fictício mais icônico relacionado a mahjong que existe na mídia?

Gosto muito de como a série começa quase como um começo despretensioso de lenda, com o Akagi entrando num clube de mahjong onde tá rolando um jogo de legalidade duvidosa e um cara tá prestes a ser morto por uns yakuza se caso perder porque ele tem uma dívida gigantesca. Akagi, aqui com meros 13 anos de idade no ano de 1958, entra todo molhado de chuva e meio sujo com cara de garoto tímido sem saber o que fazer… mal sabíamos que ele tava fugindo da polícia, que investigava um caso onde houve uma aposta de racha de carros num penhasco, do qual Akagi acabou sobrevivendo à queda. Aparentemente o nome disso em português é “jogo do covarde”, e se tem uma coisa que o garoto provou aqui é que ele não é um covarde e não teme a morte… essa falta de medo da morte será uma de suas maiores marcas registradas enquanto personagem, tanto aqui quanto em “Ten”. Akagi rapidamente mostra que possui boa intuição e audácia, então o pobre do endividado resolve ensinar o moleque a jogar mahjong pra jogar no lugar dele e tirá-lo dessa enrascada. Mal sabia ele o monstrinho que havia acabado de criar naquela noite.

Então, Akagi passa por uma série de desafios conforme os anos vão passando, e de repente estamos no ano de 1964, e Akagi agora tem 19 anos. Vemos Akagi fazendo história no mundo das apostas clandestinas ganhando horrores numa casa de chou-han (um jogo tradicional de apostas que consiste em o organizador lançar dados dentro de um copo e perguntar aos apostadores se o resultado é par ou ímpar, e os vencedores dividem o montante do dinheiro apostado entre si. Normalmente lugares que sediam esse jogo são geridos pela yakuza). Akagi vence TANTO no jogo que provoca a ira dos organizadores que decidem até tentar matá-lo se caso ele não admitisse derrota e entregasse tudo que ganhou… e Akagi naturalmente se recusa a aceitar, porque afinal, ele venceu justamente. Akagi sendo Akagi, como fez lá já mais velho em “Ten”. Acho esse um momento bem importante pro desenvolvimento do personagem que vemos, e mostra um pouco da humanidade por trás da lenda do Akagi, pois afinal é a sua filosofia de vida, e ele segue isso de forma bastante consistente. Aqui nessa casa de chou-han, Akagi é salvo por caras que ele conhecia, que estavam atrás dele pra “contratá-lo” pro tal serviço que mencionei há uns dois parágrafos atrás.

Akagi causando confusão na casa de Chou-han. Como? Apenas vencendo demais e insistindo em estar certo!

É engraçado como os outros personagens reconhecem Akagi como uma lenda, isso desde muito cedo, mas não apenas eles, como a própria narrativa parece estar ciente da grandiosidade desse personagem, que jamais poderia levar uma vida normal ou ordinária. Fukumoto também acredita nisso piamente, e não há argumento melhor pra um mágico nos convencer do truque do que ele mesmo acreditar no próprio espetáculo. Se ele quer que o Akagi seja um gênio fodão do mahjong e de apostas com uma sorte quase que demoníaca, assim ele será. Estamos vendo que existe sim uma lenda naquele jovem Akagi, tal qual éramos informados em “Ten”, com ele mais velho já tendo criado ainda mais status e fama pra si, mas também vemos algumas reações dele como se fosse um animal selvagem vez ou outra. Existe um ser humano ali, apesar de Akagi ser um cara bem estoico, frio e calculista (heh), especialmente quando jovem.

Existem críticas à série e ao personagem que o chamam de um mero “Gary Stu”, isso é, um personagem meio “perfeito demais”, ou idealizado, ou no caso de um cara como o Akagi, muito estóico e inabalável. Em algum nível isso pode ser até verdade, mas pessoalmente acho que se prender a um rótulo desses é uma análise muito pobre de um personagem como ele, porque o Akagi é mais interessante do que isso num todo, embora de fato haja uma espécie de mitificação em volta dos seus feitos.

Mas sejamos honestos, essa “mitificação” não é descabida, Fukumoto quer que você acredite que esse cara é o que é. Sim, conseguir yakuman com tanta facilidade não acontece na vida real, apesar de não ser impossível, mas estamos lendo uma historinha de ficção, a diegese dela funciona do jeito que funciona. Você não vai ao show de mágica pra contestar o mágico no meio do espetáculo falando “eu vi que você enfiou a bolinha na outra manga do casaco, hein, seu fdp!”, ou vai? Espero que não, pois isso é coisa de gente chata que não sabe se divertir!

Akagi fazendo o que ele faz de melhor: desafiar o senso comum de fazer as jogadas mais seguras e ir pelas mais arriscadas, deixando todo mundo assustado. Esse palito que ele tá jogando na mesa significa que ele tá apostando mil pontos que vence com essa mão que está com ele.

O que eu quero dizer com isso é que, em algum nível, o Akagi Shigeru em si, enquanto personagem, é um baita truque de mágica, dos mais divertidos que existem. É divertido e prazeroso pra um cacete ver ele fazendo jogadas insanas sendo um completo maluco do caralho na mesa, é tão divertido vê-lo fazer descartes arriscadíssimos pra pegar uma mão valiosa e improvável quanto ver o John Wick acabando com uma horda de atiradores atrás da cabeça dele sem levar um teco de raspão sequer. Não sejamos iguais nossos tios de 53 anos de idade que vêem filme de ação falando “começou a mentirada, hein!!!” na hora que um carro começa a capotar e o motorista atira pela janela em algum inimigo na cena. Eu quero acreditar na mentirada! Eu quero acreditar que o Akagi é capaz de fazer esses milagres acontecerem na mesa, porra! Esse mangá é o “Metal Gear Solid 3: Snake Eater” do Akagi.

Criar um personagem como esse que seja tão “eterno” e convincente é muito difícil, e esse mangá é exatamente pra que tenhamos isso: uma demonstração do porquê em “Ten” falaram que aquele cara de cabelo branco é tão temido por uma galera no submundo das apostas. Por isso também que acho que não entramos em muitos detalhes quanto às origens familiares de Akagi. Nunca nos é revelado quem é sua família, onde ele nasceu, como foi parar nas ruas e coisas do tipo. A gente sabe que ele é muito bom em apostas e tem zero apego a bens materiais e dinheiro. É quase como uma força da natureza, um animal selvagem e não termos demais informações pessoais a seu respeito ajuda nessa mitificação de lenda e honestamente? Não é como se precisássemos saber disso, o mangá já nos diz o que precisamos saber sobre esse cara.

Sério, o que esse cara faz numa mesa é de dar medo em qualquer um porque gente normal não joga assim…

Isso também é parte do motivo pelo qual eu não acho “Akagi” um mangá facilmente “spoilável”. Digo, se você seguir à risca a definição da palavra “spoiler”, qualquer coisa pode ser “spoilável”, mas pra mim esse mangá é tão spoilável quanto a lenda por trás de alguma aventura do Hércules da mitologia grega. Já é sabido que é a história de um cara foda, então a gente sabe que ele vai fazer coisas inacreditáveis, especialmente se já tiver lido “Ten” antes. Não é um mangá sobre ver o que vai acontecer, é sobre experienciar e testemunhar a lenda acontecendo. Não é sobre a descoberta, é sobre o testemunho.

E é por isso que digo que esse mangá é um grande testemunho de algo importante, e ele reforça isso com um dos eventos mais metaficcionalmente malucos que já aconteceram na história dos mangás, completamente à altura, e muito mais, de tudo que poderíamos ver numa série como essa.

Sim, se você já leu o mangá ou viu o anime, já sabe exatamente do que eu tô falando. Mesmo se não leu e só ouviu coisas sobre a série, provavelmente já deve ter ouvido falar nesse evento lendário.

Hora de falarmos de “Washizu mahjong”.

No Covil da Hidra da Era Showa

Essa página acima, quando surge, dá um sinal bem claro de que estaremos prestes a testemunhar algo importante. Quando li o mangá, já conhecia a fama do que vinha pela frente, mas mesmo assim não pude deixar de reparar nessa página específica e contemplá-la com essa sensação.

Existe toda uma preparação antes sobre quem será o próximo adversário de Akagi, algumas informações meio vagas sobre as condições do desafio, e o trajeto até chegar onde o evento acontecerá. Isso se deve ao fato de o oponente de Akagi aqui ser tão lendário quanto ele, e só sabemos o mínimo necessário, e agora, que estamos chegando até ele, e de frente pra sua mansão enorme, aquela ideia metafísica de um velho dinossáurico politicamente influente da Era Meiji ainda estar vivo e forte em 1965 de repente começa a dar lugar a uma imagem mais material do homem por trás da lenda e da infâmia e da suspeita dos assassinatos bizarros que aconteceram nos últimos tempos. A polícia está lidando com um monstro acima da mera humanidade, então, pra lidar com isso, eles vão precisar usar outro monstro, ainda que não seja por meios exatamente muito lícitos. Acho importante, e especialmente interessante tematicamente, frisar aqui que essa definitivamente não é uma batalha de “bem vs. mal”.

Hora de conhecermos provavelmente um dos “vilões” mais icônicos da história dos mangás

O nome desse sujeito é Washizu Iwao, e ele será o primeiro adversário à altura de Akagi em seu auge… e discutivelmente também o último. Washizu é um magnata excêntrico que fez boa parte de sua fortuna fazendo acordos econômicos de natureza duvidosa durante o pós-guerra Japonês, e de uns tempos pra cá ele começou a perder as estribeiras de vez e passou a ordenar alguns assassinatos por puro sadismo, e os corpos eram quase sempre encontrados com seu sangue retirado, quase como se tivessem sido atacados por um vampiro. No momento da história, ele conta com uma fortuna de 500 bilhões de yen (que o mangá comicamente faz questão de fazer a correção monetária desse valor pros padrões da época da publicação da série praticamente TODAS as vezes em que essa quantia é mencionada), e o objetivo é tirar essa grana toda dele, porque afinal, dinheiro é poder, e a gente sabe como gente rica normalmente é.

A disputa vai ser, logicamente, mahjong, mas claro que não vai ser de maneiras convencionais, pois aí seria fácil demais pro Akagi. Washizu inventou uma variante esquisita de mahjong chamada, pasmem, de “Washizu Mahjong”, e a pegada aqui é a seguinte: as regras do jogo permanecem as mesmas, mas o diferencial está nas peças, e elas são todas translúcidas, com exceção de uma cópia de cada peça do jogo . Em exemplo, existem 4 cópias de “chun” no jogo, mas uma delas será normal, sem ser transparente. Além disso, o jogo é essencialmente um 1x1 aqui, e os dois jogadores extras pra preencher a mesa irão agir meramente como apoio para os jogadores principais. Ao lado de Akagi teremos o policial Yasuoka, que foi quem o trouxe aqui, e ao lado de Washizu, ele terá um de seus subordinados.

e É CLARO que existem conjuntos de peças de “Washizu Mahjong” sendo comercializadas por aí. É óbvio que não iam perder uma oportunidade dessas.

E obviamente não para por aí! Quem perder, paga em dinheiro ou… sangue! A quantidade de sangue será drenada com base no valor da mão que Washizu ganhar, o que significa que se Akagi perder, ele terá seu sangue drenado de seu corpo, até morrer se continuar perdendo.

Pelo simples fato de 75% das peças do jogo serem todas transparentes e todos os jogadores da mesa puderem ver a mão alheia, a menos que tenham as peças opacas pra tentar dar uma camuflada na mão, além de o saque das peças ser feitas com os jogadores botando a mão num buraco no meio da mesa, ao invés do procedimento padrão de pegá-las de um muro montado bonitinho na mesa, muda RADICALMENTE a dinâmica do jogo em comparação a uma partida normal de mahjong, apesar de as regras ainda serem as mesmas. Riichi Mahjong é um jogo que encoraja jogadas defensivas e mais pensadas, então a maioria das peças serem translúcidas deixa o jogo muito mais tenso e metódico, logo acaba forçando os jogadores a adotarem novas estratégias que não seriam usadas num jogo normal. Uma verdadeira disputa de nervos de aço, principalmente sabendo que a sua vida está literalmente em jogo aqui.

É o palco ideal pra uma disputa entre dois monstros do submundo das apostas, a atmosfera perfeita pra esse combate que vai desafiar qualquer senso de mundano até em aspectos metaficcionais, e provavelmente a noite mais tensa da vida desses dois homens, e os 20 anos mais enlouquecedores pro Fukumoto Nobuyuki em punho da caneta e do papel.

Você consegue pensar em quanto tempo durou a serialização de um arco longo memorável de um mangá que você conhece ou até uma luta famosa? Eu às vezes penso que é meio louco que alguns arcos de “One Piece” demoraram dois anos em serialização até serem concluídos, ou algumas lutas de “Baki” durem uns dois ou quase três meses, ou como estamos há mais de dez anos sem ver o Gon em “Hunter X Hunter” por causa da frequência irregular da série, entre vários outros exemplos, mas acho que o Fukumoto aqui deve ter lançado um dos exemplos mais impressionantes de todos, pois a noite de Washizu Mahjong durou VINTE ANOS em tempo real de serialização. Foram mais de 200 capítulos mensais nessa brincadeira, esse jogo começa no volume 8 do mangá, e só acaba no finalzinho do 35, o penúltimo da série! Literais vinte e sete volumes só nisso, 75% da série!

É inacreditável que essa imagem exista, e mais ainda que é uma publicação oficia da própria Kindai Mahjongl! É uma linha do tempo da publicação dos capítulos de Washizu Mahjong em paralelo com a linha do tempo de eventos do mundo real!

Washizu Mahjong é um daqueles eventos lendários da história dos mangás que a gente só acredita que é real quando ele tá acontecendo na nossa frente, quase como uma história muito absurda de pescador, e mesmo quando estamos vendo aquilo com nossos próprios olhos, a coisa é ainda mais impressionante na prática do que na nossa imaginação, em vários sentidos possíveis, tanto formais quanto materiais. Dá pra fazer uma coleção de momentos inacreditáveis que acontecem nessa mesa e é bem maluco a quantidade de coisas que conseguimos ver durante esse jogo, e o quanto Fukumoto conseguiu fazer isso durar o tempo que durou. Esse tempo de publicação chega a tornar o evento quase tão mitológico quanto o próprio personagem do Akagi.

Enrolão? Acho que não há nenhuma dúvida de que o Fukumoto enrola, mas pensa num cara que sabe enrolar com classe, especialmente quando chegam nas rodadas finais do jogo! Não vou mentir, pode cansar às vezes, mas eu seria completamente maluco de não aplaudir tamanho feito artístico, porque terminei a leitura do mangá sem ar, praticamente, e houveram alguns momentos (especialmente fins de rodada) que eu aproveitava pra parar um pouco de ler só ele senão eu ia enlouquecer de tanta tensão.

E eu entendo exatamente como é possível sentir todas essas coisas lendo um mangá como esse, porque eu já tinha jogado mahjong até o cu fazer bico antes de começar, e experienciado várias sensações nas centenas de partidas que havia jogado até ali, protagonizando até algumas vitórias que parecem ter saído de um mangá, tamanho absurdo que foi a virada sortuda que dei (e já tomei algumas derrotas alucinantes na cabeça também, claro)!

O que quero dizer com isso é que mahjong é um jogo que testa todas as emoções e limites mentais do ser humano, se todos os envolvidos na mesa estiverem jogando no mesmo nível e souberem jogar. O potencial de storytelling desse jogo é insano, e é por isso que tem tanto mangá disso, a ponto de existir uma literal revista dedicada ao gênero! Estamos lidando com um jogo de apostas que é pesadamente influenciado por sorte e envolve blefes, lutar contra a própria ganância, armadilhas mentais, prever o adversário, estratégias tentando calcular dois passos à frente e que podem dar absurdamente errado se mal executadas ou alguém tiver mais sorte, decisões arriscadas, manipulações de probabilidades, batalha psicológica, e por aí vai. Numa questão de minutos alguém que está no topo pode cair até o inferno de forma extremamente miserável porque, tal qual Ícaro, voou perto demais do sol e queimou suas asas, ou até alguém que só está jogando de forma segura pode fazer um colosso sangrar todos os seus pontos aos poucos (e no caso desse mangá esse sangramento pode ser até literal!), entre muitos outros eventos. Absolutamente tudo pode acontecer numa partida de mahjong, é um jogo com muitas possibilidades.

Então o Akagi é o personagem perfeito pra um mangá como esse, e ainda mais fascinante do que ver o caminho até as suas vitórias absurdas é ver o completo desespero que seus oponentes começam a ficar quando se deparam diante desse ceifador de pontos ambulante. É engraçado, às vezes patético, às vezes gratificante… pode ser uma miríade de adjetivos.

Washizu é um oponente interessante pro Akagi, porque a analogia de Ícaro que fiz há dois parágrafos atrás pode ser aplicada a ele em algum nível. Um cara poderoso que meio que nunca conheceu a derrota direito e criou um império e, dentro desse império, começou a enlouquecer mais e mais, com tanto poder. Quando uma figura imponente como ele começa a gritar e espernear de desespero porque tá perdendo pro Akagi é extremamente divertido e catártico, porque a gente vai vendo, entre muitas coisas, a forma como essa tortura mental vai continuar pra ele à medida que o jogo vai ficando cada vez mais tenso.

Akagi INABALÁVEL na frente do Washizu claramente com o cu na mão

Obviamente Washizu sabe jogar como ninguém, além de se portar como um legítimo vilão de filme do 007 que traz uma armadilha muito fodida pro mocinho da história tentar escapar com vida… nesse caso, literalmente. Às vezes a sorte tá do lado dele e ele faz jogadas brilhantes, mas ele nunca consegue contar com a astúcia do Akagi, que mesmo quando não ganha uma rodada (e eu faço questão de usar “não ganhar” ao invés de “perder” aqui porque, no mahjong, essa questão de semântica faz um mundo de diferença no resultado de uma rodada) consegue sair por cima de alguma forma.

Sadismo e Escuridão

Podemos tirar algumas reflexões interessantes disso tudo, uma que eu gosto é pensar no subtítulo da série: “O Gênio que desceu à escuridão”.

Washizu é um cara “do mal”, se quisermos trabalhar com tais termos, e a única coisa capaz de de destruir seu império é entrar dentro do seu covil e começar a dinamitar tudo por dentro jogando seu próprio jogo de escuridão. Não existe “herói” mais apropriado pra tal trabalho do que Akagi, por mais que eu não goste nem um pouco de chamá-lo de “herói” aqui. É o Hércules indo até o covil da Hidra pra acabar com ela, só que de maneiras que beiram o sórdido.

Akagi é um cara que conhece um pouco do que há de pior no mundo e nas pessoas, é um cara que entende dessa escuridão, e ele saberia fazer esse “trabalho sujo” que ninguém é capaz de fazer, sem medo de sujar as mãos. Ele não se assusta com isso, fica lá com a mesma cara diante de várias coisas que fariam uma pessoa normal se borrar de medo, ou no mínimo sabe disfarçar bem e não demonstrar esse medo, então só ele mesmo pra lidar com algo tão aterrorizante quanto mahjong com peças translúcidas. Ele vai saber entrar na escuridão pra brigar contra o chefe desse covil, mas o melhor de tudo é que ele tá indo nessa primariamente por entretenimento pessoal acima de tudo. É tipo aquelas pessoas que vão pular de bungee jump, é um jeito de sentir adrenalina e se sentir vivo.

É engraçado falar em “se sentir vivo” porque o Akagi quase sempre tá com uma cara bem neutra em sua expressão, mas o Washizu com seu desafio consegue forçá-lo a alguns níveis que até então lhe eram desconhecidos, então pra ele é quase como uma brincadeira, a ponto de ele ter a audácia de recusar receber seu sangue de volta quando lhe é dada a oportunidade só pra ver o medo nos olhos do Washizu vendo um maluco que a cara nem treme direito diante da possibilidade de ter seu sangue (no início, metafórico, na forma de dinheiro; e posteriormente, de forma literal) sugado até murchar e morrer se caso perder o jogo.

Então, nessa batalha de mentes, essas figuras mitológicas vão encontrar o seu ponto em comum e dialogar suas naturezas selvagens através desse jogo, no mesmo nível. Akagi precisa de um Washizu pra se sentir vivo e essa será a primeira vez que enfrentará um desafio à sua altura, tal qual Washizu finalmente encontrou um desafiante que consegue ser muito mais do que uma mera vítima, e também tá sentindo coisas novas que nem sabia que eram possíveis. O gato virou o rato, e o rato virou o gato. O Tom viu que o Jerry sabe dar porrada. Jerry riu dando essa porrada de tacape no gato.

Lembro-me de uma partida que eu mesmo joguei uma vez e logo na primeira rodada eu levo uma derrota pesada na fuça e acabo tendo que pagar uns 12 mil pontos logo de cara pro vencedor. “Puts”, pensei, encurralado feito um rato, mas aí na rodada seguinte eu tive uma oportunidade com vento soprando na minha direção e devolvi essa porrada com o triplo da força, através da primeiríssima (e até então única) vez que fiz um yakuman, causando enorme prejuízo pra esse jogador, que estava com seus pontos quase zerados. Na rodada logo depois dessa eu dei o golpe de finalização nesse mesmo sujeito com uma mão que valia os mesmos 12 mil pontos que ele tinha me tirado no começo, e o deixei no negativo numa derrota extremamente humilhante. Pode não ter sido exatamente a partida mais brilhante que tive em termos de estratégia, mas cara… aquele sadismo extremamente confortável que tomou conta de mim naquele momento foi uma sensação deliciosa pro meu cérebro naquele instante, tipo quando uma criança bagunceira resolve chutar um formigueiro porque sim se sentindo poderoso diante desses pequenos insetos. Esse foi um dos momentos em que eu mais entendi o que o Akagi busca num jogo como esse: o prazer de torturar o seu oponente psicologicamente e esfregar na fuça dele que você soube se vingar e revidar o golpe com muito mais força com as ferramentas que o jogo te deu. E, apesar da minha descrição meio sádica, digo isso com todo respeito ao pobre coitado que jogou essa partida comigo… e, por favor, não chutem formigueiros!

É óbvio que eu tirei print disso que descrevi acima. Puta que pariu, que DELÍCIA de sensação que é destruir a mesa com um yakuman. Foi tipo ganhar de perfect duas vezes seguidas no Mortal Kombat e encerrar com um fatality ultra difícil de fazer.

Pode ter sido uma partida num jogo online essa que experienciei e descrevi no parágrafo anterior, mas imagino como seria numa mesa ao vivo, o terror nos olhos do pobre coitado que começou o jogo muito bem e, quando menos esperava, levou esse yakuman na cabeça e, como se desgraça fosse pouca, ainda levou uma segunda porrada bruta logo em seguida sem ter a menor chance de nem gritar socorro.

Mahjong às vezes traz esse tipo de sensação pra gente. Será que a gente pode ficar aqui divagando sobre a natureza do sadismo num jogo como esse? Fazer seus adversários dançarem na palma da sua mão sem eles nem terem consciência disso é muito divertido.

Eu não vou começar a falar de BDSM aqui, calma! Mas não dá pra negar que o apelo aqui é, em algum nível, similar, né? Não tem masoquismo, mas o sadismo tá todinho aqui, apesar de a gente poder discutir que o masoquismo entra no fato de a gente continuar jogando e se irritando e sentindo tensão mesmo sabendo que pode perder. Meu objetivo aqui não é fazer nenhum juízo de valor definitivo a respeito da moralidade do sadismo, mas no mínimo podemos pensar um pouco sobre o que é essa sensação de sentir prazer ao causar sofrimento alheio, ainda que seja através da ótica de um mero resultado de um jogo de mesa. Sejamos honestos, competitividade saudável à parte, é muito gostoso ganhar de lavada de alguém e ver a cara de merda que a pessoa que perdeu pra você fica, né?

É isso que sentimos vendo o Washizu se cagando de medo diante da imponência do Akagi, que dá uns sorrisinhos de canto de boca vendo como ele tá conseguindo distorcer a figura do monstro político da Era Showa ali na frente dele. Esse era o tal monstro de que tanto lhe falaram? Esse homenzinho patético chorando porque tá vendo sua fortuna indo toda pelo ralo pras mãos de um cara que não tá nem aí pra dinheiro e nem vai fazer algo de muito incrível com isso? Como é divertido ver esse cara só degringolar mais na própria desgraça, ainda mais nessas condições! Nós, os leitores, também desfrutamos desse sadismo vendo o sofrimento do Washizu.

tem partidas em que me sinto exatamente assim indo atrás do meu alvo (e às vezes eu sou o Washizu nessa vendo alguém preparado pra me destruir nos pontos)

É assim que os caçadores se sentem? Porque pensando aqui, não há nada que justifique a existência da caça esportiva além de puro sadismo. Deve haver alguma adrenalina do tipo no ato de correr atrás de uma presa pra ostentar uma “vitória” sobre ela depois. Eu às vezes sinto vontade de contar aquela história do meu yakuman quase como um caçador ostentando um busto de veado em sua parede igual daqueles que a gente vê nos filmes americanos em casas velhas de madeira. Eu não caçaria um animal indefeso por mero esporte, mas há outro tipo de sadismo em mim em algum nível, tal qual deve haver no Akagi ou em qualquer pessoa que joga mahjong… ou literalmente qualquer outro tipo de jogo que possa ser usado em competições. O Akagi não é o tipo de cara que ostenta ou celebra suas vitórias e caçadas, mas ele certamente se diverte horrores apostando e vendo até onde sua ambição consegue chegar, porque afinal, apostar é isso. Apostas e competitividade são parte do que há de mais agressivo em nossa natureza. Literais guerras surgem por conta de competitividade ou porque um lado está ostentando mais força em cima de outro mais fraco, subjulgando-no ao seu poder porque ele pode, e saboreando cada segundo dessa fantasia de poder pisoteando a fraqueza alheia.

Washizu, lá no começo um caçador, matando vítimas de formas estranhas a seu bel prazer por não encontrar um adversário à altura, finalmente sofreu uma reversal e agora virou a caça, porque encontrou alguém tão sádico quanto ele, senão mais. Ele está provando um pouco do próprio remédio.

https://youtu.be/vAkUFHP1iUg?si=J0Y1Wt3CAQn9u1_y

É quase como se existisse algum tipo de “trevas”, provenientes dessa parte específica da psiquê humana, que fossem intrínsecas à natureza de um jogo como mahjong, onde os supostos mais fortes podem ser dominados completamente e as estruturas dessa disputa de poder e sadismo podem até ser invertidas quando menos se espera, porque esse jogo pode permitir que algo assim aconteça. Talvez isso explique esse jogo ser tão jogado pela yakuza ou ser tão presente em histórias de “crime drama” orientais? Não sei, mas certamente é algo pra se pensar sobre.

A cereja do bolo desse festival de sadismo proposto pelo Fukumoto, pra mim, é próximo a um final de rodada onde Akagi começa a ganhar MUITAS vezes consecutivas. No mahjong, o jogador que é marcado como o “negociador” da partida tem direito a repetir a rodada nessa posição, até que outro jogador seja capaz de tirá-lo daí vencendo antes dele, e a cada rodada extra, novos 300 pontos vão sendo adicionados ao bônus pro vencedor. O Akagi ganha mais de 5 vezes seguidas nessa brincadeira, fazendo o Washizu sangrar tanto dinheiro que só nessa rodada acaba com a maior parte da fortuna dele faltando ser às gargalhadas de tão cômica que é tal cena. Eu já passei por uma situação similar à do Akagi numa partida, então entendi na pele aquele olhar de “Nada disso, Washizu, você não vai levantar dessa cadeira enquanto eu não acabar com todo o seu dinheiro”. Não é muito sobre catarse, mas sim ver o cara sendo empurrado a um novo nível de trevas que nem sabia ser possível. Quem sou eu pra julgá-lo quando poderia ser muito bem eu mesmo sentindo o mesmo se estivesse nessa posição?

O que por sua vez faz com que o final do jogo seja um duelo entre iguais, agora que Washizu não tem mais a sua fortaleza de dinheiro consigo e sobrou apenas a sua honra e seu sangue… o dinheiro está na mão de Akagi, mas lembrem-se que ele não tá nem aí pra posses materiais, então ter uma parte daquele monte de dinheiro pra si não é nada pra ele. Akagi conseguiu trazer Washizu pra ainda mais fundo nas trevas pois é o mergulhador da escuridão, e agora sim tá na hora desse jogo se resolver de igual pra igual.

Essa é uma das minhas páginas favoritas de qualquer mangá, sem brincadeira. Isso acontece no volume 22… de 36. E pensar que vamos ver mais uns 13 volumes de tortura ao Washizu depois dessa página…

Eu sempre falo em tom de brincadeira que “mahjong é o jogo que traz o que há de melhor e pior no ser humano, às vezes tudo junto”, e imagino que o mesmo se aplique a poker e outros jogos que envolvam apostas e sorte. Mahjong e poker têm algumas similaridades, em natureza, até. Acho que poucos mangás ilustram isso tão bem quanto “Akagi” fez, e o fato de que o Fukumoto consegue conduzir esse show de tensão e quase completo sadismo por quase 30 volumes contínuos publicados ao longo de vinte anos só torna um absurdo ainda mais mítico que nem sei se as minhas palavras conseguem fazer justiça. Jogos competitivos podem ser uma troca de fluxo de poder entre o dominante e o subjulgado, e pra sentir a real adrenalina máxima que eles podem oferecer, é necessário um pouco de sadismo.

Esse sadismo é uma amostra do “mal” que há dentro de cada um de nós? Estamos vendo uma competição entre dois caras que admitiram o quê de maldade que existe dentro deles e estão dispostos a afundar nessas trevas pra decidir quem vai ser capaz de sobreviver dentro delas. E mesmo assim, não acho que rótulos binários tão como “bem” e “mal” são tão aplicáveis aqui. Me sinto como se tivesse vendo um documentário do Animal Planet sobre predadores caçando suas presas ou animais selvagens brigando até a morte. É meio tosco julgar animais por réguas morais humanas. Você consideraria um tubarão que estraçalhou uma foca todinha pra comer como um ser “maligno”? É a “lei da natureza”, ou “lei do mais forte”.

O ser humano inventou conceitos como “lei” e “bem versus mal” pra não matarem uns aos outros a torto e direito, além de tentarem entender a si mesmos. Talvez o ser humano tenha inventado jogos e competições justamente pra saciar essa sede de “fome selvagem”, que flerta um pouco com sadismo. Nós também somos animais, mas diferente de um tubarão, a gente inventou meios específicos pra não deixar essa natureza violenta aflorar. Competições nos lembram disso, apenas o mais forte sairá vitorioso. Aqui estamos testemunhando dois superpredadores (aliás, adoro o termo em inglês pra isso, aliás: “apex predator”, o ápice da cadeia alimentar e da predação), brigando pra ver quem será o sobrevivente desse ambiente natural pra eles que é a escuridão. Washizu era o leão que achava que dominava a savana e matava todas as zebras, mas ele não contava que um leão mais jovem iria surgir em seu território, e não apenas iria tomar dele todas as suas zebras como estava mais do que disposto a dar um cacete nele, de forma tão humilhante que caso ele perca, terá de ir embora de seu próprio covil com o rabo entre as pernas, tal qual leões de fato fazem na natureza. Não há nada mais humilhante do que ser vencido em seu próprio jogo e em seu próprio castelo por alguém que descobriu onde exatamente chutar no seu trono pra tombar a sua cadeira. Se Washizu quiser manter sua honra, terá de se igualar à ferocidade de Akagi, mas será que isso é ao menos possível?

Não há luta de “bem vs. mal” aqui, apenas dois homens assumindo a sua selvageria interna que a vivência do ser humano moderno tentou encobrir para que sejamos uma espécie supostamente capaz de conviver em sociedade. A lei não existe mais nessa sala isolada do mundo da luz, tudo pode acontecer ali com esse jogo que pode fazer o caçador virar a caça em questão de poucos minutos, caso o outro conceito abstrato inventado pelo ser humano e batizado de “sorte” resolva agir em seu favor.

É meio inconcebível pra mim que esse mangá exista do jeito que existe e tudo se alinhou perfeitamente pra que o resultado fosse esse. Parece uma enorme história de pescador, e mesmo comigo contando várias cenas aqui, acho que nada substitui o ato de experienciar passar essas páginas por si só. Há até quem diga que nem precisa entender o jogo pra entender, porque a tensão e o sadismo por si só já se destacam tanto que a abstração se torna mais fácil… mas eu educadamente discordo.

São tantas cenas boas dessas de analogias visuais do jogo que nem sei direito quais escolher pra ilustrar aqui

Assim, concordo que há mais abstração aqui do que em “Ten”, por exemplo, mas ler esse mangá sem entendimento de mahjong é perder mais da metade da experiência, porque se mahjong não fosse um jogo tão maluco assim onde tudo pode mudar num piscar de olhos, esse mangá não seria assim. O mahjong é necessário ao Akagi como personagem, e consequentemente à sua história, e é por isso que ele fascina tanto o leitor e basicamente virou a cara da revista onde saiu e até meio que o principal sinônimo de “mangá de mahjong”, mesmo que já existissem alguns bem conhecidos tanto antes quanto depois dele (e a história do mangá de manjong enquanto gênero por si só deve ser bem fascinante… algum dia quero pesquisar sobre isso mais a fundo porque o assunto muito me interessa).

O meu ponto final sobre isso, por enquanto, é que o Akagi, apesar de toda a abordagem mítica em volta de sua existência nesse mangá, quase que o tornando uma espécie de Hércules do mahjong, é um personagem mais “humano” do que parece. As leituras dele que clamam e param no fato de considerá-lo um “Gary Stu” falham em perceber um detalhe crucial da natureza dele nesse ponto da vida, mais especificamente durante a partida contra o Washizu do que em qualquer outro ponto, e este é: existe um pouco de Akagi Shigeru em cada um de nós. Um pouco desse sadismo, dessa escuridão. A grande questão é quantos de nós estamos prontos pra admitir isso de cara limpa sem ser num confessionário ou num consultório de psicoterapia. Jogos como mahjong, entre vários outros, ajudam a aflorar um pouco desse sadismo inerentemente humano que às vezes nem sabíamos que tínhamos. Podemos não ter a mesma sorte insana dele de fazer jogadas arriscadíssimas e dar certo ou vir com mãos iniciais que podem ser transformadas em yakuman com algum esforço e nervos de aço, mas essa propensão a faltar só lamber os beiços tal qual um leão observando uma zebra só pra mostrar nosso poder sobre ela, isso temos.

A nível pessoal, “Ten” me interessa mais enquanto história, mas em termos de análise e reflexão da natureza do mahjong e o efeito mental que ele tem em seus jogadores e pelo puro show de sensações e tensões, “Akagi” é meio imbatível do seu próprio jeito. É muito mais do que uma mera “prequel”, até porque ele é bem mais lido e comentado que “Ten”, e por motivos bem compreensíveis até, tanto dentro quanto fora dele. A “mitificação” não torna o Akagi menos interessante enquanto personagem na série em que o vemos mais velho, muito pelo contrário até.

E bom, falando nisso, acho que tá na hora de voltarmos a falar de “Ten”…

E estejam avisados, porque é a partir daqui que os spoilers mais pesados vão começar a voar e eu vou cavar ainda mais fundo.

O Começo do Fim de uma Era

Vamos pro volume 16 de “Ten”, que é um ponto de virada muito importante que vai definir todo o resto desse mangá.

Quando ainda estava falando de “Ten”, mencionei a saída de Akagi no tal torneio do Leste contra o Oeste. O torneio continua com Ten e Hiroyuki competindo contra os jogadores que restaram do Oeste: o lendário jogador Soga e o poderoso yakuza Harada. No fim de tudo, há um duelo incrivelmente tenso entre Ten e Harada, e após muito suspense e um jogo de arrancar os cabelos, Ten vence, logo, o Leste venceu a disputa.

E então, há um salto temporal de 9 anos na história, e agora veremos Hiroyuki, agora com 29 anos de idade e atuando como um salaryman comum levando sua vida apenas indo com a maré e apatia. Hiroyuki claramente podia ganhar uma vida como apostador se quisesse, afinal não era um jogador ruim, apesar de não ser nenhum Akagi… mas justamente sentir que não poderia ser um igual de Akagi era o que o impede de confiar em seus próprios instintos, tal qual o velho faz. Falta nele encontrar-se com essa selvageria e despreocupação com o senso comum que Akagi tinha… é curioso pensar na forma como Akagi jogava, depois de lermos e pensarmos no mangá protagonizado especificamente por ele.

Quando “Ten” chegou nesse trecho de sua publicação, era o ano 2000, e 10 volumes de “Akagi” já haviam sido publicados, o que quer dizer que a partida de Washizu Mahjong já tinha começado, e não fazia muito tempo. Já havíamos visto Akagi demonstrar algum grau de sadismo em seu modo de jogar… coisa que não vimos em “Ten”. Os leitores da época podiam até não saber como a partida contra Washizu iria terminar, mas qualquer um poderia supor que Akagi obviamente saiu vivo daquela noite, o que significa que ele provavelmente ganhou, certo? Não vou confirmar se sim ou não, porque, de verdade? Essa informação realmente não interessa muito, juro. Nem pra minha análise pessoal disso tudo ou muito menos até pro próprio ponto do mangá. Só podemos supor que Akagi nunca mais teve um oponente à altura e foi drasticamente mudado por aquela noite de jogo com peças translúcidas, e passou a lidar com a sua própria selvageria de outra forma. Será que ele enfraqueceu por ter atingido seu ápice ali ou apenas amadureceu ou viveu outras coisas que mudaram sua forma de pensar o mundo? Vai saber…

Igawa Hiroyuki. Agora um salaryman apático de 29 anos que por acaso é muito bom em mahjong.

A grande questão aqui é: o Hiroyuki precisa ser um novo Akagi? Talvez não, mas ele gosta de jogar mahjong, ele gosta da emoção da caçada também, falta algo pra que ele se despreenda do senso comum. Talvez se ele sentisse essa adrenalina, ainda que seja uma vida mais instável e arriscada, ele se sentiria mais feliz do que no trabalho seguro dele de salaryman, a vida do homem médio japonês de seu tempo. Isso me faz pensar na figura do salaryman japonês como um todo, em como isso é quase o equivalente japonês do que até um tempo atrás chamavam no ocidente de “american dream”, que já não é mais aplicável nem à realidade estadunidense porque o mundo mudou demais pra essa fantasia de “tenha um emprego seguro, case-se, tenha filhos, e trabalhe até morrer” se tornar cada vez menos alcançável e até menos apelativa. Não vou nem me atrever a chamar isso de “日本人の夢” ou, mais toscamente “ジャパニーズ・ドリーム”, como contraparte à versão americana desse conceito. Culturas diferentes possuem sensibilidades culturais diferentes, mas acho que essa ideia de “seja o homem seguro que não arrisca muito e vive pacato seguindo as regras pianinho sem grandes emoções até morrer” é universal o suficiente pra todos entendermos muito bem qual é a reflexão sendo trazida aqui, independente de qual seja o país em que nascemos.

Uma mente mais ousada pode até chamar isso de “a domesticação do homo sapiens”, tal qual os lobos foram domesticados pelos homens das cavernas há dezenas de milhares de anos atrás até hoje termos pugs e lulus-da-pomerânia sendo guiados em coleiras.

Enfim, acho que estou perpassando em muitas tangentes aqui, então, junto com Hiroyuki, vemos uma informação no jornal: uma cerimônia de funeral será realizada por causa do falecimento de Akagi Shigeru.

Akagi Shigeru está morto.

No dia seguinte, é hora de vermos o funeral. Como pode um gigante desses estar morto? Assim sem mais nem menos?

Eu não sei quantos de vocês já estiveram num funeral. Eu mesmo só estive em dois, mas uma coisa que percebi é que a ficha da notícia “fulano morreu” só cai quando a gente vê o corpo do falecido no caixão. Interessantemente, apesar de Hiroyuki ver todo o altar montadinho, fazer uma oração e ver o suposto Akagi no caixão, com uma expressão serena no rosto, sente que tem algo de muito errado ali. A ficha dele não caiu, apesar de tudo.

Hiroyuki então é avisado de que foi convidado pra ser integrante da vigília noturna do falecido, uma parte do ritual funerário todo… o que é curioso porque essa parte costuma acontecer antes da cerimônia, e não depois, e há toda uma miríade de coisas estranhas nessa história toda fazendo com que a conta não feche, mas logo ele entende o porquê, quando chamam o suposto chefe do funeral e ele é ninguém menos do que… o próprio Akagi!

A princípio tudo parece uma pegadinha, mas Akagi confirma que esse funeral foi verdadeiro, e que aquela certamente será sua última noite, enquanto leva Hiroyuki até o salão onde estarão todos os outros participantes da vigília noturna. No meio do caminho ele tropeça numa lanterna, e diz que não a viu porque um terço da visão de um de seus olhos se foi.

Chegando no salão da vigília noturna, os sujeitos lá presentes são todos os principais integrantes do torneio do Leste contra o Oeste que vimos lá atrás no mangá. E então, Hiroyuki é explicado o porquê de Akagi irá morrer em algumas horas:

Akagi teve o azar (!) de estar desenvolvendo Mal de Alzheimer, e o quadro está se agravando com bastante velocidade, e sabendo que em no máximo 3 anos ele basicamente se tornaria um vegetal, Akagi tomou a ousada decisão de eutanasiar a si mesmo enquanto ele ainda tem algum senso de razão e controle sobre sua própria mente.

É uma notícia pesada. Se você já conviveu com uma pessoa que tem ou teve Alzheimer, sabe exatamente como é. Eu mesmo já passei por isso e é aterrorizante ver uma pessoa lúcida perdendo gradualmente o controle de suas faculdades mentais até ter sua mente reduzida a ter menos autoconsciência do que um bebê recém-nascido, incapaz de fazer praticamente qualquer coisa diferente de respirar ou dormir por conta própria.

Num primeiro momento, o meu pensamento, se caso fosse eu nessa situação, é um óbvio “certo está o Akagi, eu faria o mesmo!”, principalmente porque a ideia de perder controle da própria mente me aterroriza mais do que morte, mas na prática… será que eu seria capaz de puxar esse gatilho metafórico? Mesmo diante de desgraças iminentes que demonstram claramente a nossa impotência para mudá-las e diminua nossos “motivos para viver”, ainda relutamos, porque no fundo, somos animais, e o instinto mais animal de todos é sobreviver, ainda que aconteça de forma involuntária às vezes.

Não pretendo entrar muito em detalhes da minha vida pessoal ou da forma como enxergo o mundo e a existência humana, mas… eu particularmente não sou um cara que acredita na ideia absoluta de estar meramente respirando é estar vivo, principalmente depois de anos convivendo com depressão como parte normal da vida e mais ainda depois de ver com os meus próprios olhos como uma doença degenerativa como Alzheimer pode destruir a mente humana e nos reduzir a quase pedaços de carne que apenas respiram. Alzheimer é uma condição extremamente cruel, mais cruel do que a própria morte, aos meus olhos.

O quadro de Akagi, apesar de parecer inicial, já se mostra com alguns sinais bem notáveis, como ele já não ter mais noção de datas, esquecer de detalhes simples ou até nem conseguir fazer operações matemáticas bem básicas, apesar de ele ainda conseguir conversar e reconhecer pessoas.

Todos aqueles homens naquela vigia noturna, num primeiro momento, se mostram de acordo com o caminho escolhido por ele. Eles conheciam Akagi, viram a lenda do homem que não ligava pra dinheiro, fama ou poder, e apenas vivia com seu orgulho, sagacidade e transiência tendo isso ser tirado dele aos poucos, fazendo com que Akagi Shigeru não seja mais Akagi Shigeru, e sim uma casca vazia onde algum dia já habitou este sujeito chamado Akagi Shigeru. Hiroyuki, por outro lado, se mostra indignado e não aceita essa situação de jeito algum.

O processo irá acontecer com uma máquina própria pra isso que, ao ser ligada, irá injetar substâncias no organismo de Akagi a fim de provocar sonolência, até chegar numa parada cardíaca que o fará morrer de forma pacífica e indolor, mas antes disso, esses 8 homens irão ter uma conversa particular final com Akagi, cada um. No fundo, todos eles irão tentar usar essa conversa pra, de alguma forma, fazê-lo mudar de ideia, mesmo sabendo que a chance de conseguirem isso é praticamente inexistente.

Eu não irei falar de todas as conversas aqui porque elas são bem longas e esse texto vai ficar ainda mais gigantesco do que já está se eu esmiuçar cada uma delas, mas todas tem coisas muito interessantes sendo ditas e que enriquecem muito os temas desse mangá e o personagem do Akagi, além até de nos provocarem reflexões pessoais sobre todos esses assuntos discutidos. Irei escolher os momentos mais pertinentes à nossa discussão aqui ou os que acho mais impactantes.

E sabe o que é mais engraçado? A partir daqui, mahjong basicamente não é mais um assunto nesse mangá… o que é uma subversão muito curiosa, porque até esse funeral começar, esse mangá basicamente respirava mahjong em mais de 90% de suas páginas, mas agora não mais por esses três volumes finais, que acabam sendo toda uma consequência do resto ter sido mahjong, que foi a situação que aproximou todos esses personagens com um objetivo em comum. É aqui que o cara que vai ler esse mangá sem saber muito de mahjong fala “ufa, finalmente vai ficar bom”, mas esse é o jeito errado de se pensar sobre. Bom já era desde o começo, o negócio é que tudo aquilo que vimos lá atrás vai ser usado pra questionar outros assuntos que vemos agora, e esses personagens só estão aqui todos reunidos porque vimos aqueles embates. A partir daqui é a culminação do que mahjong originou. Consequentemente, eu também poderia falar menos de mahjong a partir daqui, mas no fim das contas, os temas vão acabar esbarrando no assunto, ainda que de maneira tangencial.

O primeiro visitante é Kanamitsu, o monge, e também único que já sabia de antemão sobre a situação do Akagi, já que todos os outros só descobriram isso naquele dia. Akagi diz algo interessante aqui sobre vigílias noturnas, que, ao ver dele, elas deveriam acontecer antes da morte, porque pra ele não faz sentido que seja depois, já que todo mundo fica confuso sem saber o que o falecido pensava. E devido a isso, Akagi fez questão de escolher as pessoas com quem ele jogou mahjong pela última vez, durante o torneio, para compor esse grupo, pois essa seria a sua aposentadoria oficial do jogo que foi a sua vida. Kanamitsu, mesmo tendo sido o cara que ajudou a organizar tudo, questiona Akagi mais uma última vez se isso é o que ele realmente quer, e até um pouco do seu trabalho enquanto monge tendo que basicamente auxiliar um velho amigo em seu suicídio, fazendo-o questionar a moralidade de manter alguém com uma doença degenerativa como essas vivo, mesmo se o doente não tiver dado o consentimento. E nesse dilema, Akagi diz que o que Kanamitsu está fazendo não é crueldade, é justamente o oposto: gentileza.

Quem já viveu com uma pessoa nessa situação talvez já tenha se pego pensando nisso, pelo menos uma vez. Até que ponto é ético manter alguém vivo contra sua própria vontade, mesmo que essa pessoa não esteja mais “vivendo” mas sim “sobrevivendo”? Não vou entrar no debate moral aqui, até porque não é meu dever dar uma resposta pra isso, ainda que eu tenha meu próprio dilema moral a respeito, mas a provocação foi lançada nessa história, então no mínimo a gente acaba pensando um pouco sobre, mesmo que não cheguemos a alguma conclusão definitiva.

Apesar de estar disposto a ajudar, Kanamitsu teme pela vida alheia, e pede para que Akagi prometa que, se caso ele uma mínima mudança de pensamento que seja, que aborte o plano, mas este, retruca com: “tá, certo. Mas vocês não vão me fazer mudar de ideia. Prefiro ir agora enquanto ainda posso decidir isso do que quando eu já estiver morto de espírito”.

Mas Akagi está determinado a não mudar de ideia. Essa é sua aposta final, de que ele não será convencido do contrário. E agora os outros 7 caras irão tentar desafiá-lo a mudar de ideia.

O quarto cara, Ginji, traz um confronto interessante. Ele até tenta manter a compostura, enquanto conversa com Akagi sobre o medo da morte, e vendo o quão decidido e inabalável Akagi está diante disso, ele manifesta sentir inveja disso nele. Eles conversam um pouco sobre alma, consciência, e eles começam a conversar sobre o ciclo da vida, morte e renascimento. Basicamente o Ciclo do Samsara budista, porque essa conversa deles pega MUITO nesse tópico. Então, diante do medo da mortalidade e da não aceitação do ciclo da transciência da vida, Ginji confessa que foi diagnosticado com câncer, e que talvez não tenha muito tempo pela frente, então desaba em lágrimas, vendo que não tem nem um décimo da força mental de Akagi pra lidar com a própria mortalidade. Akagi, por sua vez, diz que boas pessoas acabam tendo boas mortes. “Boas” no sentido de “tranquilas”, presumo eu.

O ponto de Akagi aqui é que a morte é parte natural da vida. Imagino que por ele não ter um ambiente cristão à volta dele, diferente do que nós aqui do ocidente muitas vezes temos, o faça ver a morte de uma forma diferente. O Budismo e o Cristianismo enxergam a morte de formas bem diferentes, afinal. O “pesar” existe em ambos, mas a forma como as pessoas parecem lidar com isso tem suas sensibilidades diferentes. É uma outra reflexão interessante da qual eu não consigo dar nenhuma resposta definitiva, e sinceramente, ela nem seria necessária de existir.

O quinto cara a ir falar com Akagi é o Soga, um velho que jogou mahjong contra ele durante o torneio e se mostrou um adversário à altura… à altura de um Akagi que já não estava mais no seu auge, vale dizer. Soga também é outro maluco por mahjong e um grande nome do jogo na região Oeste do Japão, e ele chegou aqui com uma mala, dizendo que ele e Akagi precisam de um último acerto de contas, pois ele não aceita que Akagi irá morrer sem que ele finalmente tenha a chance de superá-lo ainda em vida. E nesse jogo final, o que está em jogo é: se Soga perder, ele morrerá no lugar de Akagi, mas se vencer, Akagi irá abortar a ideia da eutanásia. Akagi acha essa ideia interessante, mas com grande pesar, solta a bomba…

…ele não tem mais capacidade cognitiva pra jogar mahjong.

Sabem aquilo que falei há uns parágrafos atrás de que em velórios, a ficha de que o fulano da vez em questão morreu só cai quando vemos o corpo? Pra mim esse momento pro Akagi meio que foi aqui, nessa cena. O cara que é a maior lenda do mahjong não consegue jogar mais! É um leão que não tem mais suas garras e presas. A vida desse cara era usar a própria mente, sua maior arma, pra sentir a adrenalina que essas apostas lhe proporcionam. Sem isso, Akagi não é nada. Nem digo isso como um observador, o próprio Akagi está ciente disso, e ele falará sobre isso algumas vezes nessa noite.

Mas então, Soga surpreende, e diz que o jogo em questão não é mahjong, apesar de usar as peças de um dos naipes do set de mahjong. Um joguinho bem simples, onde eles irão pegar as peças do 1 ao 9 daquele naipe, e as jogarão viradas pra baixo, e logo em seguida pra desvirar e ver quem tem o maior número. Quem tem o maior número vence, e irá acumular pontos com a soma dos números jogados. E eles irão jogar por 9 rodadas. Akagi aceita o desafio, e ainda declara que se empatar, nada será feito.

E eles jogam, essa será a batalha mental final entre Soga e Akagi. Adivinhem o resultado? Um empate! Todas as nove rodadas tiveram Akagi e Soga jogando as mesmas peças, empatando seguidamente em todas elas. Isso é ainda mais maluco do que se ele conseguisse ganhar, porque é uma probabilidade baixíssima de algo assim acontecer. Até acontecer um yakuman talvez seja mais provável do que empatar 9 rodadas seguidas disso. Diante desse milagre, Soga questiona se Akagi realmente precisa morrer, e este, responde: “que felicidade há numa vida em que eu não posso nem jogar mais? Se não posso jogar, não significa nada”. O maior orgulho da vida de Akagi é ser bom em apostas, sentir a adrenalina de cada uma dessas disputas, e ver que isso vai ser tomado dele é o fim. Akagi não planejava vencer essa, sabe-se lá como ele conseguiu o empate, e isso comove Soga, que finalmente aceita que Akagi pode morrer em paz, ao invés de apodrecer mentalmente aos poucos. Acabar assim seria um fim trágico demais pra uma lenda como ele, ele conquistou o direito de partir enquanto ainda tem forças pra partir em seus próprios termos. Ele é um homem que jamais poderia viver uma vida ordinária dessas de só se manter vivo porque sim enquanto fica cada vez mais lelé da cuca. A figura mítica não pode partir de outro jeito senão pelas próprias mãos e pela própria vontade.

Eu evoquei a analogia do leão sem garras lá atrás, mas Soga traz uma parecida aqui, e eu gostaria de parafraseá-la:

“Tal qual um animal, quando suas habilidades não podem mais lhe servir, ele deseja morrer. […] Todos os animais possuem habilidades nas quais são excepcionais e nas quais podem contar pra justificar sua existência. Veja por exemplo o rei das aves de rapina, a águia, com suas asas rasgando os céus, garras que rasgam suas presas e um poderoso bico.

Esse talento é a sua vida, logo, só de estarem vivos animais selvagens já são belos por si só. Um modo de vida simples, belo porque carece de desejos triviais. Dá pra chamar de ‘beleza funcional’. Se uma águia perdesse suas asas, ou o seu bico e garras que rasgam suas presas, e tudo que resta é ficar cambaleando por aí, ainda será uma águia? Não é questão de genética, não é mais como uma águia deve ser e perdeu a sua beleza. Se a águia pudesse conjurar palavras, provavelmente diria ‘já chega, me mate’.

A Natureza é impiedosa. Em menos de três dias alguém virá rasgá-lo em pedaços. Essa é a lei da natureza. A princípio parece crueldade, mas continuar vivo quando já se perdeu seus talentos é ainda mais cruel. A morte é a salvação para um ser vivo como esse. Isso é o que Akagi está tentando fazer. […] Não adianta chorar, uma morte como essa é inevitável pro Akagi! […] Não há do que se envergonhar, todos morreremos quando chegar a nossa hora.”

Essa é uma das cenas mais emocionalmente poderosas desse mangá inteiro, e talvez a conversa mais interessante de todas essas oito. Todo esse arco final é uma das abordagens mais sensíveis que vi sobre aceitação da própria mortalidade que vi numa história assim e é bem simbólico que a última vez em que peças de mahjong são utilizadas em cena seja justamente aqui. Mas calma, o próximo cara é quase tão interessante quanto!

O Desfile das Ambivalências

E então, entra em cena o Harada, o yakuza de Osaka que jogou no torneio e teve o duelo final contra Ten. Ele chega com vários de seus subordinados, dizendo que vai sequestrar Akagi pra salvá-lo de sua própria morte e não irá aceitar “não” como resposta, mesmo que tenha de usar força pra isso, mas Akagi está disposto a apertar o botão ou morder a própria língua, mesmo que isso custe não poder ouvir Hiroyuki ou Ten por uma última vez, algo que lhe traria arrependimento. Vendo que não vai conseguir o que quer, Harada manda todo mundo que entrou com ele ir embora, e decide conversar namoralzinha, vendo que o “blefe” de Akagi não é um blefe. Akagi não blefa, ele segue à risca tudo que diz, sem dar pra trás. Ele realmente iria morder a própria língua se achasse necessário. Não adianta bater de frente com ele.

Diante dessa imponência, Harada só treme e pergunta se não tem nem um filetinho de vida dentro do Akagi que deseja continuar vivendo. Pra surpresa de nós todos, Akagi responde “deve ser tipo 1%. Talvez 3%” e é aqui que ele admite aquilo que eu falei lá atrás: mesmo quando o ser humano está encurralado em sua própria miséria e aparentemente não existem mais motivos justificáveis pra continuar existindo ou que façam valer a pena, a vontade de estar vivo jamais chega a 0%.

Pode até não ser 0%, mas vamos ser francos? 3% não é nada, praticamente. Akagi sabe disso e ele até comenta com certo escárnio sobre, mas ele está certo. A vida não é algo tão absoluto assim, tons de cinza precisam ser vistos e aceitos como parte dela. Só resta a ele aceitar a própria aposta. Eu não abriria mão de uma aposta onde tenho 97% de chance de acertar o resultado. Ainda que essa aposta seja sobre o “sabor da morte”, como diz ele próprio.

Da mesma forma que quem quer morrer não quer 100%, quem quer viver também não quer 100%. Existe essa ambivalência entre a vida e a morte como os dois lados de uma mesma moeda, e a gente só se sente vivo porque sente o perigo da morte às vezes. Lá quando eu estava falando do Washizu Mahjong, mencionei que pessoas às vezes buscam adrenalina saltando de bungee jump e coisas do tipo. Isso volta aqui agora, e o Akagi começa a falar, com todas as letras, sobre o prazer da tensão. As pessoas são curiosas quanto à morte e destruição.

A princípio, é fácil de evitar o risco, mas mesmo assim continuam existindo pessoas apostando dinheiro em corrida de cavalo, saltando de asa delta, entrando em lutas, e por aí vai. O que diabos explica isso? Será que o ser humano anseia pela morte e pela destruição em algum nível? É meio como a tal da “curiosidade mórbida”. Sair de uma situação perigosa faz você se sentir mais vivo do que nunca, e acho que todos podemos concordar com isso. Você se salva do risco e do perigo, então podemos dizer que é até um tipo de “salvação”.

Lá no começo do texto mencionei que decidi começar a jogar mahjong porque estava entediado. Será que eu mesmo estava procurando adrenalina e tensão? Bom, provavelmente, porque o tanto que eu me irrito com esse jogo às vezes não é brincadeira, mas o prazer que eu senti depois de ganhar passando sufoco em várias partidas foi delicioso. Não só em mahjong, tenho que admitir que até quando eu jogo “Street Fighter”, e venço uma partida difícil, esse mesmo sentimento toma conta. É muito mais gratificante do que vencer uma partida onde o outro competidor não representa perigo nenhum.

Se lembrarmos da forma como Akagi jogava mahjong, tanto em “Ten” quanto em “Akagi”, nos lembraremos das jogadas arriscadas e apostas insanas. Akagi sempre esteve pronto pra morrer por causa de seus atos e apostas, e jogava ciente disso, porque afinal ele buscava um pouco dessa sensação destrutiva, pessoalmente. Isso pega tangencialmente até em todo o lance envolvendo sadismo que dissequei ali atrás, até porque o sadismo é uma sensação destrutiva e que dá adrenalina no agressor. A vida não existe sem a morte, que não existe sem a vida.

Mas Harada parece não entender muito bem isso tudo que Akagi está pensando sobre existir 3% de vontade de viver e mesmo assim ele não desistir da eutanásia. E é aí que vem a cartada: Akagi diz que Harada parece olhar pra ele com lamento, mas no fim das contas, é ele quem está bem pior. Harada mal está vivendo e nem ao menos percebe, tamanho sofrimento.

“Você tem sucesso demais acumulado em suas costas”, diz Akagi.

É uma frase meio curiosa. Mas com a explicação ela vai fazer perfeito sentido. É difícil manter o sucesso, apesar dele ser necessário pra nossa existência às vezes, e Harada é um cara que precisou de sucesso demais, só que agora tem tanto poder que não sabe como controlar isso, e pode perder tudo num descuido. Harada é um figurão da yakuza, então ele precisa manter a pose e não pode fraquejar, senão todos o pisotearão. Não há espaço pra ele poder não ostentar esse poder, ser um ser humano normal, então ele entra numa espiral sufocante de ter mais e mais poder, que aos poucos vai lhe destruindo.

O que é um total contraponto à forma como Akagi viveu. Mesmo ganhando quantidades absurdas de dinheiro em apostas que poderiam ser o suficiente pra que ele vivesse como uma marajá, ele torrava tudo muito rápido ou, diz ele, perdia tudo. Ele nunca entra muito em detalhes, mas aparentemente se livrava da grana de formas bem esdrúxulas, porque dinheiro pra ele é só papel colorido, afinal. Ele nunca fez questão de ter um patrimônio enorme de bens materiais e poder. A ânsia por sucesso constante vai aos poucos te consumindo, a ponto de você não poder viver os deslizes ou botar o pé no freio, tirando a sua liberdade. É meio como a forma em que estamos todos sujeitos à ordem do dinheiro no mundo regrado pelo capitalismo. O dinheiro, logo, o sucesso, é o que nos dita. Quando você se torna o rei, não pode mais andar de cuecas por aí porque precisa ser o exemplo a ser seguido. Há uma expectativa em cima de você, quando se está numa posição de poder e autoridade. Expectativa sufoca. A sociedade espera que que todos arrumem trabalhos em condições péssimas mas mesmo assim tenham dinheiro pra se sustentar e criar uma família pra manter a máquina capitalista girando. O moedor de gente precisa de mais carne pra continuar funcionando. Estamos todos acorrentados à lógica desse sistema. Chega uma hora que essa pressão te envolve como num caixão.

Akagi nunca ligou pra bens materiais ou dinheiro e conseguiu viver sua vida bem apesar disso, com só o necessário. Teria sido ele o homem a vencer o controle do sistema capitalista sobre sua mente? Diferente de Harada, que é o homem que continua fazendo a máquina girar e é cúmplice do que há de mais complicado no sistema? Essa é mais uma pergunta sem resposta definitiva sendo provocada aqui. Essa dúvida foi o suficiente pro Harada ficar em choque por ter seus olhos abertos pra algo que ele nunca tinha pensado a respeito antes. Viver às margens da lei como yakuza deve aumentar ainda mais essas circunstâncias que Akagi apontou, já que nem as autoridades legalizadas pelo sistema podem te auxiliar em nada aqui.

Essa conversa sobre a ambivalência entre a vida e a morte me é bem interessante, porque é um assunto que eu pessoalmente penso bastante a respeito no meu dia-a-dia, provavelmente por conta de algumas experiências que vivi e continuo vivendo. Ela enriquece muito os temas que existem no outro mangá inteiro, apesar de ser bem fácil de aferir que o Akagi opera por essa lógica lendo tudo que ele fez no mangá estrelado por ele, mas aqui isso é posto em letras maiúsculas, o texto está tão claro que não dá nem pra chamar de “subtexto”, por mais que nunca seja dada a resposta definitiva desses questionamentos, até porque o ponto não é sobre ter as respostas, e sim pensar nas questões. Será que no meio dessa ambivalência existe a chance de Akagi mudar de ideia num último segundo?

Talvez seja a mesma chance de acontecer um yakuman: pouco provável, mas existe. Porém, sendo realista, não dá pra contar com isso. A imensa maioria das vezes que você tentar fazer um yakuman numa partida de mahjong vai acabar em falha. As estatísticas não mentem, e qualquer um que joga ou já jogou bastante percebe isso fácil. Esses personagens estão perseguindo um yakuman aqui. Mesmo quando esse mangá não está falando diretamente sobre mahjong, o espectro da filosofia do jogo ainda paira por ele. Esse jogo e todas as suas características, analogias e possibilidades, são completamente indissociáveis desse ato final da história e de seus personagens, ainda que ele seja pouquíssimo citado aqui.

Bom, agora enfim chega a vez de Hiroyuki e ele chega no quarto onde Akagi está sem saber o que dizer, e fica em silêncio confuso por muito tempo. Tematicamente essa é a mais importante das conversas. Lembrem-se, o Hiroyuki é o verdadeiro protagonista desse mangá, como falei.

Hiroyuki não sabe o que dizer, o que é compreensível. Eu às vezes não sei o que dizer quando um amigo desabafa um problema pessoal, imagina saber o que dizer pra um cara que já tá decidido a morrer na próxima hora? Mas Akagi percebe essa insegurança, e diz pra ele falar qualquer coisa, pois apesar de um começo imperfeito, as coisas podem se ajustar. A vida não precisa de perfeccionismo, muito menos as interações humanas.

Aqui, Akagi propõe um desafio hipotético inusitado: usando as mesmas peças que Soga trouxe, todas viradas pra baixo, ele propõe que Hiroyuki tente tirar duas peças de número 1 iguais seguidas, e se caso ele conseguir, Akagi honraria tal milagre continuando vivo, mas se perder, ele levará um dos braços de Hiroyuki. Logicamente isso assusta, mas apesar disso, o jovem começa a calcular as probabilidades, e percebe que são baixíssimas.

E então, Akagi responde:

“Por que a demora? Sabe, Hiro… se você quiser que eu viva, é só aceitar imediatamente o meu desafio. Escuta… não pense na possibilidade de perder, apenas aposte na vitória. Se você perder é só voltar atrás. Ninguém é idiota o bastante pra apostar o próprio braço. Um cara que tá prestes a morrer não vai ficar sabendo se você resolver quebrar o acordo, então só vamos logo! […] Esse é o tipo de sabedoria que você ainda não tem…”

Então ele pega uma peça aleatória da mesa e joga pra cima como se fosse uma moeda em cara-ou-coroa e pega no ar… e a peça é justamente o 1-pin do desafio proposto.

Akagi então diz que todo jogo é uma competição pra ir até o fim, e que a inércia não lhe acrescentará nada. É só relaxar e seguir com o fluxo, ter flexibilidade, porque essa rigidez não leva a nada. Às vezes mudanças de planos são necessárias, e jogar de acordo com os planos nem sempre é a melhor possibilidade, e é isso que está travando a vida de Hiroyuki. Ele merece mais do que a mera vida de salaryman.

Novamente, isso bate muito com a filosofia de um bom jogo de majong. Flexibilidade mental é uma das características mais essenciais dos melhores jogadores. Nem sempre tudo vai ser como o planejado, e mais ainda, nem sempre você vai ganhar, mas se não jogar, não vai ter como ter chance de ganhar. É um jogo sobre seguir com a maré pra tentar alcançar o melhor resultado possível e nas centenas de partidas que joguei nesses últimos meses isso ficou bem claro. Mesmo quando você tem planos de montar uma mão gorda de pontos, às vezes precisa passar a jogar seguro porque sente que um dos oponentes tá com a sorte maior do que a sua, então é o menor risco… mas às vezes você precisa bater de frente com alguém que já declarou riichi (a declaração de que falta apenas uma peça pra ganhar e apostou mil pontos nisso… o jeito mais comum de se vencer esse jogo) pra tentar ganhar antes dele, como Davi mirando a pedra no ponto fraco de Golias. Essa conversa se mistura de forma quase homogênea com os temas das anteriores.

Até em sua vida pessoal às vezes é preciso meter o louco pra ter coisas melhores. Essa é uma lição que eu mesmo deveria aprender. O drama particular do Hiroyuki bate de um jeito bem pessoal pra mim, e imagino que pra muitos de vocês talvez bata também. Ele sempre foi “o carinha normal” no meio de todos aqueles jogadores super experientes no arco do torneio, ele começa essa jornada toda sendo um cara que tava descobrindo um talento, até ser posto em cheque vendo que existem jogadores bem mais habilidosos que ele… ou no mínimo mais experientes. Mas será que abandonar o mahjong e ser um sujeito ordinário realmente é o caminho certo pra um cara como ele? Ele vai viver sem o prazer da tensão?

Novamente, batemos na ambivalência, agora entre “risco” e “recompensa”. Akagi puxa um ponto aqui, de que a vida é uma fagulha que temos, e quando essa fagulha não acende, as pessoas normalmente não estão satisfeitas com a própria vida, pois a inércia pode levar a isso. Pra Akagi, a maior característica da vida é o movimento ativo. A palavra em japonês pra “animal” é “動物” (se lê “doubutsu”), e significa literalmente “coisas que se movem”, se levarmos apenas os kanjis dela. O primeiro é de “movimento”, e o segundo é de “coisa”. Tá, eu e você sabemos que plantas e fungos existem, mas a gente entendeu o que o Akagi disse, vai…

Ele tá vendo o Hiroyuki pela primeira vez em 9 anos mas só de olhar pra ele conversar um pouquinho já sabe o que aconteceu em todo esse tempo.

Inércia pode causar depressão, mas nem sempre a causa da depressão é ela. Nisso aí a gente começa a esbarrar em discursos motivacionais que eu particularmente detesto porque depressão é uma coisa bem mais complexa e não é resolvida com discursos idealistas, mas há um ponto aqui. Hiroyuki implica que Akagi acha isso uma besteira por ser alguém incrível, e este, por sua vez questiona se ele é tão incrível assim, e mesmo se for, “o que isso tem a ver com estar vivo?”, e diz que no fim, o que importa é curtir o fluxo do jogo, ganhando ou perdendo. Sentir a frustração por perder ou não ganhar faz parte do milagre da vitória no fim das contas. De novo a ambivalência entre vida e morte pode ser aplicada aqui em algum nível.

Mesmo os maiores gênios não possuem só vitória e quase sempre começaram do fracasso ou da mediocridade, pois fracasso e mediocridade fazem parte do ser humano, uma criatura falha, às vezes. O importante é ir com o fluxo, ganhar ou perder é a consequência e nem sempre somos nós que decidimos o que irá acontecer. Akagi não decidiu que ele teria alzheimer, mas infelizmente isso o acometeu, talvez seja um jeito de ver a situação e encarar o “fracasso” e a “morte” como parte do sucesso/vitória e da vida, respectivamente. Hiroyuki diz que o jeito que ele está vivendo agora parece “adequado”, apesar de tudo, mas o que diabos é uma vida adequada afinal? Eis então que Akagi lança a sua cartada final aqui, e a frase que irá definir a vida de Hiroyuki daqui pra frente. A passada de tocha adiante.

“Você disse que o jeito que vive agora é o apropriado, mas… o que exatamente é ser o ‘apropriado’? Qual é o normal? É viver desavergonhadamente? Você tá vendo? Isso é a verdadeira identidade do que tanto te atormenta! Esse ‘apropriado’ está te atormentando. Valores de ‘normalidade’ estão conflitando com seu coração e sua alma e aí você fica se preocupando com isso de ‘apropriado’ e ‘adequado’! Pense comigo, ‘pessoa adequada’ e ‘vida adequada’ são palavras meio engraçadas, né? Aí quando você pensa mais a fundo, você nem entende mais do que está falando. Esse lance de ‘pessoa adequada’ soa meio errado, né? E isso de ‘vida adequada’ também não existe. Essas coisas nunca existiram!

Nunca existiram, mas isso volta pra nos iludir a cada era, com nuvens escuras, trazendo uma ilusão da qual não podemos nos livrar, como se fosse uma hipnose coletiva. Diacho, não deveríamos esquentar a cabeça com isso! Só larga isso pra lá, você não precisa disso, apenas se ajuste. O que quero dizer é: permita-se ser uma pessoa que não vale nada pro mundo! […] Chegou a hora de você começar a pedalar pra longe desse tal ‘apropriado’ e ir em direção à sua própria vida!”

A moral da história aqui é não se preocupar com fracassos ou sucessos e só seguir a vida conforme achar melhor, sem esquentar com o julgamento social. Muitos de nós já devem ter pensado nisso, especialmente os que sempre foram considerados “desajustados sociais” como eu e tantos outros. O termo que Akagi usa no texto original em japonês quando fala em “ser uma pessoa que não vale nada pro mundo” é “ダメ人間” (“dame ningen”), que pode ser traduzido como “pessoa desqualificada” ou “inapropriado”, mas no contexto está sendo algo usado pra descrever alguém que não se ajusta aos dogmas sociais e à não-conformidade, que bem, parece ser o que tanto atormenta Hiroyuki aqui. Ele só terá valor aos olhos da sociedade se seguir com o caminho padrão e “adequado” de ser um salaryman, porque ganhar a vida jogando mahjong igual o Ten faz não é “apropriado”. Não é o Ten que precisa escutar essa conversa, mas sim o Hiroyuki. A vida deveria ser mais do que se preocupar com padrões impostos por um sistema social e ficar inerte por conta dessas expectativas. Akagi é o homem que venceu o capitalismo enquanto vivia no mundo imposto por tal sistema? Acho que podemos pensar que sim. Imagina viver uma vida despreocupado de dinheiro, posses materiais e grandes conquistas. Quem define a grandeza dessas conquistas? Qual é a régua que deve ser usada? Isso precisa ser uma competição?

“Não existe um único vencedor que já não tenha sido um perdedor”

A lição final de Akagi pra Hiroyuki é:

“Você se preocupa tanto com sucesso e fracasso que ficou inerte e perdeu sua chama, esse é o problema. Tá tudo bem ser medíocre. Se for medíocre e tiver a sua fagulha, excelente! Não faz diferença alguma, então não tenha medo. Irei repetir mais uma vez: não tenha medo de falhar!”

Uma lição pra vida e também uma lição pro mahjong, porque sempre as mãos mais valiosas são as que têm maiores riscos de falhar. Assim como quem joga de forma “medíocre” e segura e consegue ganhar, deu o seu jeito de chegar lá, e curtiu a tensão e adrenalina do jogo… Eu não tenho uma visão tão positiva da vida assim, nem de longe, mas ainda assim consigo entender a ideia do que está sendo dito, e em algum nível concordo. Tanto quanto isso ser aplicável a mahjong e jogos num geral quanto à vida. A primeira vez que o Akagi aparece nesse mangá jogando ele tá fazendo mãos com um yaku chamado “chanta”, que é uma mão que consiste em todos os conjuntos numéricos dela terem pelo menos uma peça de número 1 ou 9, e “chanta” é arriscadíssimo, a menos que você tenha sorte de já começar com várias dessas na mão inicial. Só maluco insistiria em fazer isso tantas vezes, com alto risco de dar merda e entregar o jogo.

Depois disso tudo, Hiroyuki acaba se esbarrando com Harada, e eles acabam conversando sobre isso, percebendo que eles têm muito mais em comum do que pensam. Afinal, o que Akagi disse pra cada um deles está diretamente relacionado, ainda que caminhem por direções diferentes.

E então, chegou a hora do último cara ir falar com Akagi, e ele é um sujeito que vive despreocupado e bem alheio aos padrões do que é adequado ou não pra se viver em sociedade, aos bons olhos do mundo. Ninguém menos do que Ten Takashi. Ele é um homem como Akagi, em algum nível. Será que ele é capaz de fazê-lo mudar de ideia?

E então, Ten chega na sala. Em termos de temas, eu acho que essa é, discutivelmente, a conversa menos carregada delas… o que ainda não a faz a menos importante. Me pergunto se é porque Ten parece ser o cara que tem menos o que aprender com uma conversa final com Akagi. A gente não viu as conversas do Ken e do Washio porque elas aconteceram em off (até porque, quem liga pro Ken e pro Washio? LOL).

Ten é um cara “despreocupado”, então ele não tem muito o que aprender com o rei do despreendimento… ou pelo menos é o que parece. A princípio, ele pensou que tudo bem ver Akagi partir, mas pra ele dói a ideia de ver uma lenda que ele tanto respeita indo embora desse jeito. É uma grande ironia do destino um cara tão sortudo em jogos quanto o Akagi ter dado o azar fodido de ter desenvolvido Alzheimer. Ver uma figura mítica caindo dessa forma é um lembrete de que nenhum de nós está imune ao fim se a natureza assim decidir que será. Se até um cara foda desses morrer assim, o que será de nós, meros mortais?

Isso é o que abala Ten, pois ele também está sendo lembrado da própria mortalidade. Mesmo o jogador mais bem pontuado da partida pode ter sua pontuação desmoronando se ele der azar (e os outros jogadores souberem usar isso ao seu favor). Ten não quer que Akagi Shigeru, o símbolo de ideal de apostador a servir de exemplo, caia em tal desgraça. Mas apesar de seus feitos incríveis, Akagi é só humano. Ele não é o tal “Gary Stu” que algumas pessoas já disseram que é.

Mesmo que Akagi mude de ideia e não se eutanasie agora, no futuro ele irá perder seu senso e continuará “à beira da morte” do mesmo jeito, e pior, dependendo de cuidados alheios, tal qual um bebê, porque alzheimer te deixa vulnerável desse jeito. Ele irá precisar de cuidados, e a ideia de não poder viver sozinho tendo controle de seus próprios atos lhe incomoda. A gente já sabe disso, ele disse outras vezes pros outros caras, e todos eles parecem estar cientes disso. A questão aqui é uma das fases do luto: aceitação, só que aqui é antes da morte de fato acontecer. Akagi já aceitou, mas Ten e os outros ainda não.

A gente já teve a conversa aqui sobre a diferença entre “estar vivo” e “viver” antes, e sobre discursos idealistas que não exatamente condizem com a realidade dos fatos, se ser mantido vivo com cuidados médicos, ainda contra a própria vontade, é o ideal ou se é “viver” de verdade. Pra Akagi, a sua identidade é mais importante do que um conceito como “vida”, e isso é o que ele mais teme perder, porque sem isso, não há mais propósito pra sequer sustentar uma “vida”. A palavra aqui é “自分” (“jibun”), o seu “eu”, o “self” do inglês.

O que se sucede aqui é um reforço de alguns dos temas que vimos antes, de que DNA e consciência são coisas separadas. O corpo físico é um veículo pra transportar a mente, mas sem a mente, nada pode ser feito. Já discutimos e analisamos isso aqui algumas vezes a esse ponto. O que importa pra Akagi é morrer sendo ele mesmo, apesar de tudo, e celebrar que será capaz disso, e decide brindar com Ten um copo final de whisky.

Ten tenta um apelo final, dizendo que essa vida selvagem que Akagi levou por mais de cinco décadas o privou de ter uma família. Em momento nenhum desse mangá, ou de “Akagi” é mencionada uma família ou sequer de onde ele veio, onde nasceu, cresceu…

Ten é um cara que valoriza a família e a vida com uma. Ele tem até duas esposas! Então convida Akagi pra fazer parte de sua família, já que não é lá uma família convencional de toda forma, ou, nos termos que ele disse pro Hiroyuki, uma família “apropriada”. Pra assim, Akagi ter uma vida tranquila aposentado da selvageria das apostas em seus anos finais, enquanto tem pessoas à sua volta cuidando dele… ou do que sobrou dele, devido ao alzheimer. Mas, como esperado, ele recusa.

Pra Akagi, que viveu sua vida inteira sozinho contando meio que unicamente com sua própria sagacidade e instintos, ele sente que o ideal é morrer por si só. “Colher o que plantou”, como ele mesmo diz em um certo momento dessa cena.

Ten, ainda em negação, desaba em lágrimas e pede que Akagi viva por ele. Akagi agradece pela consideração, e que essa gentileza o salvou, pois apesar de nunca ter tido uma família, teve amigos. Ele se despede e liga a máquina da Eutanásia.

Agora não tem mais volta, Ten ainda tenta impedir, mas já é tarde demais. No meio de tanto desespero, ele questiona a Akagi se ele não tem nenhum arrependimento, e este começa a lacrimejar, dizendo que o arrependimento talvez seja morrer… o que é meio contraditório com muito do que foi discutido aqui.

Mas isso faz sentido, apesar da contradição, porque nada é como o esperado… tal qual um jogo de mahjong, nem sempre a melhor jogada é aquela que foi inicialmente planejada com a mão inicial que foi dada. Algo no meio do caminho vai te fazer mudar de ideia pra jogar da forma mais adequada possível. Quando duas unidades da peça do dragão vermelho foram descartadas pelos outros jogadores, você já sabe que não dá mais pra fazer uma trinca a partir do que você já tem na sua mão (o que lhe garantiria um “yaku” pra já tornar a sua mão válida e já abriria caminho pra uma vitória rápida, é uma das formais mais comuns de se vencer uma rodada de mahjong), então provavelmente vai ter que descartá-lo se quiser jogar de forma mais segura… a menos que você queira muito apostar que o último dragão vermelho do jogo vai aparecer na sua mão pra completar um par e você se virar com o resto da sua mão, mas sinceramente, essa não costuma ser uma boa ideia e tem chances bem altas de dar errado. Faça a melhor escolha com as cartas que lhe foram dadas.

O arrependimento é prova de que estamos vivos, provavelmente não existe ser humano algum que não tenha arrependimentos, ainda que digam o contrário. Numa partida de mahjong o que você mais vai sentir às vezes é arrependimento, se não tiver vencido. Decisões erradas são o que mais acontece num jogo desses, jogado por meros humanos, seres que constantemente erram. “O arrependimento é o que faz os seus desejos brilharem”, diz Akagi, aqui. Nem sempre se alcança o que deseja, e ele aceitou que isso foi que que jogaram na mesa pra ele.

Então, todos os caras entram na sala e lá estão pra testemunhar, aos prantos, os momentos finais de Akagi, que começa a gradualmente perder a consciência pra sair deste plano de vida.

Esses momentos finais são o pouquinho que resta da consciência de Akagi pensando pra si mesmo que a morte é o que encerra o ciclo da vida, e o que completa a nossa existência. Como uma libertação de si mesmo. E então ele inconscientemente mentaliza o vento, como se aos poucos estivesse se tornando um com ele, tendo suas partículas sopradas junto das folhas, enquanto desaparece, com um sorriso sereno no rosto sendo o que fica pra quem tá vendo de fora, como forma de agradecimento pela vida que teve e pela presença daqueles 8 homens que estavam ali no fim.

No dia 26 de setembro de 1999, a vida de Akagi Shigeru chega ao fim, aos 53 anos de idade.

É uma sequência bem poderosa. E eu não a acho nem um pouco trágica, apesar de ser a morte de um personagem tão icônico. Não é um sacrifício heróico também, é… um cara aceitando a própria morte enquanto ainda pode decidir isso por si só antes de deixar de ser ele mesmo e seu corpo se tornar apenas uma casca vazia desprovida de consciência. Morreu em seus próprios termos, com sua humanidade ainda em seu devido lugar. Não havia outra maneira mais apropriada de a vida de um cara como esse chegar ao fim. Me lembra um pouco da morte de um certo personagem de “Hokuto no Ken”, que diz morrer sem arrependimentos e soca sua própria alma aos céus e morre de punhos erguidos, e quem leu sabe exatamente quem é. Lembra, mas é mais pé no chão, é algo mais próximo da realidade. Eu tenho motivos bem pessoais pra ter sido bem impactado por essa reta final de “Ten”, mas independente deles, se você chegou até aqui investido nessa história, é difícil não se comover.

O Akagi é praticamente uma força da natureza e um símbolo de algo foda. Mas também era um sujeito humano, essas duas coisas não são mutuamente excludentes. Ele evoca a admiração de todos os apostadores, ou de pessoas que no mínimo ficam fascinadas com a sua lenda e todo o mito que se criou em volta de sua figura no submundo do mahjong.

que mangá bom do cacete, puta que pariu

Eu gosto da imagética evocada aqui de sua existência se tornar uma com o vento soprando as folhas. Pessoalmente não acredito em reencarnação, céu e coisas do tipo, mas não consigo negar que é uma cena bonita e tocante, e que está alinhada com a ideia budista de morte de se tornar um com a natureza pra deixar a roda do Samsara agir. E que ironia eu ter falado em “céu” quando o próprio título desse mangá, “Ten”, é escrito com o kanji “天” (que se lê “ten”) que é o kanji de “céu”, no sentido de “celestial” mesmo, além de ser o nome do personagem titular, estar no nome do “Tenhou” (天和) que eu expliquei lá atrás o que é.

Será que esse foi o caminho pro “Tenhou”, o tal do “天和通り” (“Tenhoudoori”) que está no subtítulo do mangá? No fim, quem estava no caminho do Tenhou era o Akagi? O Ten? Ambos? Todos esses personagens presentes na vigília noturna? A resposta não é dada de forma definitiva, e nem acho que ela tanto nos interessa assim, mais do que o questionamento aqui presente.

Mas é com isso que somos enviados ao capítulo final do mangá, trazendo o epílogo dessa história.

Epílogo

a capa do volume final de “Ten”

Temos agora um salto temporal de 2 anos e meio, e a história agora está no ano de 2002, que não por acaso é o mesmo ano em que o final do mangá foi publicado. Hiroyuki largou o trabalho de salaryman logo depois do funeral de Akagi e agora virou “professor de mahjong”, que de vez em quando ganha uma graninha extra sendo chamado pra lidar com uns yakuza encrenqueiros que acabam indo pros centros de jogo arrumar confusão. Trabalho meio arriscado esse, mas rende uma grana bem gorda às vezes só nessas partes mais insalubres, além do salário regular dele como instrutor. Não é sempre que ele ganha uma bolada dessas, mas quando ganha é pra valer. Mas ei, finalmente ele tá ganhando a vida com algo em que ele é bom e se diverte fazendo, apesar da instabilidade… a vida por si só já é instável, afinal. Mahjong é um jogo meio instável também, tal qual a vida. É necessário flexibilidade pra lidar bem com ambos.

Esse é o jeito dele de tentar viver como o que aprendeu com Akagi. Hiroyuki é o herdeiro do “jeito Akagi” de se viver.

Hiroyuki, agora com 32 anos, e provavelmente mais satisfeito com a vida

Então Hiroyuki se encontra com Ten e eles decidem ir visitar o túmulo de Akagi, e naturalmente, conversam sobre o assunto no caminho, se Akagi morrer desse jeito foi a coisa certa ou não e no fim, eles chegam também à conclusão de que não poderia ser de outro jeito, ainda mais considerando a serenidade e o sorriso no rosto dele quando se foi.

Chegando lá, está o Kanamitsu está rezando e contando que o Ginji está dando certo no tratamento de câncer, e que Akagi terá de esperar mais um pouquinho pra voltar a jogar com ele, e então ele decide que vai catar um pedacinho do túmulo pra levar a pedrinha consigo pra ver se dá sorte e é pego no flagra por Ten e Hiroyuki, e meio constrangido ele decide meter o pé dali com uma bolsa com pedras. O túmulo já tá todo chapiscado porque, nesse meio tempo, o mundo do mahjong já está sabendo da morte de Akagi, e seu túmulo basicamente virou uma Mecca pros jogadores, onde eles iam pra compartilhar seus grandes feitos e deixar oferendas, até que um dia alguém decidiu tirar uma lasquinha do túmulo pra guardar no bolso, e desde então mais pessoas foram fazendo isso, e criou-se uma lenda de que quem tiver uma pedra do túmulo do Akagi no bolso terá sorte no jogo.

O túmulo já tá cheio de peças de jogos, fichas de poker, bolinhas de pachinko, isqueiros e até alguns energéticos e caixas de remédios, tudo como oferenda.

Nada mais apropriado pro túmulo do rei das apostas do que um monte de tranqueira relacionada a isso

Aqui a gente mais uma vez é lembrado que Akagi, até depois de sua morte, continua sendo um símbolo, um ícone, um mito… e talvez, agora seja até mais do que era em vida, já que sua existência física não existe mais. Quando se fala em mangá de mahjong, a figura do Akagi é provavelmente a primeira coisa que vem na cabeça da imensa maioria das pessoas. À essa altura, em 2002, o Washizu Mahjong já tava rolando fazia um tempo no mangá “Akagi”, não só os personagens como também os leitores já estavam familiarizados com a lenda desse personagem. Mesmo hoje em dia, quem nunca leu “Akagi” a fundo sabe do status lendário desse personagem, e da série. E agora, após sua morte, in-universe, ele realmente virou uma força sobrenatural, ao menos a nível de crença, já que é como se tivesse um pouco de Akagi em cada um de nós que o vimos ou que jogamos o mesmo jogo que ele. Um pouco do sadismo, dessa busca por adrenalina e tensão, o flerte com o fracasso, a ambivalência entre a vida e a morte e outras ocorrências de coisas aparentemente contrastantes que se completam.

É quase como se, ao morrer, aquela visão que ele teve de estar se dissipando junto com o vento e se espalhar por aí tivesse soprado até as pessoas, e agora tem moléculas de Akagi Shigeru espalhadas em cada apostador por aí, que algum dia pode almejar ser como ele ou não, já que esse sujeito é a essência da aposta em seu estado mais bruto. Mahjong é aposta, e Akagi é aposta.

Numa cena final apropriadíssima, Hiroyuki e Ten vão embora do cemitério após prestarem seu respeito ao velho conhecido e, no caminho de volta, começam a um zoar o outro que pegaram uma lasquinha do túmulo do Akagi escondido pra guardar no bolso, e no fim, os dois acabam admitindo que pegaram sim as pedrinhas e riem pensando em como são tão tolos quanto os outros caras que lascaram o túmulo como se isso fosse dar alguma sorte pra eles. A gente sabe que na prática não muda nada, mas é aquele eterno sentimento de “vai que…”. Se o ser humano não tivesse isso, as loterias já tinham parado de funcionar há muito tempo, mesmo sabendo que a chance é baixa, a gente ainda insiste em fazer uma “fézinha”.

Saindo com as pedrinhas no bolso

Lembro-me de uma anedota engraçada que vivi há alguns anos atrás quando trabalhava num escritório próximo a um shopping onde tinha uma daquelas máquinas de pegar brindes, e eram uns brindes bem caros, tipo celulares e videogames, e, na saída do expediente, olhei e pensei “ihhh, vou pegar um PS4 aí, hein! Acho que consigo!” e fui tentar. Tentei umas três vezes, e sempre naquela sensação de “quaaase, na próxima talvez eu consiga!”, precisei me forçar a parar e ir embora pra casa logo porque já tinha perdido uns 30 reais nessa brincadeira e estava me coçando a continuar tentando. Foi naquele momento que aprendi de forma bem prática o perigo das apostas e dos jogos de azar. Agora atualmente muita gente tem esse perigo bem próximo em seus bolsos com o tal do “Jogo do Tigrinho” funcionando em quase todo celular e perdendo uma grana preta nisso devendo até as cuecas porque acharam que as vitórias iam continuar rolando. Talvez o Akagi tenha sorte de ganhar no tigrinho, vai saber, mas não me parece um jogo que ele acharia muito estimulante, por si só.

Tá, sejamos justos, pois jogos como xadrez, Poker, damas, Go, Koi-koi, Shogi, Buraco, e até Mahjong são bem mais justos, ainda que este último tenha um componente de sorte envolvido bem mais alto do que os anteriores (tirando talvez só o poker e Buraco), mas jogos são isso aí… sentir o prazer da tensão e do desafio, o risco faz parte do processo. É a natureza das apostas, a gente fica desafiando a nossa sorte, quando ela também existe numa ambivalência com o azar. “Sorte” é um conceito muito maluco quando paramos pra pensar, especialmente pra pessoas que não são muito de fé como eu, porque mesmo os mais incrédulos conseguem acreditar nisso às vezes, tipo aquela galera que inventa que tem uma “cueca da sorte” na sua gaveta e decide isso sabe-se lá como. A cueca realmente mudou alguma coisa mesmo, ou é só a vida sendo completamente imprevisível? Jogos que envolvem sorte mexem com a nossa química cerebral, e a gente até gosta de conversar sobre isso uns com os outros.

Jogos têm esse poder de conectar pessoas, até mesmo se elas nem falarem a mesma língua, porque através do jogo existe essa comunicação de sensações e sentimentos. Elas falam a língua do jogo. Você já deve ter visto alguns coroas na rua ou numa mesa de bar jogando dominó ou buraco sendo que provavelmente eles mal se conhecem. O Akagi aproximou uma galera através do mahjong, que por sua vez uniu todos aqueles 8 homens da vigília noturna pro funeral dele, que só estavam ali por causa de terem se conhecido graças ao mahjong. Já vi histórias de pessoas que se conheceram assim também, eu mesmo conheci uma galera depois que passei a jogar e vi uma comunidade interessante de gente engajada com o jogo, trocando dicas, estratégias, ou só compartilhando feitos como alguma mão boladona que fez em alguma partida. Tenho achado divertido ensinar mais gente a jogar e falar sobre, porque algumas pessoas me procuraram curiosas pra saber como o jogo funciona. É um jogo que instiga curiosidade no pessoal daqui, e quando descobrem que algum outro ocidental aprendeu como essa bagunça funciona, é inevitável pensar “pera, se ele aprendeu acho que eu posso aprender também”… o que é engraçado vindo de mim porque sempre fui historicamente péssimo em jogos que envolvem cartas. Nem “Uno” eu nunca soube jogar direito, pra vocês terem ideia (e nunca parei pra ir muito a fundo também). Aquela brincadeira de “O [insira aqui nome da coisa] é amigos que fizemos no caminho” faz parte do mahjong também!

Aquele jogo contra o Washizu foi um momento de conexão humana que o Akagi nunca tinha sentido até aquele momento. Sim, ele havia sido “contratado” pra sugar a grana do maluco, mas no fim ele não tava nem aí pra isso, ele só queria o desafio de enfrentar alguém à altura. Discutivelmente, aparenta nunca mais ter tido algo no mesmo nível depois, mas conforme foi envelhecendo e jogou naquele torneio, se permitiu conectar com outras pessoas através do jogo, e aqueles 8 caras reunidos à sua volta nos seus segundos finais de vida são a prova cabal de que ele conseguiu as conexões humanas que queria, em algum nível, apesar de estar ciente da sua própria solitude e até apreciar isso. Mesmo os que apreciam a solitude, no fim, precisam de contato humano, e existem poucos meios de confraternização mais eficientes do que jogos, hobbies ou passatempos em comum.

a página final de “Ten”

Eu só sei que, no fim de tudo, eu queria saber viver como o Akagi viveu. Pensa num cara que viveu uma vida bem vivida.

Espero algum dia estar no caminho certo pro meu próprio “Tenhou”.

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Nintakun
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Written by Nintakun

Aspirante a piadista de meia-tigela e nas horas vagas entusiasta de videogame, quadrinhos, e iguarias nipônicas num geral (principalmente mangá/anime/tokusatsu)

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