Trabalho em dupla com Kazuo Koike e Ryoichi Ikegami: “Kizuoibito” (“Wounded Man”), a saga da Fera Ferida

Nintakun
26 min readDec 29, 2021

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Vocês conhecem o “teste de associação de palavras” do Carl Jung, onde você fala a primeira palavra que te vem à mente quando lhe dizem outra? Tipo, quando o terapeuta diz “elefante” e você diz “grande”, ou ele diz “fruta” e você responde “maçã”, por exemplo.

Se eu passasse por um teste desses e o terapeuta, por algum motivo, resolvesse me falar “Kazuo Koike”, existe uma probabilidade relativamente grande de a resposta na ponta da minha língua ser “insônia”.

Sempre tive problemas pra dormir (que pioraram horrivelmente de uns 2 anos pra cá, mas isso não vem ao caso). Conforme fui envelhecendo, fui ficando acordado até cada vez mais tarde e indo capotar na cama cada vez mais tarde. Quando era adolescente, costumava deixar a TV ligada pra produzir ruído de fundo para dormir, mas em algumas dessas ocasiões, acabava vendo algum filme que estivesse passando na TV naquele momento e, de vez em quando, eram filmes de ação.

Tem certos filmes de ação que emanam um aroma muito específico de breguice neles, com uma história bem rala e simples, um herói principal com voz forte e cara de sério ou mau, e algumas cenas hiperdramáticas aqui e ali intercaladas entre os tiros e explosões e ocasionalmente com trilhas sonoras que lembram as do Harry Gregson-Williams em Metal Gear Solid 2. Por pura associação, com esse hábito meu, passei a chamar esses filmes de “filme de ação a la ‘Domingo Maior’” (ou às vezes “Supercine” ou “Corujão”).

Sabem o “Escape from New York” (1981), do John Carpenter? É um perfeito exemplar de “filme de ‘Domingo Maior’”, pra mim. Não importa com quanto sono eu esteja, sempre fico entretido pra querer ver no que aquilo vai dar.

O “Lobo Solitário” de Kazuo Koike e Goseki Kojima.

Além de ver filmes tarde da noite até dormir, uma coisa que eu já fazia quando adolescente, era ler clássicos dos mangás e, em algum momento dos meus 17 anos, li o aclamadíssimo “Kozure Ookami”, mais conhecido como “Lobo Solitário” aqui no Brasil. Imagino que o épico roteirizado por Kazuo Koike e desenhado pelo Goseki Kojima dispense apresentações para os mais familiarizados com a mídia. É um mangá que costuma ser elogiadíssimo por pessoas de fora da bolha, e por bons motivos: Koike e Kojima compuseram juntos uma obra que trabalha muito bem seus personagens principais e suas características, para que o inevitável confronto final entre eles seja catártico. Acho “tudo isso que dizem” sim e mais um pouco, merece a medalha de “clássico” que recebeu ao longo dessas décadas. Vou guardar pra sempre comigo como uma das leituras mais impactantes que tive nesse meio.

Naturalmente, isso me levaria a querer conhecer mais títulos relacionados, em especial outras coisas escritas pelo Kazuo Koike, e olhando pelos títulos que estavam ao meu alcance na época, acabei chegando em… Crying Freeman.

Crying Freeman foi uma experiência meio frustrante pro eu daquela época. No começo eu estava muito interessado e, não dá pra negar, o mangá começa forte, mas com o passar dos arcos, ele vai ficando cada vez mais maluco e insano de formas que eu nem ao menos consigo botar em palavras que façam justiça aqui. Onde estava o Koike com uma história séria e realista que tinha me conquistado no Lobo Solitário? Os desenhos do Ryoichi Ikegami não eram um problema pra mim, mas ele não era nenhum Kojima pra trabalhar daquele jeito com o Koike que tanto tinha me agradado. Esse mangá tinha uma cara COMPLETAMENTE diferente, do que eu esperava, mas ele me lembrou os tais “filmes de ‘Domingo Maior’”. Mesmo com todos os seus absurdos, ele se encaixava quase perfeitamente nos critérios pra ganhar esse rótulo e atmosfera dele era perfeita pra isso.

Crying Freeman

Vocês devem estar imaginando que eu detestei Crying Freeman naquela época e, se sim, pois acertaram, mas eu estava SUPER entretido com aquilo, de alguma forma, igual ficava com alguns desses filmes que via tarde da noite. Foi um choque pra mim ver que uma história que tinha sido uma “obra-prima” teve o mesmo roteirista que esse “lixo”, mas com o passar do tempo, fui conhecendo mais do histórico do Koike e me familiarizando mais com o seu trabalho, extremamente diversificado em vários âmbitos, e o entendendo melhor. Posso não ter tido a melhor das impressões com o mangá na época, mas não dá pra dizer que eu estava entediado enquanto o lia. Apesar de tudo, o homem conseguiu me deixar bem entretido com o que estava lendo. Me deixou uma impressão forte e marcante o bastante pra lembrar disso anos mais tarde com alguma reação diferente de “blasé”, e eu sou um cara que respeita isso.

Em abril de 2019, saiu a notícia do falecimento do Kazuo Koike. Eu já tava um pouco abalado porque o Monkey Punch, do Lupin III (personagem do qual também sou grande fã), havia morrido há pouquíssimos dias, e me lembro de ter lido um tweet do Koike lamentando a morte do velho colega e numa coincidência bizarríssima do destino, ele também capotou no dia seguinte, aos 82 anos de idade.

Quando um artista que eu conheço assim se vai, costumo ter uma breve retrospectiva da minha experiência pessoal com sua obra, e isso me fez parar pra refletir um pouco sobre quem foi Kazuo Koike, enquanto eu estava interagindo numa thread no /a/ do 4chan dedicada a ele nesse dia, e só aí me caiu a ficha de que Koike era um cara de muitas faces. Nem todo o corpo de seu trabalho pode ser pra todos os gostos, mas não dá pra dizer que ele não foi um explorador ou que tentou se divertir com o seu trabalho.

Nos dias que se sucederam, senti vontade de revisitar esse Koike “Domingo Maior” de novo, e li “Offered”, um mangá bem curtinho que ele desenhou também com o Ryoichi Ikegami. Não é lá nenhuma obra-prima, muito longe disso na verdade, mas me provocou sensações bem similares à minha experiência com Crying Freeman, mas eu aceitei melhor que aquilo ali era Kazuo Koike também. Era uma espécie de Koike sem coleira, que perguntou pro seu amigo desenhista se tava afim de sair pra zoar e se divertir de novo, e nisso, acabaram gerando esse mangá.

Vocês sabiam que o Kazuo Koike escreveu um mangá sobre a história do Son Wukong da “Jornada para o Oeste”? Esse foi desenhado pelo mesmo Goseki Kojima do Lobo Solitário!

Alguns de nós temos precisamos manter a seriedade no dia-a-dia por inúmeros motivos, que podem variar de pessoa pra pessoa, mas não é raro termos momentos de descontração também, onde a gente fala uns absurdos, conta umas histórias meio loucas e não se preocupa muito com sentido, mas sim com elas serem experiências memoráveis e entreter aqueles ao nosso redor. Alguém como o Kazuo Koike provavelmente tem momentos desses, ele não é “o cara do Lobo Solitário” o tempo todo, ele não precisa ser exclusivamente isso.

Ao longo de sua carreira, Koike trabalhou com inúmeros artistas, muitos deles bem famosos no ramo, sendo o roteirista de vários trabalhos ao lado desses. Engraçadamente, esses desenhistas todos possuem estilos de arte muito diferentes uns dos outros, o que ajudava a explorar distintas faces de seu trabalho. Seu trabalho ao lado de Goseki Kojima é sem dúvida nenhuma o mais reconhecido por aí, especialmente no Ocidente, onde o Lobo foi um dos primeiros contatos de muita gente com o universo dos quadrinhos japoneses.

Entre o seu rol de colaboradores, tivemos Shotaro Ishinomori (com quem escreveu um mangá do Tarao Bannai, um detetive de uma série de filmes muito popular dos anos 40 aos anos 60), Go Nagai (com quem produziu “Hanappe Bazooka”, uma comédia erótica absurda) e Noriyoshi Inoue (com quem fez o mangá de policial “Mad Bull 34”), mas de todos esses, o mais notável é o Ryoichi Ikegami, com quem Koike produziu o já citado Crying Freeman, entre outros trabalhos, como o que motivou a existência desse texto, e sinto que Ikegami é o cara que conseguiu extrair mais pureza dos roteiros do Koike, depois do Kojima.

Ryoichi Ikegami, o idealista da beleza

Ryoichi Ikegami (à esquerda) numa conversa com Naoki Urasawa (à direita) no “Urasawa Naoki no Manben” dedicado a ele. Guardem essa frase, vai ser importante lá na frente.

Dependendo do quão fundo você esteja no conhecimento de mangás, provavelmente já conhece esse cara ou, no mínimo, já se esbarrou com algum desenho dele antes. Ryoichi Ikegami é discutivelmente um dos desenhistas mais conhecidos desse mercado há pelo menos 4 décadas e seu estilo artístico é muito facilmente reconhecível.

Seus desenhos costumam apresentar personagens desenhados de forma bem fotorrealista, cheios de detalhes, frequentemente vestidos de maneiras elegantes ou com boa aparência que realmente salta aos olhos do leitor, sendo fitados de volta com olhares penetrantes destes personagens. Mas ele sabe desenhar gente “feia” de vez em quando também caso necessário, apesar de não tão ser tão bom nisso quanto ele é em desenhar gente bonita.

Página de “Strain”. Roteiros de Buronson/Sho Funimura nesse, publicado entre 1996 e 1998.

A palavra-chave aqui é “beleza humana”. Ikegami é um perfeccionista e frequentemente procura desenhar seus personagens da maneira mais “perfeita” que pode encontrar. Particularmente, não é lá um dos meus artistas de mangá favoritos, mas sei reconhecer que o cara é excepcional no que faz, e ele é TÃO excepcional no seu realismo que isso me leva ao seguinte ponto…

Eu tenho uma relação bem engraçada com a “perfeição” da arte do Ikegami, e eu percebi isso lendo justamente os títulos que ele desenhou pro Kazuo Koike, ou até coisas tipo “Mai: A Garota Sensitiva”.

O realismo dele é tão perfeito que, por vezes, adiciona camadas de melodrama ou até intensifica horrores algumas cenas que poderiam ser bem “mundanas”, podendo dar um certo tom de exagero, e alimentar esse realismo com uma pitadinha de… surrealismo. É quase uma sensação de “vale da estranheza” pra mim.

Página de “Mai, a Garota Sensitiva”, publicado aqui no Brasil no começo dos anos 90 e, curiosamente sendo um dos primeiros mangás a ser lançado por aqui. O roteiro é do Kazuya Kudou nesse.

Eu não sei se sei explicar bem, mas tem algo nas poses dos personagens, nas formas como eles ficam postos nos quadros quando estão de corpo inteiro, ou nas poses ou, mais ainda, nos olhares altamente penetrantes deles em direção ao leitor, tudo isso desenhado de um jeito super realista, quase como se alguém tivesse tirado uma foto ou se, sei lá, eu tivesse olhando um desenho do Alex Ross só que em preto-e-branco e com menos detalhes. É TÃO realista que às vezes é engraçado.

É curioso, porque sempre tive a impressão de que arte muito realista pode cair muito fácil no buraco de acabar sendo algo “genérico” e sem personalidade, mas isso engraçadamente não acontece com o Ikegami. Tá que os personagens frequentemente tem feições faciais muito parecidas e que, se botar alguns protagonistas dele lado a lado todos usando ternos eu não vou saber diferenciar quem é quem, mas justamente essas coisas que eu citei no parágrafo anterior trazem esse charme bem único dele.

Só queria casualmente lembrar vocês de que o Ikegami no começo da carreira dele ali pelos anos 60 fez um mangá do Homem-Aranha. Esse aqui é interessante e traz uma reimaginação bem diferente do personagem que estamos acostumados no ocidente. E boa parte disso foi roteirizado pelo próprio Ikegami.

Assim, não me entendam errado, eu DEFINITIVAMENTE não acho o Ikegami um artista ruim, muitíssimo pelo contrário, o cara é ótimo no que faz, mas desde adolescente tenho essa sensação vendo alguns desenhos dele, especialmente tirados de contexto, mas aí talvez seja “probleminha” da minha cabeça mesmo. Porém essa sensação engraçada vai me levar num outro ponto que é o que vou abordar agora…

Vou ser sincero aqui: eu não lembro quase NADA da história de Offered, que o Ikegami desenhou pro Kazuo Koike, que escreveu o roteiro. Lembro só que o protagonista era uma reencarnação de Gilgamesh e ele enfrentava uns neonazistas que queriam dominar o mundo, ou alguma coisa assim, e olhe lá.

Apesar disso, tem uma cena bem específica que ficou marcada a ferro e fogo na minha memória e falarei dela do jeito que me lembro:

tem um casal que eram amigos do protagonista e da namoradinha dele, eu não lembro o que eles faziam, mas eles eram bom de tiro e de briga, então vou supor que eram soldados ou assassinos profissionais, e eles tavam dentro de um prédio que tava sendo invadido por um monte de tropas metendo bala em tudo. Dois contra centenas. Parece uma batalha impossível de vencer, mas eles vão tentar.

E eles conseguem causar MUITO estrago contra a horda de soldados inimigos, mas chega um momento onde eles estão sentados numa escada e começam a conversar e rir sobre aquela situação absurda que estavam passando, reconhecendo o feito incrível que estavam conseguindo, e como essa batalha não parece ter fim não importa o quanto continuem atirando, explodindo e tudo mais.

E então eles começam a se pegar na escada, vão tirando as roupas, e o cara, que é bem grandão, pega a mulher no colo e eles começam a transar enquanto ele sobe as escadas carregando sua amada. Eles chegam no terraço do prédio e há vários helicópteros cercando o lugar, que atiram nas costas do cara grandão, que pergunta se sua mulher está pronta, e ela responde “ISSO, VAMOS VOAR!” e eles decidem partir desse mundo em grande estilo, saltando do topo do prédio se beijando nus enquanto pequenas fagulhas de sangue das costas do cara vão acompanhando, ao passo que eles caem abraçados se beijando com o pôr do sol ao fundo.

Eu não vou usar todas as páginas dessa sequência aqui, mas selecionei as últimas três, que pra mim são as mais impactantes. (leiam em sentido ocidental, isso foi tirado da edição norte-americana, que espelhou o mangá)

Cara, olha pra isso! O ângulo, as poses, a anatomia “perfeita”, o pôr do sol ao fundo… isso é CINEMATOGRÁFICO pra cacete. Eu acho que o Ikegami fez diversos desenhos belíssimos na carreira dele, mas acho que essas páginas (mais precisamente a primeira e a última dessas três) devem ser algumas das que eu mais gosto em tudo que li que foi desenhado por ele até aqui. Ele frequentemente faz quadros simples que são apenas o rosto de algum personagem, mas também sabe construir cenas de espetáculo visual como essas muito bem. Eu acho algumas cenas de ação dele meio engraçadas justamente por conta dessa justaposição entre realismo anatomicamente perfeito e as situações absurdas presentes em alguns desses mangás.

Eu nem consigo falar que isso é um “problema” que eu tenho com o Ikegami, mas sempre senti isso desde adolescente, quando tive meus primeiros contatos com a arte dele, e é uma sensação engraçada. É cômico, mas ao mesmo tempo tão sincero e charmoso que não consigo odiar isso nem se eu me forçasse a tal.

Particularmente tendo a preferir estilos artísticos mais “estilizados” que não se prendem ao fotorrealismo, apesar de apreciar alguns títulos com arte bem realista desse jeito. Muitos artistas almejam pela beleza dessa perfeição, e sinto que talvez seja por isso que é tão fácil fazer arte realista parecer genérica, mas felizmente não é o caso do Ikegami. Eu consigo reconhecer um personagem desenhado por ele muito facilmente, apesar do estilo realista. Almejar a anatomia perfeita enquanto mantém uma identidade visual bem única é para poucos!

Mas acho que aqui o meu ponto é: eu gosto dessa justaposição entre arte super realista e situações absurdas do roteiro. Eu me caguei de rir lendo “Prison School” e muito disso era altamente amplificado justamente por essa justaposição, por exemplo. A arte hiperrealista alimentava o absurdo cômico da história de um jeito que fazia aquilo ser bem crível, e eu conseguia me deixar levar por aquela suspensão de descrença.

Mas “Prison School” é um mangá de comédia, e o Ikegami não desenha comédias, muito pelo contrário. A maioria das histórias desenhadas por ele são bem sérias (absurdos à parte), sempre se levam a sério e frequentemente falam sobre pessoas com moralidade cinza enfrentando situações das mais diversas. Um roteirista que consegue trabalhar em perfeita harmonia com ele é o Buronson (ou frequentemente chamado também pelo seu outro pseudônimo, Sho Funimura e mais conhecido por ser um dos criadores de “Hokuto no Ken”), com quem ele produziu coisas como “Heat”, “Lord” ou o aclamadíssimo “Sanctuary”, entre alguns outros. Em Sanctuary, por exemplo, essa justaposição de realismo com absurdo é drasticamente reduzida em comparação aos trabalhos que ele desenhou com Koike, apesar de ter alguns personagens de tamanho desproporcional à normalidade aqui e ali e algumas das poses “coladas” no cenário ainda estarem presentes na arte.

“Sanctuary”. Publicado entre 1990 e 1996 com roteiros de Buronson. Um dos trabalhos mais conhecidos de Ikegami

Mas se fosse pra escolher outro cara que consegue trabalhar bem com ele, esse é o Kazuo Koike, e eles parecem trabalhar em perfeita harmonia, pois arte e roteiro conseguem dialogar entre si quando eles estão juntos também.

É tanta essa harmonia que outrora quando ainda era vivo, Koike foi perguntando sobre quem foram os artistas com quem ele mais gostou de trabalhar, e ele prontamente respondeu “Goseki Kojima e Ryoichi Ikegami”. Convenhamos que se a gente conhece o trabalho desses caras e leu alguns desses, dá pra perceber de forma bem nítida e não é nenhuma surpresa.

É meio como se o estilo de desenho do Ikegami fosse perfeito pra ilustrar um quadrinho com cara de “filme de ação do ‘Domingo Maior’ que você veria no final do dia enquanto tenta esquecer que a segunda-feira se aproxima pra não ficar triste”, igual os roteiros do Koike que foram desenhados por ele, igual Crying Freeman, Offered e “Kizuoibito” (os que ele desenhou com o Buronson têm mais ainda essa cara, mas não chegam a ser tão permissivamente malucos quanto os do Koike)

Daqui a pouco vou falar um pouquinho em mais detalhes sobre a original, mas a Lady Snowblood do Ikegami que ele desenhou pro “Lady Snowblood Gaiden” (que tem arte dele) é tão bonita que merece ser apreciada.

Aliás, eu já mencionei que Crying Freeman inclusive teve uma adaptação cinematográfica ocidental em 1995 que se encaixa perfeitamente nessa descrição?

Ikegami é um cara perfeito para a arte e vibe do “Domingo Maior”.

A “Teoria do Personagem” de Kazuo Koike

O casal de protagonistas de “Crying Freeman”. Bonitos como bons personagens do Ikegami devem ser, marcantes como bons personagens do Koike devem ser.

Em algumas de suas aparições públicas, Koike já falou um pouco de seu processo criativo. Ele tem uma linha de pensamento que vou chamar aqui de “teoria do personagem” (e já escreveu alguns livros sobre isso).

Tal método consiste em mentalizar o seu personagem central, suas motivações e ideias, que a história em volta e a partir dele irá surgir naturalmente. Não sei quantos outros famosos roteiristas usam esse método, mas esse é o que Koike usa, e depois de ler alguns de seus trabalhos e vê-lo falando isso, as coisas começam a se encaixar.

Um comentário que vejo com certa frequência sobre Lobo Solitário entre pessoas que estão o experienciando pela primeira vez agora, por exemplo, é que a história demora muito pra “começar a andar” e, de fato, não está errado, mas não vejo isso como problema. Apesar de a premissa e o objetivo central da história já serem estabelecidos de cara logo no primeiro volume, uma grande porção do conteúdo dos primeiros 12 volumes é focada primariamente em histórias sobre “causos” de pessoas que cruzam o caminho de Itto Oogami e seu filho. Ver Oogami e Daigoro interagindo com os mais diversos tipos de indivíduos e situações nos diz bastante sobre quem eles são, como agem em determinadas situações, e isso vai construindo um vínculo entre esses personagens e o leitor, o que faz com que momentos lá na frente, onde a história enfim “anda” em progressão mais linear, fiquem mais impactantes.

Koike não inventou isso. Isso é meramente “construção e desenvolvimento de personagem”, um dos alicerces mais básicos usados para contar muitas das histórias existentes no entretenimento, mas é interessante reparar que ele parece ter uma preocupação maior em abordar seus personagens e explorá-los do que na história de fato. Os personagens irão mover essa história com seus atos. Inúmeras histórias ao longo dos tempos provavelmente foram criadas através de métodos similares.

Bela e fatal, a “Lady Snowblood” (“Shurayukihime” em japonês). Diretamente dos roteiros de Koike para os belos desenhos de Kazuo Kamimura.

Gosto de pensar no exemplo de “Lady Snowblood” (que saiu aqui no Brasil há uns 15 anos atrás como “Yuki: a Vingança da Neve” pela Conrad e recentemente foi republicado pela Panini), que Koike escreveu sendo acompanhado pela charmosíssima arte do Kazuo Kamimura, como um belo representante dessa técnica. Tudo gira em torno da protagonista e sua jornada para realizar a vingança que sua mãe tanto almejava, mas não conhecemos a motivação da personagem e sua história de origem no primeiro capítulo. Demora um pouquinho ainda para isso acontecer, porque antes somos apresentados a como ela trabalha e lida com algumas situações em seu caminho.

Existe uma progressão de história, pois a cada capítulo, a heroína chega mais perto de completar o seu objetivo de exterminar todos os malfeitores que causaram a morte de sua mãe, e consequentemente o seu nascimento “amaldiçoado”, mas na boa? Essa progressão não importa tanto assim, ao meu ver, por mais que ela exista e o objetivo final seja alcançado em algum momento.

Existem momentos grandiosos, como o capítulo onde ela encontra um escritor que vê nela uma figura super icônica, a ponto de isso o influenciar a escrever a sua mais nova peça literária. Esse é o meu trecho favorito dessa história toda, e consigo ver no personagem do escritor uma representação do próprio Kazuo Koike, de certa forma. A personagem e vê-la em ação foi o bastante pra acender a fagulha da inspiração de criar a história toda em volta disso. Não sei se foi proposital, mas é uma rima metalinguística bem interessante quando se sabe do processo criativo dos criadores da obra.

Yo Hinomura, o protagonista de “Crying Freeman”

Para todos os efeitos, é engraçado pensar que às vezes vários dos personagens de Koike, sobretudo os protagonistas, são maiores do que as próprias histórias onde eles estão. Não vou lembrar detalhes de Crying Freeman, por exemplo, mas a figura do Yo Hinomura segurando uma adaga em sua boca enquanto lágrimas escorrem pelo seu rosto e ele exibe seu corpo altamente atlético e tatuado é uma imagem bem icônica pra mim e é facilmente uma das primeiras coisas que me vem à mente quando lembro desse mangá.

Às vezes acho que o absurdo de algumas dessas histórias precisam ser do jeito que são para acompanhar tais personagens e fazer jus a eles. Essas figuras extraordinárias merecem mais do que uma trajetória mundana.

E com essas colocações, eu finalmente chego no ponto que era o assunto que motivou esse texto…

E com vocês… O Homem Ferido!

Capa do primeiro volume da publicação original de “Kizuoibito”. Esses dois são nossos dois personagens principais iniciais.

Kizuoibito” é um mangá que foi publicado entre 1982 a 1986, na revista adulta Big Comic Spirits da Shogakukan, originalmente em 11 volumes encadernados (que numa tímida publicação norte-americana foram 9, pela editora ComicsOne no começo dos anos 2000).

Foi o segundo (de um total de seis) mangá que nasceu dessa parceria entre Kazuo Koike e Ryoichi Ikegami e a série é mais conhecida no ocidente pelo seu título em inglês: “Wounded Man”.

Numa coincidência absolutamente engraçadíssima, a música “Fera Ferida”, do Roberto Carlos, TAMBÉM saiu em 1982, e mais comicamente ainda, tem uma quantidade considerável de semelhanças temáticas com esse mangá.

Sobre o que é essa história que, pra bem ou pra mal, me deixou fascinado o bastante para esse mangá continuar morando de aluguel na minha cabeça semanas depois da leitura e querer escrever um texto gigantesco falando disso?

Tudo começa conosco sendo apresentados a uma equipe de jornalistas de um canal de TV no Japão que decidem fazer uma expedição para o Brasil, mais especificamente ali pelo interior do estado do Pará, com o objetivo de fazer uma reportagem sobre os garimpeiros que atuavam na região procurando ouro. O garimpo aparentemente está dando tão certo que várias pessoas estão conseguindo fortunas nessa corrida pelo ouro perto da Amazônia e, há rumores de que entre esses garimpeiros, existe um japonês conhecido como “Rio Baraki”.

Isso aqui é a cidade de Belém no mangá. Algumas paisagens e locais da região aparecem também.

A belíssima apresentadora do jornal, Yuko Kusaka, acompanhada de sua equipe, chega no Pará e rapidamente conhece o tal japonês misterioso que anda garimpando por aqui. É um homem musculoso de cabelos brancos e que não é de falar muito e esconde um passado misterioso. COISAS acontecem, e Yuko fica fascinada por essa figura misteriosa e tão emblemática, e decide sumir com ele pro meio da Amazônia nessa aventura e ver qualé a do cara e entender do que ele tá atrás.

Logo mais somos apresentados ao passado dele, e é aqui que o negócio fica louco, meus amigos!

“Rio Baraki” era só um apelido. O cara se chama Keisuke Ibaraki e a história de como ele veio parar no Brasil é tão louca que merece aquelas cenas de começo de filme onde tem um personagem numa situação absurda, a tela congela e ele fala “é, esse aí sou eu, vocês querem saber como vim parar nessa situação? Então hora de rebobinar pra vocês verem.”

Keisuke era um jovem japonês universitário de intercâmbio que fazia muito sucesso num time de futebol americano em uma universidade dos EUA por conta de sua exímia performance, e lá vivia com sua namorada, uma garota chamada Natsuko. Eles retornam ao Japão, e depois de uma celebração entre amigos, Natsuko é sequestrada e Keisuke, desesperado, se vê encurralado a aceitar as condições dos sequestradores e acompanhá-los.

O passado do nosso herói, junto com sua antiga namorada, Natsuko.

Logo então descobrimos junto dele que os sequestradores não queriam Natsuko, mas sim o Keisuke, e apenas a usaram como isca para pegá-lo. Por trás do sequestro mirabolante está uma organização conhecida como GPX, que é abreviação de “God’s Pornographic X-Rated Film” (em bom português, “Filmes adultos pornográficos de Deus”), uma corporação que, como o nome sugere, produz filmes pornográficos de qualidade excepcional que valem uma fortuna no mercado negro, financiado pela elite da sociedade por todo o mundo, que estão dispostos a pagar fortunas por esses filmes, que frequentemente possuem pessoas públicas conhecidas neles e só podem ser assistidos em sessões de exibição altamente controladas sob sigilo total. E eles querem que Keisuke passe a fazer parte desses filmes.

Keisuke prontamente rejeita a proposta por se recusar a engajar coito com uma mulher que não ama, porém Natsuko é ameaçada e ele é preso com ela numa masmorra sem comida ou água por dias, pois os vilões querem testar até onde vai o poder desse amor que ele tanto preza e o quanto vale a pena se agarrar a isso mesmo que custe suas vidas..

COISAS horríveis acontecem e Natsuko acaba morrendo de maneira bem trágica nessa situação e, por um milagre, Keisuke consegue escapar com literalmente nada além de sua vida, já que nem com roupas estava na masmorra. Durante sua fuga, um dos empregados da GPX decide ajudá-lo e diz que o único lugar do mundo onde a corporação pornô do mal não tem poder é no Brasil, então nosso herói foge pra lá com um forte desejo de se reerguer com todos os recursos e poder que puder conseguir e agora está garimpando ouro no Pará para ter dinheiro o bastante para avançar com o seu plano de se vingar da GPX por tudo que foi tirado dele, e está disposto a fazer literalmente qualquer coisa que seja para vingar o amor da sua vida.

Definitivamente NUNCA irrite esse cara. O homem tá com sangue nos olhos e pronto pra ir atrás de quem tirou tudo que ele tinha e acabou com os seus sonhos e felicidade.

Eu juro que não inventei nada disso que tá escrito nesses últimos parágrafos. Essa é a premissa louca dessa história e essa loucurada toda é só um mero resumo dos três primeiros volumes. Mas acreditem em mim, consegue ficar mais louco que isso pelos 8 volumes que restam e o mangá fica em constante escalada nessa insanidade até afrouxar um pouco as rédeas no finalzinho.

“Sobre o que é esse mangá?” é uma pergunta tola. A pergunta correta é “Sobre o que NÃO é esse mangá?”, afinal todo tipo de maluquice acontece aqui. Eu achava que a reta final de Crying Freeman era uma loucura, mas isso aqui veio alguns anos antes e faz Freeman parecer brincadeira de criança em comparação.

Cicatrizes

E começa aqui uma história de amor (e eu NÃO vou explicar o contexto dessa cena, descrição nenhuma que eu der é capaz de fazer justiça ao que acontece aqui.)

Não vou mentir pra vocês, esse mangá tem MUITAS coisas que podem ser vistas como problema, pelos mais variados motivos. Ao mesmo tempo, “Wounded Man” é uma montanha-russa de emoções como eu não experienciava há muito tempo. Ele é cru, romanticamente brega, às vezes repulsivo e nojento, melancólico, emocionado, cheio de coração e “trash” até depois de dizer “chega!”. Definitivamente não é uma leitura para todo mundo e ele constantemente desafia a sua tolerância perante o absurdo e o ridículo que algumas das histórias mais surreais da ficção podem te apresentar.

Até certo nível, ele me lembra alguns títulos mais recentes mais conhecidos como Fire Punch, do Tatsuki Fujimoto, mas com bem menos elegância e com a sutileza de um elefante INTENSAMENTE rolando na lama.

Ele parece entender o próprio absurdo e ridículo, afinal é uma história de vingança de um cara que foi perseguido por uma organização pornô tão secreta quanto os Illuminati simplesmente por ser gostoso demais e que está disposto a ir até as profundezas do inferno se necessário para conseguir a justiça que quer com as próprias mãos. Não tinha como uma história partindo dessa premissa ter uma progressão menos que “absurda”.

Apesar das tragédias, essa história também tem seus momentos bonitos de descontração.

Mas nem só de absurdos vive essa história. Existe um componente nela que eu acho ainda mais forte do que o absurdo, e isso é a emoção. Apesar de tudo, é um mangá cheio de coração, pois seu herói é um personagem 100% movido a coração e é aqui que o método de escrita do Kazuo Koike se encaixa de forma bem coerente.

Temos a história de um homem ferido por um trauma horrível, que virou um animal arisco e está sozinho nessa batalha que pode custar sua própria vida. Um legítimo animal ferido, por instinto decidido e que desfez os rastros de seu passado numa tentativa infeliz de recomeçar, e que sabe que flores existiram mas não resistiram a vendavais constantes.

O encontro dele com Yuko, a jornalista, vai mudar um pouquinho o trajeto dessa jornada que ainda continua com o mesmo destino fixo. O convívio com a nova aliada de viagem acaba por ser uma nova oportunidade para ele reaprender a viver as flores da vida, ainda que esteja possivelmente com passagem só de ida para a tragédia e a decepção nessa jornada sangrenta. A cicatriz do trauma vai continuar existindo, mas ele precisa seguir adiante com a vida que lhe restou, pelo bem de sua antiga amada.

E no meio dessa aventura, além de uma tentativa provavelmente vã de tratar velhas feridas, haverão inimigos de todos os tipos que podem atacar a qualquer momento dessa aventura. Um dos mais memoráveis pra mim é a parte onde uns assassinos se aproveitam de um suposto esporte local similar a futebol americano, só usando com uma cabeça de jacaré ao invés de bola (!), e colocam uma bomba relógio dentro de uma cabeça dessas e Keisuke pratica o esporte com os habitantes locais, sendo que a bomba pode explodir a qualquer momento. Doideira, mas tem coisa MAIS pirada nessa historinha.

Keisuke não é nenhum santo, e ao longo dessa jornada haverão momentos onde ele fará atitudes de moral bem questionável e, às vezes repugnantes. Por exemplo, em seu primeiro encontro com Yuko ele a estupra numa tentativa de fazê-la se assustar e sair de seu encalço, pois é uma jornada perigosa. Com um tanto de malabarismo dá pra dizer que a intenção foi boa, mas o meio utilizado para chegar nela continua sendo péssimo e nojento(e até contraditório com o que o próprio Keisuke acreditava em seu passado).

Por mais que eu ache meio infeliz a forma como o mangá explora isso (em especial em duas ocasiões específicas), dá pra dizer que faz algum sentido para o personagem tematicamente, com os devidos panos quentes por cima. Numa jornada de vingança contra uma organização que com um peteleco pode te esmagar, o cara acabou tendo que abdicar de alguns de seus valores morais. Se tornar um demônio para lutar contra outros demônios em pé de igualdade, mas sei lá, cara… custava simplesmente assustar a moça de outro jeito? Precisava mesmo ser um estupro?

Se esse mangá tivesse sido feito umas duas décadas depois, provavelmente teria sido de outro jeito, porque o próprio Kazuo Koike em seus últimos anos de vida parecia reconhecer que alguns de seus trabalhos passados tinham coisas inapropriadas, e que se ele pudesse, gostaria de fazer uns ajustes. Complicado, pois esse é o tipo de coisa que torna esse mangá um tanto difícil de recomendar pras pessoas, e facilmente fazer alguém detestá-lo (e por motivos altamente compreensíveis).

(há também algumas representações meio racialmente estereotipadas de povos indígenas brasileiros, mas nesse caso acho que dá pra apontar mais ainda que é por motivos de “produto de seu tempo”. E em gravidade menor, outra reclamação minha desse mangá é que o terço final dele é a parte mais fraca e o final pode ser bem decepcionante dependendo da expectativa, mas acho que comparado às minhas outras ressalvas, isso é o de menos)

Entre tantas coisas, acho que dá até pra ler esse mangá como uma espécie de manifesto anti-pornografia, antecedendo em umas décadas o aumento da noção popular de que a indústria pornográfica num geral causa mal às pessoas. Afinal o nosso herói está, literalmente, lutando contra o topo da indústria pornô que arruinou a sua vida e controla a grande elite financeira do mundo por trás das cortinas. Como o Koike é um cara que sempre gostou de botar cenas de sexo (e violência) em seus trabalhos tal qual os “exploitation film” da época, não sei o quão intencional isso foi ou se essa realmente é a intenção. Mas sei lá, considerando o quanto que o Keisuke esbraveja que se recusa a “fazer amor” (essa exata expressão é usada várias vezes ao longo do mangá, inclusive) com uma mulher que não ama, quero acreditar que tem algo disso aí.

Keisuke Ibaraki é um protagonista de atitudes ocasionalmente questionáveis que segue a linha do “o fim justifica os meios” mas realmente não dá pra negar que o cara tem um coração determinado a alcançar seu objetivo.

Koike e Ikegami, entretenimento cru

Essa é uma jornada tortuosa, não é pra todo mundo, mas sinto que quem estiver disposto a encará-la, vai encontrar um pouco de tudo aqui. Tristeza, risos, repulsa, empolgação, excitação… o pacote completo. Para bem ou para mal, é aquele tipo de história que dificilmente alguém sai indiferente a ela.

No meu caso em particular, saí dela com um fascínio muito estranho. Se eu tentar explicar, acho que é porque gosto de ser desafiado e surpreendido, e Koike e Ikegami me fizeram isso até demais com essa série. No começo, estava dando risada do quão absurdo e trash era o negócio, porém muito entretido para ver qual seria a próxima coisa surreal e ver para onde isso iria, mas depois de que a história trágica do protagonista foi apresentada, fui fisgado emocionalmente, num ponto onde houveram momentos posteriores dessa história onde fiquei legitimamente triste, feliz ou aliviado por esses personagens. Não usei a expressão “montanha-russa de emoções” à toa.

Ou talvez eu meramente goste de histórias de vingança super bregas de personagens movidos a poder do amor ou algo assim. Se me conhecem, já sabem que eu adoro uma breguice de novela mexicana. Ele tem essa carinha de “filme de Domingo Maior” que costuma me atrair, ao mesmo tempo que ele tem muita energia de “exploitation film” (ou “B Movie” também) dos anos 70–80. Esse tipo de coisa dá um clique especial no meu cérebro que não sei se consigo explicar de forma convincente.

Estou evitando mostrar coisas que aparecem mais à frente pra não dar spoilers, mas acho que essa personagem merece uma menção rápida de que o Akira Yasuda, que trabalhou como ilustrador de Street Fighter II, usou essa personagem do mangá como inspiração para a Cammy.

Existe um bom motivo de eu ter dedicado basicamente metade desse texto para simplesmente falar sobre seus autores e a minha relação pessoal com o trabalho deles e coisas adjacentes, pois acho que isso foi um elemento crucial pra definir o que senti lendo esse troço. A escrita de personagem do Koike está toda aqui, com todas suas qualidades e defeitos, mais sem freio do que poucas vezes já esteve e isso me parece estranhamente apropriado pra uma história sobre um homem em busca de vingança, que pode ou não lhe trazer liberdade e paz. Mas o nosso herói é um cara bonitão, tão bonitão que foi justamente esse o motivo de seus algozes o perseguirem, então o seu desenhista não poderia ser ninguém menos que Ryoichi Ikegami, um dos caras mais aficionados por desenhar gente bonita que existe na indústria dos quadrinhos japoneses.

MUITA coisa desse mangá parece ser o Koike e o Ikegami simplesmente brincando um com o outro e testando seus próprios limites enquanto artistas, sem se importar com como isso vai ser recebido pelo público, como se fossem dois moleques fazendo um trabalho de escola juntos do jeito que acham que querem fazer. Exala uma aura corajosa, e isso é algo que valorizo muito em qualquer peça de ficção. É uma sintonia divertida entre roteirista e artista, ambos conhecidos por características bem particulares que abordei em seções anteriores. Me trouxe um pouco da sensação do Crying Freeman de volta, só que ainda mais cru e selvagem (e dessa vez eu estava 10 anos mais velho e experiente, já ciente dessa face mais “trash” do Koike e disposto a aceitá-la como é).

Apesar de eu estar destilando palavras sobre o quão fascinado fiquei com esse mangá, é importante dizer que ele passa muito longe de qualquer perfeição ou excelência. E eu não estava procurando isso nele, mas o que me pegou aqui foi o coração do negócio e o quão intenso ele é.

Eu poderia falar sobre outros trechos da história, mas como é um mangá que imagino que pouca gente por aqui leu, não quero estragar a experiência do descobrimento desses absurdos pra ninguém. É o “famoso ver pra crer”. Se esse texto todo servir pra ao menos registrar minha experiência pessoal com um negócio tão visceral e intenso e mostrar que tal gibizinho existe, acho que já tá de bom tamanho.

Pra todos os efeitos, UMA EXPERIÊNCIA, e costumo ficar bem entretido com esse tipo de experiência, mesmo quando acaba sendo ruim.

Acho que descobri um novo mangá que, de tempos em tempos, vai cutucar minha cabeça e minhas feridas pra me lembrar de que ele existe e me fazer pensar “esse dia foi louco, hein?”.

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Nintakun

Aspirante a piadista de meia-tigela e nas horas vagas entusiasta de videogame, quadrinhos, e iguarias nipônicas num geral (principalmente mangá/anime/tokusatsu)