Todos os dias não, para o resto da minha vida

Nonada
8 min readDec 1, 2016

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Por Rafael Gloria

Tornar o dia 1º de dezembro em Dia Mundial de Luta Contra a Aids foi uma decisão da Assembléia Mundial de Saúde, em outubro de 1987, com apoio da Organização das Nações Unidas — ONU. A data serve para reforçar a solidariedade, a tolerância, a compaixão e a compreensão com as pessoas que vivem com HIV/Aids. A escolha dessa data seguiu critérios próprios das Nações Unidas. No Brasil, a data passou a ser adotada, a partir de 1988, por uma portaria assinada pelo Ministério da Saúde. Em 2015, lançamos o primeiro Zine do Nonada, intitulado Travessias. Nele, há um perfil sobre uma mulher, a Nara (nome fictício), que demorou dez anos para aceitar a doença e a tomar os remédios necessários para manter sua vida. Eis aqui a sua história:

*A história é real, mas o nome é inventado. A perfilada preferiu manter-se anônima.

Nara está em frente ao espelho para o seu ritual diário. São quase onze horas da noite. Vai abrir a “vida” e tomar quatro dos seis diferentes tipos de comprimidos. Os outros dois ela toma pela manhã. Sua “vida” é uma caixinha de plástico transparente, na qual estão seus remédios. Nesse momento, ninguém puxa papo. Ele é só seu. E é esse minguado de um dia, esse punhado de minutos, que ela demorou mais de dez anos para alcançar.

Crédito do retrato: Paulo H. Lange

A primeira internação de Nara foi apenas um mês depois de ela descobrir. Ainda se lembra de sofrer uma febre de quase 42 graus, sem motivo aparente, e correr para o médico. Ele lhe pediu, então, para fazer vários exames, entre eles o de HIV. Isso foi em 1999, ainda era casada com o seu primeiro marido e mantinha uma lavanderia em uma cidade do interior. Estranhou, mas aceitou. Assim que os exames ficaram prontos, alguém do hospital ligou sábado de manhã cedo, pedindo para ela comparecer urgentemente ao consultório. Estranhando ainda mais, pensava que coisa boa não podia ser, pensava no câncer que levou boa parte da família da mãe e já podia sentir como se o dominasse o corpo. Lá, o médico dissipou essa ideia, mas as notícias não eram as melhores. O resultado do HIV saiu positivo. Confusa e calada, ela não quis conversar com o psicólogo que acompanhava a consulta e, não acreditando, saiu da sala. E continuou não acreditando mesmo depois de refazer o exame em diferentes laboratórios. Continuou não acreditando quando contou ao marido mais tarde e, em prantos, ele a agarrou, dizendo o que eu fiz contigo?

Anos antes, quando era mais jovem e costumava ir frequentemente a festas, era conhecida pelas amigas como a que primeiro abria a pista de dança e a última a deixá-la. Suas parceiras chegavam a dizer que não seria a última festa e que sempre existiram outras para dançar.

Foi uma pontada que a fez ficar internada no Hospital da Ulbra durante um período de 30 dias pela primeira vez. A dor era tanta que mal conseguia respirar. Foi lá também que conheceu a infectologista Marília Severo e começou, aos poucos, a acreditar que sim, ela possuía o HIV em seu organismo, circulando e dançando em seu sangue. A médica foi explicando conceitos como a importância da quantidade de Linfócitos TCD4 e da carga viral e também dos antirretrovirais, e que deveria começar a tomá-los imediatamente. Nara relutou, mas ensaiou os primeiros passos do tratamento.

O que eu fiz contigo?, o marido lhe dissera enquanto ela revelava o resultado do exame. E por mais que um não tenha tentado culpar o outro, era inevitável que como nada ela fez, ele fez — e a própria confissão velada estava lá nas palavras e na voz tremida e chorosa dele, enquanto a abraçava, procurando perdão. Somado a isso, a revolta e o sentimento de traição da parte do marido, devido a ele nunca querer fazer o exame, acabaram culminando na separação do casal.

A diarreia e o vômito, além do enjoo que esses remédios causam, ainda mais nos primeiros meses, ajudaram a abandonar, também, os compridos. Cada vez que colocava um deles na boca, Nara lembrava que tinha uma doença, uma doença que nunca imaginou ter, uma doença que ela não procurou. Logo ela que era tão vaidosa, agora ia ficar esquelética e perder o cabelo? Sua pele morena ia manchar, e os cabelos longos iriam cair em algum momento. Já poderia se ver com a falta de ar. Ou melhor, não. Não poderia ser assim, não era verdade. Tudo isso não poderia acontecer. Ela. Ela que sempre se cuidou. Ela que não bebia ou não usava nenhum tipo de drogas. Ela que dançava até o final da festa.

Largou os remédios de vez e encontrou em um livro chamado “Me curei da Aids” e em um grupo de pessoas que seguiam as orientações dessa obra em Porto Alegre, uma resposta. Tais mandamentos do grupo para vencer a doença podiam ser resumidos basicamente em levar uma vida regrada e saudável. E o mais interessante era o princípio de que os remédios não eram necessários. Nenhum dos integrantes o tomava. No começo parecia ótimo, e a sua vida dupla era mantida: embora ela tivesse largado os medicamentos, não tinha abandonado o tratamento oficialmente. Continuava sim indo no hospital para buscá-los, mantendo a ilusão para os médicos — e para si mesma.

Começou, então, a emagrecer. Até o longo cabelo pesava quando tomava banho, e por isso teve que cortar bem curto — o que a machucou tanto como aquela pontada que teve pela primeira vez. Precisava da ajuda dos outros em quase todo momento, e qualquer gripe a levava para o hospital. Teve que vender a lavanderia, porque não conseguia trabalhar e todo aquele material químico lhe fazia mal. Você sabe que não dá para te deixar em casa, Nara, assim, nessa situação dizia a médica. Qualquer coisa pode acontecer. E então, desiludida, saiu do grupo. Não se reconhecia mais no espelho. E acabou tendo a primeira de suas pontadas duplas.

Pouco antes, nos intervalos em que se sentia bem, Nara conheceu o seu segundo marido. Bem mais velho que ela, o Militar, como era conhecido, gostava de viver no campo e acabou comprando um sítio para dividirem a vida na parte rural de Porto Alegre. Ela gastou bastante tempo do seu tempo mobiliando a casa, ele até se aposentou para cuidá-la e incentivava para que tomasse as medicações. Nara, porém, sempre relutava e relutando acabou se afastando. A vida estava cada vez mais próxima do hospital e longe do campo.

Os dois pulmões com pneumonia a deixaram um pouco mais de 60 dias internada no hospital Santa Casa, respirando por aparelhos. Não podia mais ficar tão afastada da cidade. Começou a viver praticamente lá, junto com a irmã, que ficava grudada nela. Com o tempo, as pontadas só começaram a se tornar mais frequentes, juntamente com a febre.

Nara, então, lá no hospital mesmo, decidira que iria morrer.

Para isso, queria ficar sozinha e separou-se mais uma vez. Passou a dividir-se entre um JK alugado e o hospital. O Militar ainda tentou convencê-la, gostava dela, mas Nara não queria mais nada. Deixou com ele todos os móveis e as recordações do sítio. Para onde ela iria, de nada ia precisar.

Ela só não esperava que fosse demorar tanto. Pensava que a Aids poderia levá-la de vez, mas o que ocorria de fato era a ida e a vinda do hospital, os meses no leito, os meses em casa. O desgaste físico e emocional, assim como as suas funções corporais indo embora aos poucos. A sua irmã, a companhia inseparável e constante todos esses anos, tentava sempre convencê-la a tomar um comprimido. Um por vez, mana. Um passo por vez. Mas ela tinha nojo da doença e de tudo associado a ela. Agora evitava espelhos. Um passo de cada vez, mana. Sete anos mais nova e estudante de enfermagem, a irmã dizia isso todos os dias. Quase como um mantra. Passos, passos, como uma pista de dança.

Nesse meio tempo, descobriu que estava perdendo a visão. Durante um pequeno passeio matinal, ao atravessar a rua bem devagar, ela simplesmente não conseguiu notar o carro e quase foi atropelada. Era o citomegalovirus recém-descoberto. E, com ele, as complicações aumentavam ainda mais. Nas pessoas que vivem com Aids, esse tipo de vírus pode levar à cegueira, mas também pode comprometer órgãos como intestino, fígado e o sistema nervoso central. Em Nara, começava pelos olhos castanhos escuros.

A médica resolveu dar um ultimato: apesar de nutrir grande afeto por ela, não poderia mais tratá-la. Ela a enganara por muitos anos não tomando o remédio. Fora isso, o tratamento agora só poderia ser feito no SUS, em hospital público especializado que ficava localizado no bairro Partenon.

Precisaria realizar um procedimento intravenoso todos os dias. Ou seja: todos os dias uma seringa em sua veia — só assim para não ficar cega. Chamado Ganciclovir, o tratamento exigia demais do paciente. Mas todos os dias ir lá e ver aquelas pessoas com Aids? Continuava não se sentindo parte deles, por mais que a doença a tenha baixado suas defesas. Chegou no Hospital Sanatório Partenon com apenas três pontos de imunidade — para uma pessoa saudável, o valor varia de 800 a 1200 — e com uma carga viral de 25.000/ml. Estava anotado lá na carta que a médica Marília Severo mandou endereçada para a colega infectologista Nêmora Barcellos todo o histórico de desobediência e de fuga do tratamento de Nara. Tudo que ela tinha feito ao longo de todos esses anos em que evitava encarar, de fato, a doença.

Foi, então, que alguma coisa começou a acontecer com Nara. Ela finalmente sentiu. Ela finalmente começou a sentir. Ela finalmente parou de se ver de fora da situação, de repente ela estava dentro. Cansada de simplesmente esperar morrer, decidiu que desistiria de desistir. Era como se só agora realmente escutasse a voz da irmã sussurrando em seu ouvido um passo de cada vez. Só assim ela poderia voltar às pistas das festas, onde, quem sabe, as amigas a esperavam.

Decidiu e se encontrou, e se encontrando, encontrou a própria voz.

Nara, é hora de tirar a Aids para dançar. Você quer continuar a dançar, vai ter que aprender a dançar com o seu HIV também. E, para isso, você deve começar a entender que é necessário tomar os remédios. Vamos lá, Nara. Devagarzinho. Eu, comigo mesmo. De manhã e a noite, de manhã e a noite.

Todos os dias. Não. Todos os dias não, para o resto da minha vida.

E eu consegui, eu segui em frente, eu tomei tudo direitinho e meus exames começaram a melhorar, sabe? Eu não fiquei cega, apenas no canto do olho. E faz um ano que eu parei de tomar o intravenoso diário. Agora não precisa mais, só os remédios. Naquela época, quanto mais eu via os resultados dos exames, mais eu ia me incentivando, e ganhando força. Não me cansava mais, já conseguia fazer as minhas caminhadas matinais. Comecei a achar que o hospital era a minha segunda casa, e, ao olhar para os outros pacientes, eu via que eu era igual a eles.

E agora, ao olhar no espelho, eu me vejo. Na verdade, estou me olhando no espelho neste momento. Se hoje eu tenho cabelo curto é por opção. Essas veias estouradas e as cicatrizes de operações cirúrgicas… Quanta coisa eu já passei na vida? Pelo menos eu tenho história para contar. A casa é só minha e agora eu consigo viver bem sozinha. Eu consigo viver com o meu momento. Eu preciso dele, aliás, para abrir a minha vida e tomar os meus remédios. Não existe um medicamento que acabe de vez com a Aids, mas existe um medicamento que a coloca no lugar. Ela também é a minha vida. Cada um tem a sua e essa é a minha.

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