As entidades do mal

O eleitor está sendo convencido que problemas fictícios são reais, e problemas reais são fictícios, e as consequências disso podem ser trágicas

O Atrito
5 min readOct 9, 2018
Dom-Quixote e o Moinho de vento. Pintrest

O Brasil teme fantasmas, monstros, dragões e outras entidades maléficas: o PT, o comunismo, a ideologia de gênero, e o marxismo cultural são algumas das criaturas que mais assustam o brasileiro médio nos últimos tempos. As vezes essas entidades se personificam em formas reais para nos assustar ainda mais, tal como o bicho-papão: o comunismo e o PT estão em Lula; a ideologia de gênero representa Pabllo Vittar; e o marxismo cultural estaria impregnado em todos os professores, do ensino básico ao superior.

Tanto bicho-papões, como demais criaturas da escuridão, são apenas histórias de ninar para assustar crianças. Ou assim deviam ser tratadas. Porém, recentemente o medo deu lugar ao ódio contra tais ameaças, e a vontade de enfrenta-las. Preferimos temer o inimigo invisível, e legitimar os discursos radicais para combater esses “dragões” — tal como Dom-Quixote combatia os moinhos de vento — mesmo que tais discursos em si sejam uma ameça maior e ainda mais real do que as entidades do mal que dizem combater. No caso do Brasil e seus demônios, as crianças com medo dessas histórias da carochinha são os 147 milhões de eleitores brasileiros, e o único “monstro” que irão conseguir derrotar através desse discurso é a democracia.

Protesto pré 1964, fonte

Veja bem: certo senhor, que era réu na Lava Jato, foi acusado de receber uma maleta de dinheiro e ameaçar de morte um possível delator, além de um suposto envolvimento com o narcotráfico — o famigerado caso do helicóptero lotado de “farina”. Esse mesmo senhor, no último pleito da eleição geral federal de 2018, no domingo 07/10, se sagrou como o mais novo deputado federal de Minas Gerais. Enquanto isso, na mesma eleição, presenciamos uma histeria nas redes sociais e em correntes de WhatsApp, a cerca da não-eleição da candidata a senadora pelo PT.

Qual seria então o critério da eleição de um, em meio ao silêncio, e a comemoração eufórica da não-eleição da outra? Afinal, o discurso anti-corrupção e anti-petista é, na verdade, uma máscara para a perpetuação da corrupção “não-petista”? Seria então que, na verdade, o que está se comemorando é que o “monstro do comunismo”, na forma de Dilma, foi derrotado em Minas? Na realidade, não existe uma maneira simples de identificar as justificativas desses atos, ou suas bandeiras e convicções. Talvez porque de fato não existam muitas justificativas além do medo e ódio cego em forma de aversão política. Tudo, a partir de um certo momento, vira apenas especulação sobre qual loucura, ou falso moralismo, estão se referindo dessa vez.

No campo presidencial o favorito tem diversas declarações controversas quanto ao que diz respeito a liberdade de expressão, sexual e de gênero, mas, ainda assim, parece ser uma escolha melhor que o segundo colocado, cujo o maior mal é pertencer a entidade cavernosa e macabra do PT. É preferível analisarmos o discurso individualmente, e não podemos deixar que o medo de um partido ou de uma ideologia nos leve a eleger qualquer pensamento só por ser “de oposição”. Temos que ver as pessoas por trás dessas narrativas, e nos perguntar quais são suas convicções. As idéias por trás do discurso que fomenta o ódio anti-petista de um eleitorado leigo — que enxerga em um deputado de carreia parlamentar e retórica igualmente risórias a esperança de restauração do orgulho da pátria — pode ser somente uma estratégia de se aproveitar do sentimento de revolta que paira sob o ar, para benefício de candidatos que se dizem “guerreiros da nação” que, tais como Dom Quixote, irão combater os monstros do imaginário popular.

Moa do Katende, morto com 12 facadas por eleitor de Bolsonaro

Assim, pouco a pouco, o medo do PT e do comunismo chega ao ápice. Após o primeiro turno das eleições houveram hostilidades contra eleitores do PT e até mesmo contra quem usava camisa vermelha. Na madrugada da segunda-feira, dia 08/10, Moa do Katende, mestre de capoeira, foi brutalmente assassinado após uma discussão política em um bar em Salvador (BA). Moa levou 12 facadas nas costas por ter declarado o voto em Haddad, segundo testemunhas. Enquanto isso, a família de Marielle ainda sofre hostilidades, como as agressões realizadas a sua irmã também no dia 08/10, por simpatizantes de direita.

A onda anti-petista transforma qualquer um que não apoie o discurso proto-fascista em inimigo petista a favor da transformação do Brasil em “uma Venezuela”. Esse medo foi fabricado, tal como o golpe de 64 fabricou a ameça comunista e tal como o nazismo fabricou a traição judia. O cultivo do medo serviu ao interesse dos derrotados em 2002 e nas seguintes eleições, que viraram a oposição tucana na era da “dualidade PT-PSDB”. Já em 2018, o medo foi absorvido por aquilo que os jornais estrangeiros estão chamando de “ultra-direitistas”, e cada vez fica mais difícil de dissocia-los de um “fascismo 2.0”.

O palanque para o ódio

Ou superamos o medo irracional de um partido, que notoriamente deixou de lado suas causas primárias em prol da governabilidade e que é tão corrupto quanto qualquer outro, ou estaremos coniventes com o proto-fascismo: um pensamento desastroso e incompetente que leva a população a temer teorias conspiratórias e inimigos imaginários como se fossem ameças reais à soberania nacional, e ao status social das elites. Já está na hora de amadurecermos nossa democracia, e evoluímos enquanto eleitores e cidadãos, pois, no fim desse tsunami do ódio e do medo, só restarão a decepção, vergonha e o arrependimento de nos depararmos com a enorme devastação que deixaremos para trás, e muitos dragões e monstros derrotados… mas espere… se você olhar bem, eram só moinhos de vento.

Gustave Doré, 1863: “O Cavaleiro da Figura Triste” cavalga contra os moinhos de vento

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