As entidades do mal
O eleitor está sendo convencido que problemas fictícios são reais, e problemas reais são fictícios, e as consequências disso podem ser trágicas
O Brasil teme fantasmas, monstros, dragões e outras entidades maléficas: o PT, o comunismo, a ideologia de gênero, e o marxismo cultural são algumas das criaturas que mais assustam o brasileiro médio nos últimos tempos. As vezes essas entidades se personificam em formas reais para nos assustar ainda mais, tal como o bicho-papão: o comunismo e o PT estão em Lula; a ideologia de gênero representa Pabllo Vittar; e o marxismo cultural estaria impregnado em todos os professores, do ensino básico ao superior.
Tanto bicho-papões, como demais criaturas da escuridão, são apenas histórias de ninar para assustar crianças. Ou assim deviam ser tratadas. Porém, recentemente o medo deu lugar ao ódio contra tais ameaças, e a vontade de enfrenta-las. Preferimos temer o inimigo invisível, e legitimar os discursos radicais para combater esses “dragões” — tal como Dom-Quixote combatia os moinhos de vento — mesmo que tais discursos em si sejam uma ameça maior e ainda mais real do que as entidades do mal que dizem combater. No caso do Brasil e seus demônios, as crianças com medo dessas histórias da carochinha são os 147 milhões de eleitores brasileiros, e o único “monstro” que irão conseguir derrotar através desse discurso é a democracia.
Veja bem: certo senhor, que era réu na Lava Jato, foi acusado de receber uma maleta de dinheiro e ameaçar de morte um possível delator, além de um suposto envolvimento com o narcotráfico — o famigerado caso do helicóptero lotado de “farina”. Esse mesmo senhor, no último pleito da eleição geral federal de 2018, no domingo 07/10, se sagrou como o mais novo deputado federal de Minas Gerais. Enquanto isso, na mesma eleição, presenciamos uma histeria nas redes sociais e em correntes de WhatsApp, a cerca da não-eleição da candidata a senadora pelo PT.
Qual seria então o critério da eleição de um, em meio ao silêncio, e a comemoração eufórica da não-eleição da outra? Afinal, o discurso anti-corrupção e anti-petista é, na verdade, uma máscara para a perpetuação da corrupção “não-petista”? Seria então que, na verdade, o que está se comemorando é que o “monstro do comunismo”, na forma de Dilma, foi derrotado em Minas? Na realidade, não existe uma maneira simples de identificar as justificativas desses atos, ou suas bandeiras e convicções. Talvez porque de fato não existam muitas justificativas além do medo e ódio cego em forma de aversão política. Tudo, a partir de um certo momento, vira apenas especulação sobre qual loucura, ou falso moralismo, estão se referindo dessa vez.
No campo presidencial o favorito tem diversas declarações controversas quanto ao que diz respeito a liberdade de expressão, sexual e de gênero, mas, ainda assim, parece ser uma escolha melhor que o segundo colocado, cujo o maior mal é pertencer a entidade cavernosa e macabra do PT. É preferível analisarmos o discurso individualmente, e não podemos deixar que o medo de um partido ou de uma ideologia nos leve a eleger qualquer pensamento só por ser “de oposição”. Temos que ver as pessoas por trás dessas narrativas, e nos perguntar quais são suas convicções. As idéias por trás do discurso que fomenta o ódio anti-petista de um eleitorado leigo — que enxerga em um deputado de carreia parlamentar e retórica igualmente risórias a esperança de restauração do orgulho da pátria — pode ser somente uma estratégia de se aproveitar do sentimento de revolta que paira sob o ar, para benefício de candidatos que se dizem “guerreiros da nação” que, tais como Dom Quixote, irão combater os monstros do imaginário popular.
Assim, pouco a pouco, o medo do PT e do comunismo chega ao ápice. Após o primeiro turno das eleições houveram hostilidades contra eleitores do PT e até mesmo contra quem usava camisa vermelha. Na madrugada da segunda-feira, dia 08/10, Moa do Katende, mestre de capoeira, foi brutalmente assassinado após uma discussão política em um bar em Salvador (BA). Moa levou 12 facadas nas costas por ter declarado o voto em Haddad, segundo testemunhas. Enquanto isso, a família de Marielle ainda sofre hostilidades, como as agressões realizadas a sua irmã também no dia 08/10, por simpatizantes de direita.
A onda anti-petista transforma qualquer um que não apoie o discurso proto-fascista em inimigo petista a favor da transformação do Brasil em “uma Venezuela”. Esse medo foi fabricado, tal como o golpe de 64 fabricou a ameça comunista e tal como o nazismo fabricou a traição judia. O cultivo do medo serviu ao interesse dos derrotados em 2002 e nas seguintes eleições, que viraram a oposição tucana na era da “dualidade PT-PSDB”. Já em 2018, o medo foi absorvido por aquilo que os jornais estrangeiros estão chamando de “ultra-direitistas”, e cada vez fica mais difícil de dissocia-los de um “fascismo 2.0”.
Ou superamos o medo irracional de um partido, que notoriamente deixou de lado suas causas primárias em prol da governabilidade e que é tão corrupto quanto qualquer outro, ou estaremos coniventes com o proto-fascismo: um pensamento desastroso e incompetente que leva a população a temer teorias conspiratórias e inimigos imaginários como se fossem ameças reais à soberania nacional, e ao status social das elites. Já está na hora de amadurecermos nossa democracia, e evoluímos enquanto eleitores e cidadãos, pois, no fim desse tsunami do ódio e do medo, só restarão a decepção, vergonha e o arrependimento de nos depararmos com a enorme devastação que deixaremos para trás, e muitos dragões e monstros derrotados… mas espere… se você olhar bem, eram só moinhos de vento.
Referências
- Eleitores aptos a votar
- Aécio Neves e a Lava a Jato
- Ameaças de morte feitas por Aécio Neves em caso de delação
- Helicoca
- Deputados Federais eleitos em MG
- Dilma derrotada
- Assassinato de Moa do Katende
- Agressões contra a irmã de Marielle
- Declarações de Bolsonaro, vídeo
- Thread do Twitter relatando alguns abusos e agressões feitas por eleitores do Bolsonaro, sequência de tweets
- Sobre ilustrações de Dom Quixote de Gustave Dore, pdf (download)
- Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, é um livro de domínio público, portanto de uso livre e gratuito. Você pode encontrar o volume 1 aqui, e o volume 2 aqui.