Tudo importa

Odyr Bernardi
3 min readMar 22, 2016

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Em Bruxelas está essa pintura do velho Bruegel, se chama Paisagem com Queda de Ícaro. Onde está Ícaro? Não importa, diz Bruegel.

Ou importa tanto quanto o sujeito ali lavrando a terra ou o outro que parece estar simplesmente apreciando o dia. Quando você finalmente o encontra, vê que não tem nenhuma dignidade ou protagonismo em sua queda (francamente ele parece um pouco ridículo).

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Sobre essa pintura, Auden escreveu um poema, quando estava passeando em Bruxelas. Um poema sobre a sabedoria dos velhos mestres, como eles entendem o sofrimento, o papel que ele ocupa no mundo: central para quem o vive, periférico para os outros. E constante. A vida é sofrimento, dizem os budistas. Perto ou longe, a qualquer momento tem sempre algo terrível acontecendo. Mas a vida continua, a vida é o próprio continuar. E para continuar, você tem que achar um equilíbrio entre o horror e a alegria. Não dá pra viver em um estado de indignação.

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Março de 2016: “ter uma idéia do que está acontecendo” se tornou um trabalho de tempo integral, escrevi isso outro dia no twitter. E um massacre de tempo integral em sua pobre psique. Um ataque constante de más notícias. O cérebro que habitamos sente esses ataques como reais, ocasionalmente. Você sente de fato o pânico da moça que está cercada no vídeo por uma turba de fanáticos em transe na manifestação brasileira ou no meio da fumaça do aeroporto da Bélgica: seu cérebro manda hormônios de fuga ou combate para seu confuso corpo na cadeira. Tem um preço nisso tudo, um desgaste.

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Hoje postei uma pintura nas internet da vida e faziam umas duas semanas que não postava uma. Palavras então, nem sei há quanto tempo não uso. Às vezes não vemos condições. Às vezes temos vergonha da pequeneza de nossas coisas, nosso desenhinhos e musiquinhas e pobres ambições frente à enorme História, Os Grandes Fatos, Graves Crises e Terríveis Tragédias. Mas sinto que não devemos, amigos - porque se paramos de compartilhar esses pequenos alentos, a vida se torna insuportável.

E: além do compartilhamento, no âmago mesmo da arte: me parece que tem tanta dignidade o artista que pinta a guerra quanto o que pinta durante a guerra. Como Monet, pintando obsessivamente as flores do seu jardim a poucos quilômetros da frente de batalha. O tipo de coisa que pode fazer o sujeito se sentir o tal violinista do Titanic, como nos sentimos às vezes, mas: a guerra passou e as flores ficaram. E o conforto que elas oferecem até hoje é real e significativo.

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Em uma palestra vi uma vez Ziraldo dividir os artistas em dois tipos: os que apontam o horror de nossos respectivos tempos e os que criam beleza. A divisão nunca é tão clara, pulamos ocasionalmente de um campo para o outros (aqui estou eu pintando num dia, fazendo cartum no outro)mas a questão é que os dois importam. O que incomoda e o que conforta, o que aponta para o horror e o que traz alegria para a pobre alma — precisamos dos dois.

Uma das descrições do que a arte faz é: nos fazer ver algo de novo como que pela primeira vez — a guerra ou uma flor, não importa: tudo importa.

Bruxelas, onde fica a tela do Bruegel, hoje é uma cena de terror. Mas também é onde Magritte pintava, fiquemos com ele.

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