Uma cidadela murada com um castelo no topo. Ela está no meio de um lago de águas rasas e o sol dourado brilha mais atrás
Mont St. Michel/Via Pixabay

SUA CIDADE PRECISA MESMO DE MURALHAS?

Paulo Moreira
Escritos Fantásticos
8 min readAug 1, 2018

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FORTIFICAÇÕES: VANTAGENS E DESVANTAGENS DE VIVER ENTRE MUROS

“As pessoas são solitárias porque constroem muros ao invés de pontes”, diz o livro O Pequeno Príncipe. Um minuto de silêncio para refletirmos sobre essa frase maravilhosa antes de partirmos para o texto em si.

Bom, passado o minuto espero…, nesse texto não irei discutir a filosofia dos muros do Pequeno Príncipe. Quero coisas mais concretas e palpáveis, não desmerecendo esse livro excelente, em outras palavras, coloquei essa frase só para chamar a sua atenção mesmo. Aqui vamos discutir melhor a construção de fortalezas e muralhas, edifícios tão comuns nos livros de fantasia, principalmente os medievais. Não que os escritores não sejam livres para criar o que quiserem e como quiserem — eu não sou contra isso pois é nessa inovação onde surgem as melhores histórias, mas acredito que algumas pessoas terão interesse em saber certos detalhes, os quais muitas vezes passam despercebidos.

Primeiro ponto: É preciso uma muralha?

Para começar, é interessante focar na origem das muralhas e fortalezas, e separá-las do conceito de refúgio. Para construir uma estrutura de defesa como muralhas, temos que ter algo para ser defendido, ou seja, alguma coisa de interesse de quem construiu a muralha e também de quem deseja destruir a muralha. Se você não tiver nada a ser guardado, então para que perder tempo, dinheiro e trabalhadores com uma construção dessas? Deixo claro que, ao dizer “algo para ser defendido” não estou me referindo apenas a riqueza, mas também a rios, estradas e até mesmo campos férteis e pessoas. Ou seja, algo em minha terra ou meu reino é de interesse meu e de outro povo inimigo. Se esse povo inimigo decide invadir a minha terra, eu preciso protegê-la da devastação e do roubo, os quais serão constantes.

Um muralha cinza em um campo verde e enevoado. Uma nuvem cobre parte de uma colina mais atrás
“Pessoas caminhando sobre as muralhas de um castelo na Escócia” by Mary-Anne Alejandro on Unsplash

E aí vamos para as diferenças entre criar um refúgio ou uma fortaleza. Um refúgio é uma das formas que uma fortificação pode assumir, entretanto trata-se apenas de um lugar de segurança a curto prazo, eficaz quando o inimigo não dispõe de tempo, afinal ele está numa terra inimiga, ou então só está acostumado a atacar alvos fáceis. Resumindo, para um refúgio é suficiente que ele só seja forte para fazer o atacante desistir do assalto.

Resumindo, para um refúgio é suficiente que ele só seja forte para fazer o atacante desistir do assalto.

Já a fortaleza não se trata de um lugar simplesmente de proteção contra um só ataque, mas também de defesa ativa contra um ataque constante. Ou seja, não é necessário construir uma fortaleza quando não há um inimigo insistente. Na fortaleza, os defensores estão protegidos da surpresa e da superioridade numérica, impondo controle militar sobre a área pela qual se interessam, a área que precisa ser guardada.

Como é necessário que a fortaleza defenda efetivamente por um longo período de tempo, é obrigatória a presença de meios de sustento para a guarnição em tempos normais. Isso só pode ser feito com o controle de uma área suficientemente produtiva. Além disso, ela precisa ser grande e segura para abrigo e proteção nos tempos de ataque. Ou seja, fortalezas são mais caras e difíceis de serem construídas e mantidas do que um refúgio, sendo construções de sociedades mais avançadas e ricas, devendo suportar o assédio dos inimigos que possuem máquinas e tem um acesso mais fácil a suprimentos. Dessa forma, a área da fortaleza deve abranger um suprimento de água (para pessoas e animais), armazéns (para guardar os suprimentos) e espaço para abrigar pessoas. Caso sejam perdidos os dois primeiros itens, a fortaleza não é capaz de se sustentar. Além disso, é necessário que a estrutura da fortaleza proporcione meios para que a guarnição mantenham uma defesa constante, como plataformas de luta, campos mais altos de tiro e portões reforçados, esses últimos particularmente importantes para um contra-ataque oportuno.

Fortalezas são mais caras e difíceis de serem construídas e mantidas do que um refúgio, sendo construções de sociedades mais avançadas e ricas.

Como defender uma fortaleza em caso de ataque?

As fortalezas apresentam uma vantagem interessante de ser abordada: só podem ser atacadas de perto, uma vez que para tomar a fortaleza deve-se ultrapassar ou destruir a muralha. Dessa forma, o tipo mais simples de ataque é a escalada — pelo qual os assediantes buscam pular os muros com escadas. Ainda há outras formas, tais como colocação de minas, carga com aríetes e lançadores de projéteis e uso de torres de assédio. Porém, fazer uso dessas técnicas não garante a vitória dos atacantes.

Em relação ao lançamento de projéteis, acredito que um muro sólido poderia absorver sua energia sem grandes prejuízos. Conclusão: para invadir a fortaleza, é preciso ter contato com ela, chegar pessoalmente, o que torna o atacante uma alvo fácil para os arqueiros acima dos muros.

Um guerreiro escondido completamente em uma armadura ergue a espada e o escudo
“Retrato em preto-e-branco de um homem com armadura medieval, pronto para brandir a espada.” by Henry Hustava on Unsplash

Mas claro, há ainda outra desvantagem das muralhas além do alto custo para erguê-la e a dificuldade em preservar os suprimentos de seus defensores. Tal desvantagem é a existência dos alicerces, o ponto mais vulnerável da muralha que a faria tombar. Então é preciso que os defensores tenham em mente que seus alicerces serão quase sempre o alvo dos atacantes e consigam desenvolver técnicas de proteção às estruturas. Uma das estratégias utilizadas pode ser providenciar aos arqueiros posições mais elevadas de tiro por meio de torres em locais próximos aos alicerces. Outra é a construção de fossos secos ou com água que dificultam e enfraquecem a chegada dos invasores a esses pontos fracos da muralha.

É preciso que os defensores tenham em mente que seus alicerces serão quase sempre o alvo dos atacantes e consigam desenvolver técnicas de proteção às estruturas.

Um ponto a mais: Defesas estratégicas contínuas

Outra forma de proteção é referente à construção de defesas estratégicas contínuas, ou seja, longas muralhas com fortes logisticamente posicionados e distribuídos a fim de fornecerem apoio mútuo e, assim, evitarem o avanço de povos hostis e inimigos (A Muralha da China e A Muralha de George R.R. Martin d’As Crônicas de Gelo e Fogo são exemplos — gostaria de poder colocar aqui as muralhas de Shingeki no Kyojin de Hajime Isayama que impedem a entrada da barbárie dos Titãs no mundo civilizado mas achei melhor ficar quieto em relação a essas muralhas específicas…). No entanto, essa forma de fortificação é a mais dispendiosa de ser construída e mantida, sendo símbolo de reinos ou impérios mais ricos formados por povos pacíficos ou de forças rebeldes reprimidas e silenciadas. Vale lembrar que se um reino tem constantes conflitos em seu interior, será ainda mais caro e complicado encontrar mão-de-obra, se não a escrava, para uma sistema de defesa que demora anos para ser erguido.

Essa forma de fortificação é a mais dispendiosa de ser construída e mantida, sendo símbolo de reinos ou impérios mais ricos formados por povos pacíficos ou de forças rebeldes reprimidas e silenciadas.

Por dentro de um arco vê-se uma muralha percorrendo o topo de várias montanhas até sumir no horizonte
“A Grande Muralha da China” by Robert Nyman on Unsplash

Muitas vezes a construção de uma longa muralha visa formar uma fronteira, e a disposição dos fortes objetiva a proteção e domínio de elementos essenciais para a sobrevivência do reino, como os rios e estradas. É importante ressaltar a forma de comunicação entre esses fortes, caso sejam distantes uns dos outros, seja por meio de mensageiros (os quais podem ser capturados) ou sinais de fumaça. É interessante a utilização de cartas codificadas ou uso de termos só entendidos pela guarnição.

Mas vamos ao ponto importante: Como tomar uma cidadela ou uma fortaleza?

Há várias práticas de sítio e máquinas de assédio que podemos citar aqui, tais como aríetes, escadas, torres de assédio e galerias subterrâneas. No entanto, talvez a técnica mais eficaz para tomar uma fortaleza não venha de máquinas construídas e renovadas, e sim de uma necessidade básica dos seres vivos: a comida.

Para conseguir dominar uma cidadela, nem todas as máquinas são tão efetivas quanto a fome em trazer a rendição dos defensores. Sabemos que para manter muralhas e fortes protegidos é necessário o acesso a suprimentos, como água, cereais e animais. Dessa forma, qualquer medida que dificulte ou impeça a disponibilidade dos suprimentos, ocasionará fome nos defensores, levando-os à rendição — pessoas não trabalham bem quando estão com fome. Mesmo assim, essa estratégia, embora eficaz, apresenta uma desvantagem óbvia para os atacantes: o tempo para se concretizar. Nessa espera, um exército aliado à fortaleza pode chegar em seu apoio e expulsar os invasores.

Qualquer medida que dificulte ou impeça a disponibilidade dos suprimentos, ocasionará fome nos defensores, levando-os à rendição.

Então a única estratégia eficaz não é tão eficaz? Aparentemente sim, mas isso depende muito do cenário. Caso os defensores não estejam à espera de um exército a seu favor e os atacantes não precisem agir contra o tempo, trazer fome à fortaleza pode ser o fator crucial para a rendição dos atacados. Ressalto que pessoas desnutridas e em conjunto fortalecem a disseminação de doenças no seu interior. E a rendição diminui o número de perdas, tanto para os defensores que não morrerão de fome, ao menos, não de fome…, quanto para os invasores que não perderão soldados na luta inútil contra as muralhas.

Ainda há um estratagema de resultados rápidos da qual não falarei muito: a traição. Ninguém gosta de vira-casacas…

Resumindo todo o texto feito até aqui, a vantagem numa guerra de assédio sempre está nos defensores, desde que estes tenham o bom senso de inventar maneiras de sustentar-se ao longo do tempo, precavendo-se com provisões. Construções de defesa como muralhas longas são caras e difíceis de serem erguidas, a não ser que o império tenha os meios necessários para isso, e podem ser símbolos da grandeza do reino. E claro, quem tem mais vantagem numa guerra contra uma fortaleza quase sempre são os defensores e não os atacantes.

— Boa parte dos argumentos desse texto são provenientes do livro Uma história da guerra — A history of warfare — de John Keegan (1993).

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Paulo Moreira
Escritos Fantásticos

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.