Como pensar o impeachment?

Pedro Doria
5 min readDec 3, 2015

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Pela segunda vez na jovem democracia inaugurada em 1985, um presidente da Câmara aceitou o processo de impeachment contra o ocupante da Presidência da República. Em 1992, Ibsen Pinheiro vinha abalizado pela sociedade nas ruas e por consenso entre parlamentares. O passo a dar era claríssimo. Em 2015, Eduardo Cunha se vê motivado por vingança pessoal e chantagem num jogo político digno de câmaras municipais do interior. Quis promover o “você livra minha cara que eu livro a sua”. Os radicais antipetistas celebram. Os radicais governistas gritam golpe. Não há golpe tampouco motivo de celebração. Há, isto sim, fracasso democrático. O tipo de fracasso que não ameaça a democracia mas torna evidente sua terrível imperfeição no Brasil. E quem não é radical nem de um lado, nem do outro, vai precisar se reconciliar com esta ideia para formar opinião.

O problema Cunha

Eduardo Cunha começou a carreira política do lado de Fernando Collor, bandeou-se para os braços de Anthony Garotinho e com este pedigree, lentamente, chegou ao posto de terceiro na sucessão presidencial. A trilha de escândalos que deixou no caminho de ascensão foi ricamente documentada pela imprensa carioca ao longo das últimas duas décadas.

Não chegou lá por acidente. Seu partido, o PMDB, ocupa a vice-presidência de Dilma Rousseff. São aliados formais. No comando do Poder Executivo, o PT formalizou e centralizou um sistema para a manutenção de base no Congresso que envolvia cargos, favores e propinas. Gestão se dá na base de incentivos e retornos. O comportamento que o gestor incentivar ditará o retorno que vier. Ao incentivar uma forma de negociação em detrimento doutras, com o passar dos anos o governo alimentou a cultura que terminou com a escolha de Eduardo Cunha. Não é um jogo de ingênuos. Cunha foi escolhido porque seus pares enxergaram nele os talentos adequados para lidar com o Planalto.

O problema Dilma

As pedaladas fiscais que Helio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaina Paschoal acusam Dilma de ter praticado não são peças de ficção. São fatos. Em sua defesa perante o Tribunal de Contas, o governo não as negou. Apenas argumentou que não configuravam crimes. Mas o TCU avaliou o contrário. A decisão final cabe ao Congresso, segundo a Constituição. O outro argumento de Bicudo, Reale e Paschoal é igualmente verdadeiro. Em agosto, a presidente pediu autorização para gastar mais R$ 2,5 bilhões do que o previsto mesmo reconhecendo que não seria capaz de cumprir o orçado. O Orçamento federal é uma lei, não uma escolha. Se a decisão pelo Congresso de rever a meta fiscal, agora em dezembro, é retroativa ou não é tema jurídico. Só que o processo de impeachment é político.

E este é o problema: a questão é política. De todos os presidentes, Dilma deve ser a mais inepta política na história da república brasileira.

O problema real

Dilma Rousseff é uma economista que dedicou a vida à prática política. No comando do governo, escolheu um Estado francamente interventor. Decidiu que setores da economia deveria beneficiar, pinçou empresas para fazer crescer, disparou incentivos artificiais ao consumo, segurou aumentos de tarifas públicas. Foi ativa na economia. Tinha opiniões fortes a respeito de que caminho seguir, tomou decisões. Se, às portas do sexto ano de sua presidência, o Brasil enfrenta a pior recessão desde os anos 1980, bem, só há uma pessoa responsável.

A crise já estava dada em 2014. O governo não deu pedaladas fiscais à toa: o objetivo era maquiar a realidade o suficiente ao menos até novembro. A crise de hoje é pior porque o governo escolheu fingir que tudo ia bem ontem. Fez isso para garantir sua reeleição. Deu certo. As consequências estão aí, na rua, e todos as vivemos.

E houve o Mensalão. E há a Lava-Jato. É evidente que o governo do PT não é o primeiro governo corrupto da história. Mas é o primeiro cujo rastro de corrupção foi traçado com clareza. Eficiência pelo amadurecimento de Polícia Federal e Ministério Público, leis de incentivo a delação, tecnologia de data mining, tudo colaborou para que as provas viessem à tona. Colaborou, também, o fato de que a corrupção no Brasil tendia a ser descentralizada, cada um com seu quinhão, e a cabeça stalinista de alguns a centralizou. Bastou encontrar o fio da meada e puxar.

Todos os indícios levam a crer que Dilma é pessoalmente honesta. Seu governo não é. O de seu antecessor tampouco. Economista e política, Dilma fracassou retumbantemente em ambas. Na economia e na política.

Impeachment?

Os petistas chamam de golpe. Golpe de Estado tem definição: é quando, passando ao largo da lei, um dos braços do Estado toma o poder. As Forças Armadas, por exemplo. O processo de impeachment é previsto pela Constituição, seu rito conhecido e já testado, e as acusações que pairam contra a presidente não têm nada de artificial. Não há golpe.

Os antipetistas têm asco da ideia de que um partido de esquerda possa ter chegado ao governo. Chegou e, se a democracia brasileira se mantiver estável, continuará chegando. Apesar do PT. Democracias existem para que o poder alterne entre ciclos de esquerda e de direita.

Sobra apenas a realidade. A realidade é que recessões têm alto custo cobrado em empregos e esperanças. Recessões geram pobreza, pioram vidas. Corrupção também. O preço pago pela corrupção é em escolas, hospitais, inépcia administrativa. É a manutenção de um sistema em que uns têm muito e os outros, pouco.

A realidade é que não basta tirar as pessoas da pobreza. Sem resolver o problema de qualidade no serviço público, quem foi pobre continua sendo tratado com menos dignidade. Continua sempre em risco de voltar. Entre permanecer no poder e tentar resolver este problema, o PT fez sua escolha.

O processo de impeachment de Dilma Rousseff nasce de um processo que o governo do PT alimentou. Acusa um problema real mas nasce por chantagem. Se os fins justificam os meios, cada um precisará decidir consigo mesmo.

No fim, sobra o seguinte: o PT fez pela esquerda o que a Ditadura Militar fez pela direita. Um estrago retumbante de imagem.

Pedro Doria é jornalista. Seus últimos livros tratam de história: 1565 narra a invenção do sudeste brasileiro e 1789 conta a verdadeira história da Inconfidência. Ele escreve sobre o impacto da tecnologia, no Globo, às sextas-feiras. E aqui no Medium quase toda semana.

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Pedro Doria

Editor do Meio. Colunista do Globo, O Estado de S. Paulo e CBN. Meu pai nasceu no DF, nasci na GB e dois de meus três filhos no RJ. Todos na mesma cidade.