Lembranças da Playboy

Pedro Doria
5 min readNov 21, 2015

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Ana Lima, abril de 1989

Toda revista que foi a seu tempo marcante carrega uma ideia de país, uma ideia de cultura. Nossa Playboy foi assim. Ela era, e muitos já o falaram nos últimos dias, única. Mas foi única não por ser tão distinta da versão original, americana. Foi única por ter sido a brilhante adaptação do conceito editorial americano no Brasil. Seu fim traz uma tristeza nostálgica. Mas é um fim natural. Não foi morta só pela internet ou pela crise dos impressos, foi morta também pela transformação do país.

O inglês James Wilson fundou a Economist, em 1843, para divulgar a ideia de que o livre fluxo de mercadorias pelas fronteiras enriquece a todos. No mesmo período, mas do outro lado do oceano, Francis Underwood (não confundir com seu homônimo) criou a Atlantic Monthly para promover a ideia da excepcionalidade americana. Liberdade econômica e democracia eram ideias novas, ainda não perfeitamente debatidas ou compreendidas pelo público geral. Ao ver o mundo através daquelas lentes, revistas as popularizavam. Harold Ross, um rapaz provinciano encantado com a Nova York nos tempos do Jazz, criou a New Yorker para, num mix de humor com boas histórias, trabalhar o conceito de cosmopolitismo. Metrópoles eram novidade no mundo. Não falta quem observe, na Playboy, um viés de objetificação da mulher. É porque não compreendem sua história.

Hugh Hefner tinha 27 anos quando fundou sua revista. Dezembro de 1953. Estava recém-separado e o casamento havia se mostrado frustrante. Ele ansiava por outro tipo de vida. Homens americanos caçavam bichos a bala nos fins de semana, tinham amantes que suas mulheres fingiam não perceber e não entravam na cozinha. Hef não se enxergava ali. Idealizava um mundo no qual o jovem solteiro apreciava uma vida urbana, poderia receber namoradas em casa para a noite, faria drinks para encantá-la enquanto ouviam jazz na vitrola. A Playboy pregava um novo tipo de liberdade, um novo estilo de vida que de fato se consolidaria. Um mundo onde virgindade deixava de ser um valor. E as moças na capa não se pareciam com as modelos de revistas masculinas vagabundas. Eram como as girls next door. Mulheres possíveis. Mulheres para casar.

Tempo de desbunde

Na virada dos anos 1970 para os 80, o Brasil vivia seu anseio de liberdade política, econômica, social e sexual. Aproveitando-se da estrutura inventada por Hef — a longa entrevista, o ensaio principal, uma ou duas grandes reportagens, os cartuns — os editores brasileiros puseram a fórmula a serviço daquele Brasil. Falava-se de liberdade da primeira à última página, mas não a liberdade buscada pelo jovem de classe média americano nos anos 1950. Enquanto a versão americana já mostrava sinais de envelhecimento, a brasileira trazia frescor. As declarações nas entrevistas repercutiam. Reportagens mergulhavam fundo nos bastidores do governo, da sociedade.

E, claro, havia as mulheres.

Nossa Playboy nasceu no tempo do desbunde. A pílula e o antibiótico haviam tirado o risco do sexo e a Aids ainda não o havia trazido de volta. No Brasil urbano, a liberdade sexual foi plena. Os biquínis tornaram-se pequenos como nunca. E, embora no contexto careta e radicalizado de hoje nos pareça longínquo, para muitas mulheres o despir-se trazia a afirmação da própria liberdade. Não se pareciam com as mulheres muito maquiadas dos EUA pré-Vietnã. Eram brasileiras, tinham quase sempre a cara lavada. E como foram comuns ensaios com o mar ou o mato tropical por perto.

Nossa Playboy trouxe os muitos cortes do púbis para as discussões em casa. E, assim, criou um novo registro cultural. A cada punhado de anos uma mulher traria um corte novo e o Brasil a acompanharia.

Aqueles olhares

Silvia Rossi, março de 1989

Mas há outro ponto a se falar da nudez na Playboy. A qualidade fotográfica foi, quase sempre, excepcional. Não houve o esfumaçado kitsch americano, tampouco o improviso de outras revistas como Status e Ele Ela. Havia uma estética ali. As mulheres nuas não fingiam estar em seu dia-a-dia. Mas também não pareciam nos desafiar, aos leitores. Pareciam sempre confortáveis. Fundamentalmente, até começar a era das BBBs, as mulheres da Playboy pareciam mulheres interessantes. Pareciam mulheres seguras.

Até nuas mostravam-se seguras.

Nossa relação com sexo ficou mais crua no tempo pós-Internet. Não é só pelo fácil acesso a pornografia. É também porque para preencher o noticiário 24 horas de celebridades foi preciso ampliar o número de famosos. Detalhes sutis foram atropelados. A boa atriz ou a cantora ou a atleta que um dia se despia para a Playboy tornava aquele ensaio algo de excepcional. Porque era. Porque, depois que aquela revista saísse das bancas, nunca mais. A nudez ocorria, depois desaparecia. O despir-se por ser famosa, porém, tornou-se o famosa porque se despiu. A nudez perdeu sua excepcionalidade e, de certa forma, a aura de gesto de afirmação. Tornou-se oportunismo, atalho para uma forma menor de sucesso.

Nem todas as mulheres famosas passaram pela capa da revista, mas o rito fez parte de um Brasil. Ainda faz, embora dormente. Quando Luana Piovani busca a Trip, há uma mensagem ali. Se Bruna Linzmeyer procura o fotógrafo Jorge Bispo para que componham juntos uma revista avulsa para seu ensaio, a mensagem é a mesma. A busca pela nudez como desafio, como afirmação de independência, como gesto de liberdade, ainda está em nosso DNA cultural. A Playboy, que criou esse espaço, é que o perdeu.

Nunca editei a Playboy, embora tenha sido um de meus sonhos no início da carreira. Meus rumos foram outros, por jornais, internet, livros. Tenho certeza de que não teria sido capaz de reverter o processo. Mas isso não quer dizer que o espaço editorial ocupado por aquela Playboy, 20 ou 30 anos atrás, não exista mais. A caminho de completar 200 anos, Atlantic e Economist seguem tão relevantes como sempre, se reinventando digitalmente, encontrando novas preocupações, mas sempre reafirmando a busca pela liberdade imaginada por seus fundadores. Próxima dos 100, a New Yorker idem. Hugh Hefner, não. Foi brilhante na concepção da revista e tornou-se um peso. Já havia se perdido muito antes do digital. A sofisticação urbana pré-revolução sexual que evocava, sem renovação, tornou-se obsoleta. Sem nada de novo para apresentar. Até, quem diria, cafona. Deixar de publicar os ensaios não fará qualquer diferença.

Mas ali entre as fotos de Bispo e Autumn Sonnichsen, há algo acontecendo no Brasil. São os J. R. Duran e Bob Wolfenson com uma estética adequada aos novos tempos. As mulheres que ambos encontram evocam a mesma segurança daquelas de antes. A mesma busca por liberdade. Precisam, apenas, de um novo corpo editorial em volta. Uma discussão mais profunda a respeito das muitas formas de relacionamento hoje. Cosmopolitismo para o tempo em que viajar pelo mundo é barato. Preocupação com o estado do planeta. Discussão política que fuja da polarização. E entrevistas longas, claro. Tudo num pacote digital.

O que os bons editores que passaram pela nossa Playboy fizeram foi pegar a estrutura original, seus valores, e adequá-la ao Brasil de seus tempos. Continuaria funcionando.

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Pedro Doria

Editor do Meio. Colunista do Globo, O Estado de S. Paulo e CBN. Meu pai nasceu no DF, nasci na GB e dois de meus três filhos no RJ. Todos na mesma cidade.