Educação digital nas escolas precisa incluir alfabetização em dados*

Priscila Gonsales
6 min readJul 20, 2019

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Considerando o desenvolvimento das tecnologias para registrar cada vez mais e melhor palavras e comportamentos dos alunos, a pesquisadora da Universidade de Harvard Velislava Hillman indaga se esse monitoramento constante pode garantir um ambiente seguro para os alunos poderem errar sem preocupações com futuras conseqüências negativas

Tecnologias digitais estão cada vez mais presentes nas escolas, seja para uso pedagógico ou administrativo, algo que vem levantando preocupações em relação à capacidade dos alunos (e pais) em tomar conhecimento sobre como, por que, quando e quem usa os dados que são gerados. Além dos benefícios pedagógicos amplamente propagados, a presença constante de tecnologias digitais nas escolas também envolve a coleta de informações pessoais as mais diversas.

A escola é considerada um espaço seguro onde as crianças vão aprender, descobrir coisas novas e fazer amizades. Mas, como em quaisquer outros espaços aparentemente seguros — desde igrejas, organizações assistenciais, grupos associativos ou clubes esportivos — as crianças podem estar em risco de sofrer danos. Isso não significa caluniar escolas nem rejeitar tecnologias educacionais (ed-tech) ou a própria coleta de dados, mas sim chamar a atenção para a reflexão: quanto do que é registrado todos os dias em aula ou em processos administrativos pode ter o potencial de diminuir as liberdades básicas?

Por exemplo, sistemas de pontuação automatizados de redação são comumente usados ​​em testes padronizados. Usando o machine learning (aprendizado de máquina), aplicativos avaliam os materiais dos alunos com base em parâmetros que foram originalmente classificados por especialistas humanos. Quanto mais dados classificados inseridos nos aplicativos, melhor sua precisão de classificação. No entanto, na relação humana aluno-professor é natural haver confiança para consentir a leitura de uma redação que pode, por exemplo, trazer uma opinião controversa sobre algum assunto polêmico. Confiança essa que o aluno talvez não sinta em relação a um sistema automatizado que faz um registro permanente do seu material escrito cujas consequências sobre como e por quem esses dados podem ser usados em qualquer situação no futuro são totalmente desconhecidas.

Dessa forma, é preciso considerar o risco de que tais tecnologias podem ter um “efeito inibidor” sobre o direito à livre expressão. Juntamente com uma gama de outras ferramentas de tecnologia de ponta projetadas para tarefas como monitoramento de conteúdo gerado pelo aluno, coleta de dados biométricos e reconhecimento facial, é possível que o uso dessas tecnologias resulte em registro permanente de qualquer erro/equívoco que os alunos cometem na escola e isso segui-lo pelo resto da vida.

É importante ressaltar, contudo, que as oportunidades de aprendizagem que as ferramentas de tecnologia de ponta fornecem são muitas. Elas ajudam crianças com deficiências, possibilitam alcance e acesso global, permitem adaptar o aprendizado, além de favorecer a colaboração e a criatividade. Há também aspectos positivos sobre dados escolares gerados: é possível obter informações úteis e melhorar o trabalho didático-pedagógico, aprimorar estudos sobre as teorias de aprendizagem, assim como possibilitar alavancar recursos a partir de demandas identificadas. No entanto, como muitas outras ferramentas se infiltram nos processos escolares — de aplicativos que geram pesquisas em sala de aula (quais são as visões políticas das crianças?), monitoram o conteúdo gerado pelos alunos (alguém digita ‘matar’?) e controlam comportamentos — o ‘direito de permanecer calado’, ou seja, não se manifestar, pode emergir como a melhor opção para estudantes sob constante vigilância.

As implicações de coletar dados refinados durante um longo período de tempo envolvem três aspectos: permanência, impacto e alcance. Embora leis como COPPA, FERPA e SHERPA (para os EUA) e GDPR (para a UE) protejam o modo como os dados das crianças são tratados, muitos fornecedores não têm transparência e práticas consistentes de privacidade e segurança. As escolas normalmente organizam dados — acadêmicos (relacionados aos alunos) e operacionais (relacionados à escola) — em centenas de elementos. Cada elemento contém dados mais granulares, como nomes de alunos ou identificadores exclusivos, endereço residencial, sexo, raça, deficiência, disciplina, se está inscrito em um programa especial, relatórios de notas, observações de professores, acidentes etc. A lista é contínua.

Uma escola pode usar mais de 100 produtos e serviços de tecnologia de ponta adquiridos de fornecedores em sua maior parte com fins lucrativos. Para os fornecedores, quanto mais dados seus produtos veiculam, melhor direcionados tais produtos se tornam para o usuário. Embora as normativas legais abordem como os dados digitais das crianças devem ser tratados, as violações de dados continuam a acontecer, o uso dos dados dos alunos pelos fornecedores ainda carece de transparência e as leis ainda apresentam muitas falhas. Acima de tudo, os estudantes (e pais) geralmente não têm consciência e compreensão desses dados, de sua complexidade e dos mecanismos de coleta, uso e impacto.

É preciso que os agentes comprometidos com educação (empresas de tecnologia, governos, escolas e sociedade civil) empreguem esforços para moldar a política em relação à privacidade dos dados ao contexto escolar, pois ainda há uma falta geral de iniciativas especialmente projetadas para crianças e jovens, para ajudá-los a aprender e compreender o que as escolas coletam de dados sobre eles e como esses dados podem impactar suas vidas no futuro. Esforços estão sendo feitos no sentido de criar uma internet mais segura para as crianças. Por exemplo, o recém-lançado kit de ferramentas de privacidade visa informar e preparar os jovens sobre a pegada digital que deixam na internet. Esforços semelhantes devem ser feitos com relação aos dados escolares.

Tornar-se informado, interagir e entender como seus dados são usados ​​para avaliá-los como indivíduos e como aprendizes é uma forma de garantir que as interações entre crianças e jovens com a tecnologia educacional sejam valorizadas. Também pode incentivá-los a desafiar práticas potencialmente prejudiciais sem medo de que as escolas gerem registros digitais permanentes de todos os seus movimentos. Algumas medidas podem ser tomadas para garantir a alfabetização em dados de crianças e jovens sobre seus dados escolares, tais como:

  • Criar um vocabulário de dados escolares para crianças e jovens, a fim de dar visibilidade aos alunos sobre seus dados escolares — o que é coletado sobre eles, por quem e como é usado para avaliá-los como indivíduos e como aprendizes;
  • Promover a transparência ao usar um vocabulário de dados. Um vocabulário de dados também deve ser revisado de maneira consistente e automática, à medida que ferramentas de tecnologia educacional e processos escolares mudam constantemente;
  • Priorizar a participação dos estudantes nos processos escolares. Com a coleta de dados constante, não faz sentido que os alunos forneçam feedback pessoal, emocional ou acadêmico simplesmente porque cada palavra pode ser potencialmente convertida em dados e processada por algoritmos que farão inferências sobre eles com consequências desconhecidas. Priorizar a voz e as perspectivas dos alunos deve orientar as decisões sobre quais dados são coletados e como são usados. A coleta de dados refinada durante um longo período de tempo pode destruir a privacidade, enquanto várias agências e autoridades humanas podem obter acesso a dados longitudinais que podem afetar a vida além da escola;
  • Envolver diferentes partes interessadas: educadores, formuladores de políticas e provedores de tecnologia educacional devem procurar promover engajamentos significativos com ferramentas de tecnologia de ponta, em vez de apenas pela coleta de dados;
  • Alfabetização em dados aplicada: estudos mostram que os alunos têm diferentes interpretações de dados. Muitos jovens não pensam em dados gerados sobre eles como um “dossiê”. Um dossiê escolar, no entanto, pode abranger dados da educação infantil até a universidade e a vida profissional — os dados coletados e como isso pode influenciar a tomada de decisões devem ser transparentes e claros para os alunos.

Embora as informações dos dados escolares possam ajudar a adaptar a proposta pedagógica, avaliar a qualidade da escola e avaliar o desempenho acadêmico dos alunos, é crucial encontrar um equilíbrio, adotando uma abordagem centrada no aluno que permita sua participação igualitária nesses processos. Tal equilíbrio pode ser alcançado através da alfabetização digital em dados — começando com seus próprios dados escolares e transparência sobre como seus dados são usados, a fim de permitir espaço para erros e um processo natural de aprendizado.

*Traduzido e adaptado de Velislava Hillman
Berkman Klein Center at Harvard University
https://tinyurl.com/y5bom9c6

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Priscila Gonsales

educadora e pesquisadora, facilita processos educacionais colaborativos com design thinking, doutoranda em Linguagens e Tecnologias, fundadora do Educadigital