O Fim do Nacionalismo (Inédito em Livro)

Retratos e Leituras
10 min readJun 21, 2017

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No século dos nacionalismos exaltados, “o fim do nacionalismo” parece uma “blague” destinada à “consolar o burguês”. É, porém, mais do que um paradoxo. É um fato histórico. O Presente tem sempre má memória e a História a aviva.

Quando eu era muito jovem, há talvez trinta anos, li um romance, Iéna, de um escritor esquecido, Karl Bleibtreu, morto num hospício; e não podia me desprender da lembrança desta história empolgante. Em Iéna, em 14 de outubro de 1806, Napoleão ataca o exército prussiano. As tradições de Frederico o Grande vivem ainda; a batalha será difícil. O marechal Soult foi encarregado de cercar os Prussianos para atacá-los pela retaguarda; é preciso conhecer os atalhos sobre as colinas. O marechal detém alguns habitantes, um mestre-escola aldeão, um pastor; interroga-os. O pobre professor treme ao observar o grande uniforme do marechal de França; sua cabeça está perturbada pela Bastilha, a Marselhesa, o Tricolor, a Liberdade; e ele pensa na servidão, nos fidalgotes orgulhosos ao chicote do cabo prussiano. Este marechal não será o mensageiro da liberdade para a pátria alemã, humilhada? O pastor, ele também, ouviu falar de liberdade, mas não conhece os estrangeiros, e desconfia. Não são eles sempre o inimigo? O professor conhece um atalho, o está pronto para indicá-lo. O pastor não sabe nada, nada. O marechal Soult compreende a situação; manda fuzilar o pastor imediatamente. O último olhar do moribundo fixa cheio de reprovações o traidor que levará o inimigo à queda da Prússia. Era em Iéna.

São dois protagonistas. O traidor intelectual e o homem de primitivo sentimento nacional. Um, nacionalista ardente, que quer libertar sua nação pela sua ideologia, e que não recua diante da traição. O outro que não tem razões suficientes para o seu sentimento nacional. Hoje, como antigamente, o mestre-escola aldeão possui novas ideologias. Hoje, o pobre pastor, ele também, alimenta velhos sentimentos, exceto que não é mais uma lealdade absoluta, mas vagas recordações das idéias de 1789. Os papéis foram modificados, e em detrimento do pastor, pois parece que o sentimento nacional e as idéias de 1789 não se combinam muito bem. Mas é preciso lembrar que elas se combinavam antigamente, e muito exatamente.

A revolução francesa deseja emancipar o homem; a pessoa humana será um indivíduo soberano. O rei era soberano; a nação era soberana. O Padre Yves de la Brière S. J., no seu livro A Comunidade das Potências, brilhantemente expôs este nacionalismo revolucionário. O nacionalismo e a democracia são gêmeos. É preciso extinguir este vai-e-vem involuntário dos cidadãos sem direitos, pela justiça arbitrária das lettres de cachet. É preciso extinguir, igualmente, este vai-e-vem involuntário das nações, do qual Albert Sorel, na A Europa e a Revolução Francesa esboçou um quadro impressionante: “Em 1698, um Bávaro deve reinar na Espanha, na Bélgica e na Sardenha; um Bourbon reinará em Nápoles; um Austríaco terá Milão. A combinação fracassa, o Austríaco toma a Espanha, o Bourbon toma Milão que troca pela Lorena… Um rei da Polônia obtém o usufruto da Lorena, a dinastia Lorena é transferida para Toscana, etc.” (t. I., p. 35f.) Em trinta anos, a Sicília muda quatro vezes de chefe, e nunca por um Siciliano. Este vai-e-vem das dinastias acima das nações que não são absolutamente consultadas, esta diplomacia arbitrária deve cessar.

As idéias de 1789 são nacionais. As palavras “Jacobino” e “Patriota” tornam-se sinônimos. O deputado Barnave o declarou, no seu discurso de 18 de julho de 1789, quatro dias depois da tomada da Bastilha: a soberania desceu do rei à nação; o rei era tudo, agora a nação o é; e termina por estas palavras: “O espírito nacional é o remédio para tudo”.

A França continuou fiel. Os Gambetta e os Clemenceau são Jacobinos e Patriotas ao mesmo tempo. A Revolução proclamou estas idéias por toda a Europa, e por todo o mundo. Na Bélgica e na Itália, primeiramente. Depois, os exércitos de Napoleão levaram o nacionalismo revolucionário à Alemanha, onde a reação tomou, naturalmente, formas anti-francesas; foi depois de Iéna que Fichte pronunciou o famoso Discurso à Nação Alemã. Foram essas idéias que despertaram a independência de todas as Repúblicas da América Latina, a independência da Grécia, as revoluções da Bélgica e da Polônia, a soberania da Romênia, o Risorgimento da Itália, independência nacional, baseada na soberania do povo; Bismarck, ele mesmo o fidalgote unificando a nação alemã, acha indispensável o Sufrágio Universal; o fim é o “direito dos povos de dispor deles mesmos”, de Wilson, base dos pequenos Estados eslavos, cuja vida foi tão efêmera. Com efeito, estamos num fim.

A aliança entre a democracia e o nacionalismo foi o maior fato político do século XIX que terminava em 1918. Hoje, esta aliança foi rompida e transformada em inimizade mortal, o que é o maior fato político do século XX. Como foi isso possível?

Para dizer a verdade, esta aliança não era muito firme. Pelos dois lados, estava perpetuamente ameaçada.

A aliança entre a democracia e o nacionalismo se baseavam no individualismo liberal, entendido do indivíduo à nação; mas o individualismo ameaçará sempre a coesão de uma nação. Por outra parte, as forças sentimentais e instintivas da nação são sempre irreconciliáveis com o racionalismo que é a base da democracia liberal. E esta dupla ameaça mútua exprimiu-se inicialmente por uma questão que não tinha nenhuma ligação com a questão nacional: pela questão social.

O liberalismo se ergue em liberalismo burguês, internacionalismo econômico. Em tempo de prosperidade, pode-se ainda festejar a “cooperação pacífica de todas as nações”; em tempos de crise, esta interdependência econômica é uma cadeia lastimável, uma ameaça contra a soberania nacional. Por outro lado, a noção “povo”, na qual a democracia nacionalista se tinha inspirado, perde-se; o “povo” foi substituído pelo proletariado que se organiza em classe internacional. De uma parte à outra, a nação é colocada em questão.

A euforia do século XIX, o seu apogeu na era vitoriana, foi acompanhada de graves sintomas de decadência. Os pensadores conservadores, um Donoso Cortés, um Burckhardt, daí tiram suas sombrias profecias. Todos os Estados modernos se baseiam sobre o princípio de nacionalidade; mas este princípio está ameaçado, a decadência da Ordem se prevê. Contra esta decadência, é preciso salvar, restabelecer a Ordem. É por isso que se tenta romper a aliança entre o nacionalismo e a democracia, para, na queda inevitável da democracia, basear a nova Ordem sobre o nacionalismo. Este rompimento é a obra dos Georges Sorel, Vilfredo Pareto, Charles Maurras.

Nacionalismo é uma noção formal; não há existência real sem uma base humana, bem definida. Ora, o “povo” dos Jacobinos, esta massa coerente com sua “vontade geral”, não existe mais, desfeita como está pela luta de classes. Então, é preciso indicar uma nova base para o novo nacionalismo. É a preocupação primordial de Sorel, de Pareto, de Maurras, e cada um deles tem uma resposta diferente, de acordo com as suas origens.

Sorel vem do socialismo revolucionário. Pareto vem do liberalismo grande-burguês. Maurras vem da fronda aristocrática. Na realidade, os movimentos que derivam desses três pensadores políticos, não serão nitidamente separados: Sorel influenciou o marxismo bolchevista e o sindicalismo fascista ao mesmo tempo; Pareto influenciou o fascismo italiano e a Ação Francesa; Maurras influenciou todos os nacionalismos contra-revolucionários. Mas suas doutrinas sobre as classes dirigentes do futuro são bem distintas.

Sorel ergue a classe proletária em nação; seu pensamento sensivelmente alterou o marxismo dos bolchevistas, o que explica alguns traços da Constituição Soviética, e, particularmente, o renascimento do nacionalismo russo no seio do bolchevismo. Pareto ergue “a elite”, em nação; este traço se encontra no fascismo italiano que deve suas inclinações capitalistas e a reverência diante da “iniciativa privada” ao pensamento grande-burguês do antigo liberal Maurras, o mais intelectual dos três, substitui a velha aristocracia de suas autoridades Burke e De Maistre pela nova “aristocracia do saber político”, que estabelecerá o nacionalismo da velha França, pré-revolucionária e pré-napoleônica.

Mas, nas realizações, as bases humanas dessas ideologias eram completamente diferentes das que os ideólogos tinham sonhado. A classe vitoriosa, na Rússia, não é “o proletariado heróico, atrevidamente moral” de Sorel, mas um proletariado meio camponês, primitivo, bárbaro. A elite vitoriosa, na Itália, não é uma grande burguesia tonificada, mas uma classe de intelectuais, ameaçada pela proletarização, e que transporta suas inquietudes econômicas e sociais à nação, a “nazione proletaria”. A camada vitoriosa na França não é mais uma aristocracia intelectual, mas uma classe média, sem ideais, que se preocupa apenas com os seus cofres-fortes, suas rendas, seus interesses, e que sacrifica tudo a este pacifismo de rendeiros, tudo e toda a nação enfim.

Sem dúvida a palavra “nacionalismo” mudou de sentido. Destruindo a ligação entre o nacionalismo e a democracia, profundamente alteraram o sentido do termo “nacionalismo”, e é preciso explicar o alcance desta alteração pelo estudo da própria terminologia, pelo estudo do começo de princípio de nacionalidade.

O nacionalismo, na Europa, tem muitas raízes, das quais todas não foram ainda estudadas suficientemente. Há os juristas do rei de França; os professores das universidades alemãs; a evolução, muito notável e pouco estudada, dos “cultos nacionais”, de Santiago de Compostela até São João de Nepomuceno dos Tchecos; existem “movimentos de despertar” dos pietistas, cujo papel no nascimento do nacionalismo foi bem demonstrado pelo americano K. C. Pinson. Existe matéria para um grande livro. É a derivação política, ela somente, que interessa.

A Idade Média não conhece o nacionalismo, pois o nacionalismo foi sempre trazido por uma inteligência, e as nações medievais, enquanto existem, não têm inteligência. A Inteligência da Idade Média é o clero, e o clero é uma instituição supranacional. O clero da Igreja Romana, quer dizer, de todo o Ocidente, está unido pela língua latina; pela consciência histórica das quatro monarquias universais e de sua evolução até o fim do mundo no último julgamento; enfim, pela consciência de uma missão, naturalmente religiosa, realizada pelas Cruzadas. Ora, uma língua comum, uma tradição comum, uma consciência histórica comum, uma consciência de missão comum: são os elementos constitutivos de um nacionalismo; a origem biológica comum data de muito mais tarde e foi precedida, na Idade Média, pela comunidade de religião que se estende, ela também, sobre todos os povos do Ocidente. O Ocidente medieval é uma única nação.

Pela Reforma, esta unidade foi partida. Os pedaços do sentimento comum são divididos entre as nações européias, por fim nitidamente separadas. Carlos V foi o último monarca universal do Ocidente, o último verdadeiro Imperador, e a tentativa de restabelecer a unidade ocidental arruinou a Espanha. Não se pode voltar para trás a roda da história.

As nações são adultas. Mas elas não são ainda maiores; são representadas diante da história por tutores plenipotenciários, os reis. A Reforma é o lado religioso de um acontecimento que tem o seu reverso social: a ruína do feudalismo. Os príncipes, católicos ou reformados, não importa, quebram a força dos feudais e se erguem em monarcas absolutos. Esta evolução, Valeriu Marcu, bem demonstrou, está estreitamente ligada ao nascimento das nacionalidades. Os primeiros pensadores políticos que concebiam o nacionalismo moderno, um Tommaso Campanella, um Gabriel Naudé, são inimigos mortais da monarquia espanhola, e são os publicistas de Richelieu e da corte francesa. Richelieu foi o criador do absolutismo e do nacionalismo ao mesmo tempo; só a Revolução poderá separá-los.

Mas Richelieu é também cardeal da Santa Igreja Romana. A idéia da unidade ocidental não está ainda morta; ela volta pelas tentativas de estabelecer a predominância francesa sobre o continente, da Guerra de Trinta Anos até à guerra da sucessão da Espanha. Nestas guerras, a França que tinha querido herdar o universalismo espanhol, fracassa à maneira espanhola. Embora Richelieu não seja responsável pelos fracassos de seu sucessor Luiz XIV, não é menos verdade que os adversários de Richelieu tenham previsto este fim; um desses adversários, Luis, duque de Rohan, encontra mesmo a solução posterior. No seu livro Do Interesse dos Príncipes e Estados da Cristandade (1638), dedicado a Richelieu, Rohan propõe um “equilíbrio europeu”: “A tranqüilidade e a segurança de todas as nações se baseiam no equilíbrio das mais poderosas entre elas”. Foi à Inglaterra que o destino reservou realizar esta doutrina. Pela Paz de Utrecht em 1714, a Inglaterra estabeleceu o “Concerto das Potências”; desde este tempo, a Inglaterra, árbitro do continente, vela por este “equilíbrio europeu”, para intervir contra cada tentativa de desajustamento. É por isso que a época da predominância inglesa, a era vitoriana, é a idade de ouro do continente.

Até à metade do século XIX, o “Concerto Europeu” era um concerto de gabinetes, de diplomatas. Desde então, ele foi dirigido, ou fortemente influenciado pelos parlamentos e pela opinião pública; tornou-se um equilíbrio das nações. Precisamente neste tempo, onde, no interior dos Estados, o espírito nacional parecia enfraquecer-se, ele atingiu ao máximo de sua eficiência na política exterior. Onde não existem mais questões nacionais à resolver, onde as nações são nitidamente separadas, a guerra parece impossível, entre a França e a Inglaterra, por exemplo; somente, onde muitas nações habitam ainda uma casa comum, a Áustria-Hungria, existe o barril de pólvora da Europa e foi daí que a guerra mundial de 1914 estourou.

Mas a Áustria-Hungria, o Império dos Habsburgos, é o último vestígio do Ocidente medieval, onde a diversidade das nações não impedia absolutamente a comunidade de Estado. As coisas viraram completamente. A unidade, antigamente uma garantia da paz, é então um perigo de guerra; a separação, antigamente sempre perigosa, é agora uma garantia da paz. É aí que reside a obra do nacionalismo europeu, seu senso de política exterior: este equilíbrio das nações que a guerra mundial definitivamente destruiu.

Esta destruição foi precedida pela fronda anti-democrática do novo nacionalismo dos Sorel-Pareto-Maurras: seus pensamentos tornaram-se uma força real, pela questão Dreyfus e após ela, que foi um momento crítico da história: o nacionalismo rompe definitivamente com a democracia. Em lugar do equilíbrio, estes novos nacionalistas exigem movimento; é por isso que eles odeiam o árbitro do equilíbrio, a Inglaterra. É que o novo nacionalismo encarna o nacionalismo em política interior e se revolta contra o nacionalismo em política exterior; até renegar, em face do inimigo, a própria nação.

Agora, é possível definir mais precisamente as consequências da separação entre o nacionalismo e a democracia, separação operada pela fronda do novo nacionalismo. Existe um nacionalismo de sentido político exterior, e existe um nacionalismo de sentido interior, e eles se contradizem. O nacionalismo “exterior” sufoca, pelo seu equilíbrio pacifista, as forças instintivas da nação; o nacionalismo “interior” quebra, pelo seu tradicionalismo impetuoso, o equilíbrio das nações. Era preciso que eles se divorciassem. Eles não falam mais a mesma língua e eles não se entendem mais: o pobre professor e o pobre pastor de Iéna, em volta dos quais a batalha continua, insensível à sua morte e às suas angustias.

Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. O Fim do Nacionalismo In Correio da Manhã, Nº 14.375, Ano XLI, Rio de Janeiro, 14 de Setembro de 1941. (Suplemento, págs. 1–2). Editado por: Pedro G. Segato.

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Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).