Presença de Goethe

Retratos e Leituras
11 min readJul 26, 2016

--

“Desejais” — dizia Benedetto Croce — “fugir da baixa atualidade e ficar sempre atual? Refugiai-vos naquilo que jamais teve atualidade!” Refugio-me em Goethe, e fico surpreendido com a sua presença.

Quarenta e cinco volumes, cheios de poemas, de tragédias, de romances, de contos, de crítica, de filosofia, de ciências naturais, de tudo aquilo quanto existe entre o céu e a terra, e alguma coisa ainda mais. É o maior poeta e o mais universal dos tempos modernos. É o supremo modelo da existência espiritual nestes tempos.

Realmente? Essa estátua impassível seria a expressão de uma vida exemplar? Fogo, entusiasmo, coerência, onde estão nesse revolucionário que acabou ministro de Estado, nesse artista que dedicou metade de sua vida à óptica e aos minerais, nesse apaixonado que representa o papel de deus olímpico? Onde está a coerência nessa multidão de obras, dois terços das quais são completamente falhos? Dessa obra que louvam sempre sem conhecê-la, o que é que ficou? Hesito em responder. Os mais belos poemas da língua alemã, ao lado de mil futilidades em versos inábeis; as Elegias Romanas, única poesia moderna digna da Antiguidade, ao lado de penosas imitações classicistas; a sabedoria sonora do Tasso e da Ifigênia, ao lado de fracas peças históricas; a tempestade juvenil do primeiro Fausto, em face de comédias ridículas pela incapacidade de provocar risos. Desigualdade surpreendente. O Werther, a grande paixão, desfigurado por um sentimentalismo insuportável; os romances de Wilhelm Meister, espécie de suma da civilização humanística, quase ilegíveis por sua técnica de romance antiquada. As Afinidades Eletivas, primeira obra-prima do romance psicológico, de um tédio torturante. Todas as manifestações de um enfadonho classicismo pesam ao lado da sabedoria enternecedora de um velho homem, como nessas Conversações com Eckermann. Enfim, o segundo Fausto, em que Goethe misturou os mistérios mais sublimes a futilidades inexplicáveis; fogo de artifício, onde um grande espírito se dispersa em mil cintilações luminosas. Onde está a unidade de tal obra?

Foram buscar esta unidade na sua vida. Vida admirável, realmente: a plenitude dos seus 82 anos, esta ascensão de um modesto filho de burguês, somente pelas armas do espírito, aos cumes da humanidade; esta purificação de todas as paixões até à soberania de uma individualidade universal. Mas pagou caro. Ainda em vida, Goethe fez de si próprio um monumento. O inverso desse individualismo magnífico é uma impassibilidade desumana. Goethe respirava ainda, e, no entanto, já estava morto.

É o cúmulo da inatualidade. A renúncia à vida mata o espírito. O amador de fósseis torna-se fóssil. Traiu à humanidade, à arte e a si mesmo. Três pontos de acusação que já não permitem subterfúgios.

Goethe, espírito apolítico, egoísta, não compreendeu o maior acontecimento do seu tempo, a Revolução Francesa. Contra ela, colocou-se ao lado das forças feudais, embora intimamente as desprezasse. Assim, traiu o povo, do qual proviera; traiu a humanidade, cujos sofrimentos absolutamente não o preocupavam. Não são unicamente os liberais de outrora que o dizem. São os cristãos que retomam a censura a um humanismo puramente estético, desumano, pelo qual Goethe se transformava em olímpico impassível, acima do formigueiro dos homens desprezados.

Goethe, o artista, não compreendeu o maior acontecimento literário do seu tempo, o romantismo. Depois de ter experimentado, em vão, cativar seus contemporâneos com a fórmula classicista, ele trai a arte, para abraçar as ciências naturais e enriquecê-las com as suas descobertas duvidosas e as suas fantasias arbitrárias.

Goethe, enfim, traiu a humanidade, a arte e a sua própria dignidade humana. Todas três ao mesmo tempo, ao ajoelhar-se diante de Napoleão, ao beijar as mãos daquele que se deveria tornar o modelo de todos os déspotas.

Desde muito cedo, Goethe sabia insustentável o absolutismo do século XVIII, tanto como os nossos conservadores de hoje reconhecem insustentável o atual estado de coisas. A fragilidade do sistema fê-lo profetizar, em 1792, depois da insignificante primeira retirada dos aliados, em Valmy, diante do exército republicano: “Por aí, uma nova época da história começa.” Goethe, porém, não saudava a revolução vitoriosa. “J'aime mieux une injustice qu'un désordre” — disse em 1793, diante da fúria revolucionária em Mainz; e a frase foi muitas vezes comentada no sentido duma terrível indiferença moral; mas, na verdade, Goethe aconselhou, por essas palavras, não punir os crimes dos revoltosos: o humano continuou, para ele, acima do político. O seu conservantismo, inimigo de todas as violências, cuidadoso de “não perturbar o sono do mundo”, para não desencadear as forças desordenadas, é a atitude de um verdadeiro sábio, que não trai, fazendo coro com a política.

Goethe nunca fazia coro, porque ele não conhecia bem o seu papel. Não chegou nunca a um sistema, a um programa: falta preciosa numa época em que os sistemas da ciência servem a programas criminosos. Esta falta preciosa o preservava de todo espírito de partido, de qualquer conformismo, e nisso ele continua exemplar. No fundo dessa independência existe um pessimismo que deriva igualmente do pensamento cristão e do pensamento “filosófico”: a história é “le tableau des crimes et des malheurs de l'humanité”. Diante da tormenta ele se mostra cético: o mundo perdeu a cabeça, porém Goethe deseja conservar a sua. Há nisso, subterraneamente, uma filosofia da história que se aproxima da dialética do seu amigo Hegel: os transtornos históricos são apenas passagens inevitáveis. Isto explica uma certa indiferença em face das catástrofes exteriores; depois do desmembramento da Alemanha por Napoleão, Goethe não lastima a queda do Império, porém saúda o novo reino do espírito alemão; e, com efeito, nesse momento de humilhação, o Império universal de Goethe e de Hegel começa. Goethe aprova o caos exterior, para salvar a liberdade do espírito. Esta sabedoria não é, decerto, uma sabedoria política. É, porém, a única arma do espírito contra essa política que Napoleão dizia ser o destino da época moderna, contra a política total. Em lugar da sabedoria apolítica, dir-se-ia melhor sabedoria suprapolítica, que defende a independência, a sinceridade, a liberdade da criatura humana. Aceitando a luta no terreno inimigo, no terreno político, sucumbir-se-ia certamente; mas o inimigo não destruirá jamais a catedral invisível do espírito.

Tal atitude é sempre uma atitude contra a época. E Goethe é um homem contra a sua época. O individualismo da Renascença atinge, nele, o seu apogeu, enquanto uma nova era começa. O capitalismo quebrará as formas orgânicas da sociedade, para dar lugar às multidões proletarizadas; a personalidade bem formada cede lugar à massa impessoal. Goethe o previu: “Tudo, meu caro” — escreve ele em 1825, ao seu amigo Zelter — “tudo se tornou radical; o mundo somente admira a riqueza e a velocidade. Somos os últimos de uma época que não voltará nunca.” Em 1831, Hegel morreu, e em 1832, Goethe; em 1830, pela revolução de julho, começara a época do liberalismo, do comércio e do jornalismo. Um século mais tarde, as massas derrubarão a burguesia que as criou. Assistimos ao último ato da tragédia comovidos com a catástrofe que ameaça devorar-nos, surpreendidos com a pergunta que a história nos dirige.

Para esta pergunta Goethe não tem resposta. Não a tem porque isso não é da competência do artista: as soluções são sempre fáceis e valem o que valem. É que a sua existência privada, não menos comovida que a nossa, se baseava, como a nossa, nas hesitações duma época de transição. Goethe é filho da burguesia, não da nova burguesia capitalista, e sim da velha burguesia medieval, ele, o filho da cidade livre de Frankfurt e das suas liberdades medievais. Ele não pode arvorar-se em paladino de uma revolução que o supera; continua o embaixador de uma burguesia ainda idealista, junto aos poderes feudais, aos quais está ligado pelo respeito as tradições. Quebrai as tradições; e tudo desabará. Negai a revolução; ela vos devorará. É um beco sem saída? Não, é a dialética, sempre renovada, da história. Naquela época, ela se impõe. Hegel, o filósofo, dominou-a. Goethe, o poeta, era incapaz de transfigurá-la em arte: supremo testemunho de sua sinceridade. Em 1795, ele experimenta, em vão, transformar em poesia a catástrofe. Essas obras falidas marcam o fim da sua existência literária. Deixa a história humana, tornada desumana; refugia-se na história natural.

A natureza é o seu asilo misericordioso. A grande invocação — “Natureza, minha mãe sublime” — no Fausto, é escrita enquanto Napoleão conquista a Itália. A Natureza, com maiúscula, o Macrocosmo, paira muito alto, muito acima do formigueiro humano e das suas convulsões, que são, no Universo, sem importância. Quanto mais o homem se purifica das suas paixões banais, quanto mais se eleva acima dessas perturbações, tanto mais autorizado se acha ele a participar da tranqüilidade do Universo. Esta participação é possível porque a criatura, o microcosmo, é a imagem do Macrocosmo. Uma grande lei impera, e une todos os membros do organismo Natureza: a lei da analogia. Na linha da analogia, os seres evolucionam em metamorfoses perpétuas: metamorfoses gerais das espécies; metamorfoses individuais que vão do nascimento, através das polaridades de toda existência viva, à morte, que prepara uma nova metamorfose da vida.

Esta concepção da natureza envolve admiravelmente a vida; mas fracassa diante dos fenômenos da natureza inanimada. A “metamorfose das plantas” e a formação do crânio pela metamorfose das vértebras superiores, duas descobertas de Goethe, ficaram como base da botânica e da anatomia comparada. Mas na óptica, Goethe não sabe distinguir o lado físico do lado fisiológico do fenômeno “cor”; perde-se em polêmicas estéreis contra a ciência matemática de Newton, e cria uma ciência das cores que ele acredita ser a obra principal da sua vida e que a posteridade unanimemente rejeitou: o futuro era da matemática. A mesma posteridade fez, da metamorfose goetheana, a evolução darwiniana, da qual chamaram a Goethe o precursor. Mas Goethe não era precursor. Ele era refratário. No limiar da época das ciências naturais, ao serviço da técnica, Goethe é o último paladino de uma outra ciência da natureza, orgânica e desinteressada. Macrocosmo e microcosmo, analogia, metamorfose: são princípios da ciência natural da Renascença e da Antiguidade, de Bruno e de Plotino. Como Giordano Bruno e Leonardo, Goethe é naturalista e artista ao mesmo tempo; ele não separa as ciências naturais e as artes. De todas as lições goetheanas, esta é, talvez, a maior. O abismo entre a arte e a vida existe sempre; o falso idealismo abjeto e o falso naturalismo tendencioso são igualmente enganadores; ambos, subterfúgios de um esteticismo que trai a vida e a arte ao mesmo tempo. É a mentira. Mas onde colocar a arte, que está além desse mundo e lhe fica sempre ligada, demasiado ligada? Unicamente num mundo que é bem nosso, e no entanto superior: a Natureza. Goethe reconcilia a arte com a vida, reduzindo-as à Natureza, que jamais mente.

Esta imersão na Natureza é verdadeiramente romântica. Com efeito, Plotino e Bruno são os mestres do romantismo; Novalis e Schelling respiram na filosofia do Macrocosmo e do microcosmo, nos conceitos da analogia e da polaridade. O romantismo, que Goethe desejava afastar da poesia, este romantismo volta vitoriosamente na filosofia goetheana da Natureza; e é aí que ele está bem no seu lugar. Um romantismo puramente literário torna-se superficial e será amanhã um classicismo renovado. Outro romantismo, verdadeira redenção das forças humanas, prepara nossa redenção das cadeias da ciência natural a serviço da técnica, devolvendo-nos à Mãe, à Natureza.

Para Goethe o fim das ciências naturais não é servir ao homem pela técnica; o estudo da Natureza, segundo Goethe, deve fazer do homem um ser consciente de si mesmo, dar-lhe um coração puro, em harmonia com o Universo. Esta ciência da Natureza é quase uma religião. Para Goethe, o humanista, a Natureza tornou-se um templo, o templo que o Apóstolo encontrara em Atenas, dedicado “Ao Deus desconhecido”. Houve, no templo científico, naturalista, de Goethe, a inscrição bem humanística, as palavras de Heráclito que Aristóteles nos transmitiu: “Introite, nam et hic dii sunt.” E Goethe assemelha-se a esses sacerdotes da Antiguidade primitiva, que eram ao mesmo tempo, servidores do templo e conhecedores dos mistérios da Natureza.

O que une, para Goethe, a arte à Natureza, é a sua inutilidade sublime. A criatura, obra da Natureza, é perfeita em si mesma, como a obra de arte; a arte alcança sempre a finalidade que não tem. Esta inutilidade sublime, este desinteresse completo do espírito, esta “religião da cultura espiritual”, é o núcleo da “cultura goetheana”, ideal da mais alta inatualidade. Foi o que tornou a Goethe solitário durante a sua vida; foi o que fez o século abandoná-lo; é o que o torna exemplar para os nossos dias. “Cultura goetheana” é uma concepção bem sem atualidade, mas que continua sempre presente.

É uma religião da qual era Goethe o sumo pontífice. Nunca um grande homem foi tão consciente do seu papel: ser príncipe no reino do espírito. Realmente ele assemelhou a sua vida à de um olímpico. Mas os contemporâneos, como a própria posteridade, acreditavam-no um déspota.

Tinham esquecido o que este déspota havia realizado: uma obra de libertação. Ele se fez chefe da revolução pré-romântica, e depois de ter afastado os falsos deuses do racionalismo petrificado, dominou as forças desencadeadas, para instituir o Cosmos de uma nova harmonia entre o homem e a Natureza, sob a regência da arte.

Essa vida tem apenas um rival: a vida do homem que se constituiu chefe da revolução, e que, depois de ter expulsado as forças do passado, instituiu a harmonia de uma nova época; época que só foi vitoriosa depois que deixaram de julgar déspota o seu autor. É a vida de Napoleão.

Bonaparte teve a intuição deste parentesco; encontrando Goethe, dirigiu-lhe a maior das suas palavras: “Eis um homem!” Goethe também possuía a consciência clara desse parentesco: ele teve mais do que admiração a Napoleão, ele o amou. É admirável, porém, como soube subtrai-se ao imperador deste mundo. Goethe é o clérigo que não trai, não serve. Goethe vê em Napoleão o lado noturno, demoníaco da sua própria existência olímpica. Napoleão era, aos olhos de Goethe, a encarnação de um demônio. Mas a expressão “demônio” tem, na linguagem de Goethe, uma significação especial, a mesma que para Sócrates. O demônio de Goethe é o lado perigoso do espírito, mas sempre necessário no movimento dialético da história. Era preciso que Goethe atingisse a idade do salmista para saber exprimir esta suprema sabedoria, a sabedoria do seu poema Cinco Palavras Órficas. Uma sabedoria que nos está bem presente.

As cinco forças primordiais deste mundo são: Demônio, a força interior do homem; Natureza, a força do Universo; Tyche, a força das contingências que nos cercam e movimentam; Ananke, a força da necessidade que nos rege; e Elpis. A Tyche se opõe a Natureza: a criação perde a inocência do primeiro dia e torna-se o motivo da nossa dor. O homem se opõe a Tyche; o demônio, em nós, é mais forte do que as contingências, e transforma o mundo; o homem domina a Natureza e transforma Tyche em ordem humana, Ananke. Ananke domina ao Demônio: é necessário que o homem se curve. Desde então, somos os prisioneiros da necessidade que criamos. Mas existe ainda, em nós, um resto do Demônio, resto do paraíso perdido e promessa de liberdade: é nossa última deusa, Elpis, a Esperança.

« Anterior Próximo »

Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos 1942-1978, Volume I, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa. Rio de Janeiro, UniverCidade Editora/Topbooks, 1999. (p. 86-91). Editado por: Pedro G. Segato.

--

--

Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).