Sobre as Irmãs Brontë

Retratos e Leituras
6 min readMay 10, 2017

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De início, a imagem da família Brontë foi deformada pelo entusiasmo enfático. Nos elogios de Swinburne, comparando Wuthering Heights com a Duchess of Malfi de John Webster e outras tragédias de “horror infernal” de época elisabetano-jacobéia, ainda havia, como se revelará, uma intuição segura. Depois vieram, porém, outros críticos, de informação deficiente; ligaram o fenômeno das irmãs Brontë aos poucos outros fenômenos literários ingleses que conheciam, interpretando uma frase de Charlotte Brontë, no prefácio de Wuthering Heights, como adesão ao “culto do gênio” de Carlyle. Aplicaram o mesmo “culto do gênio” às próprias irmãs, preconizando o estudo puramente biográfico: com respeito ao livro bastante divulgado de Robert de Traz, La Famille Brontë, celebrou-se justamente o que o crítico devia evitar — a confusão entre os valores muito diferentes de Charlotte e Emily, confusão que se justifica biograficamente mas não literariamente. Deste modo, ficou sem solução o problema em face do qual o “caso Brontë” nos coloca: de onde veio às filhas do vigário de Haworth, meninas pouco experimentadas, a profunda experiência vital que criou aqueles romances?

Com respeito a Charlotte, não foi difícil verificar alguns fatos: em Jane Eyre explorara as experiências duras da sua meninice na Escola para Filhas do Clero Anglicano, em Cowan Bridge; e, em 1913, publicaram-se as quatro cartas de amor, bem estranhas, que dirigiu ao professor Constantin Héger, em cujo educandário em Bruxelas ela servira como professora — seriam o germe do romance Villette. Quanto a Emily, só se aventurou a hipótese dela ter identificado o irmão Branwell com os heróis de Byron com os quais sonhara. Explicava-se assim o elemento sentimental, vitoriano, dickensiano nos romances das irmãs, justamente o que tem valor apenas secundário. No resto, responsabilizaram-se certos tratados de propaganda sectária, metodista, bastante fantásticos, que um tio teria trazido para Haworth, como fonte do elemento fantástico nos romances. E foi tudo. Não se dava importância a outra frase de Charlotte, naquele prefácio de Wuthering Heights: “…nenhum outro modelo do que a visão dos seus pensamentos”. Aí está, no entanto, a solução do problema.

Estudos recentes, ainda pouco divulgados — só Edward Wagenknecht deu-lhes a importância devida — constituem confirmação surpreendente daquela frase. Em 1941, Fannie E. Ratchford (The Brontë’s Web of Childhood, Columbia University Press, Nova York) decifrou e publicou os manuscritos das irmãs, redigidos na infância; e, no mesmo ano de 1941, C. W. Hatfield editou as poesias completas de Emily, comentando-as por meio de indícios encontrados na mesma fonte.

Em 1826, o vigário de Haworth deu de presente aos filhos um brinquedo: soldadinhos de madeira. E em 1829, quando Charlotte tinha 13 e Emily 11 anos de idade, começaram a inventar um romance volumoso em torno do brinquedo, servindo-se da colaboração ocasional da pequena Anne e do irmão Branwell. Imaginaram um reino fantástico de Angria, situado no centro da África, lugar de acontecimentos extraordinários, violentos e até escabrosos. Anotaram tudo isso em cadernos, empregando letras minúsculas por medo de serem surpreendidos pelos adultos, de modo que Miss Ratchford precisava de lentes fortes para decifrar, mais de um século depois, a história de Angria. Em 1831, Charlotte foi embora para outra escola, e Emily e Anne, rebelando-se contra a intervenção de Branwell em Angria, evadiram-se da África, fundando o novo reino de Gondal numa ilha do Pacífico. Os Gondal Papers perderam-se; mas Hatfield foi capaz de reconstruí-los, aproximadamente, encontrando-lhes os vestígios nas poesias de Emily.

O reino de Angria sobrevive nos romances de Charlotte Brontë, que nunca esteve em Gondal. Mas havia duas almas em Charlotte: a sonhadora de Angria e uma romancista vitoriana, bastante medíocre, sentimental e timidamente realista, baseando-se em experiências inglesas e belgas que não sabia transfigurar porque a pátria da sua alma ficava fora da Inglaterra e Bélgica: em Angria. No seu primeiro romance, The Professor, publicado só postumamente, baseou-se realmente nas experiências com o professor Héger; e é um romance muito fraco. Em Jane Eyre, primeiro romance publicado pela autora, tudo o que se refere às experiências na escola de Cowan Bridge é fraco, dum sentimentalismo hoje insuportável; foi justamente isso o que encantou os leitores vitorianos, que se assustaram com o herói devasso Rochester. Este não é outra pessoa senão Zamorna, um dos protagonistas da história de Angria, assim como a sua mulher louca estava preconcebida, lá, como Lady Zenobia. Charlotte Brontë, algo desconcertada pelas críticas contraditórias de sua obra de estréia, pretendeu depois, em Shirley, escrever um romance realista, à maneira de Dickens, com alusões à questão social e outras coisas das quais a autora não entendia nada. Salva-se o romance, em parte, porque os personagens centrais e o enredo são, outra vez, de origem angriana. Enfim, na sua última obra, Villette, Charlotte Brontë voltou às experiências de Bruxelas e outras, posteriores, com seu editor — mas tudo já estava prefigurado nos acontecimentos em Verdropolis, capital da Angria, e a fusão de elementos realistas e elementos fantásticos deu, desta vez, a obra-prima.

Contudo, Charlotte Brontë não é uma romancista de primeira ordem; não escreveu uma obra com Wuthering Heights. A diferença entre Charlotte e Emily reside, no entanto, menos nos valores imaginativos — comuns das irmãs — do que na perturbação desses valores na mente de Charlotte pelas imposições do realismo contemporâneo, do qual Emily não tomou conhecimento; assim como a ela faltavam as experiências de Charlotte no estrangeiro. Wuthering Heights, mero produto da imaginação, teria sido então mistura de reminiscências de um byronismo atrasado com conceitos de Carlyle. Na verdade, Wuthering Heights, obra intensamente original, é uma dramatização do romance de Gondal concebido 20 anos antes de Carlyle formular a teoria do hero-worship e num tempo em que mocinhas inglesas de 13 anos ignoravam o nome de Byron. E foi intencionalmente escolhido o termo “dramatização”, porque C. P. Sanger, no seu livro sobre The Structure of Wuthering Heights (Londres, 1926), já verificara que o romance não é produto de um gênio meio inconsciente e sim uma composição perfeitamente deliberada, de estrutura e qualidades típicas do grande teatro trágico.

O resultado das novas investigações em torno das irmãs Brontë é de interesse geral. Está, mais uma vez, refutada a noção ingênua de uma relação imediata entre os dados biográficos e as realizações artísticas. No caso particular das Brontë, o problema das “fontes vitais” perde a importância; é substituído pelo problema mais geral, do clima literário em que aquelas obras nasceram.

Tratou desse clima, recentemente, John Heath-Stubbs, num ensaio sobre a decadência do romantismo inglês, por volta de 1830, quando Wordsworth e Coleridge já emudeceram, Byron, Shelley e Keats estavam desaparecidos, e o neo-romantismo de Carlyle e dos pré-rafaelistas ainda não surgira. Heath-Stubbs chama a atenção para o romantismo recalcado — muito semelhante ao de Angria e Gondal — nos poemas narrativos do esquecido George Darley, que sobreviveu só como editor de dramas da época elisabetana; e aproxima Darley do dramaturgo lírico Beddoes, poète maudit, boêmio, homossexual, suicida, autor de “tragédias de horror” em estilo elisabetano-jacobeu, hoje novamente apreciados. Darley e Beddoes são contemporâneos, exatamente, das irmãs Brontë, e a fonte comum de todas essas obras do pós-romantismo inglês encontra-se na teoria e prática poética de Coleridge. Quanto mais passa o tempo, tanto mais Coleridge se revela como a figura mais poderosa da literatura inglesa do século XIX. O esforço da sua vida — enquanto se pode falar de esforço e propósito desse gênio abúlico que não se realizou — foi o esclarecimento da técnica dramatúrgica de Shakespeare e dos outros elisabetanos, cujas obras ele interpretou como mundos trágicos, autônomos, independentes do mundo da realidade cotidiana. Beddoes tentava imitar a própria forma dramática daquelas criações — mas já não havia teatro na Inglaterra. As irmãs Brontë realizaram a mesma intenção na forma moderna do romance: Charlotte permitindo intervenções do mundo real que lhe prejudicaram a obra; Emily criando a mais pura tragédia elisabetana do século XIX, dramatizando a história do reino de Gondal.

Em Gondal, Coleridge estava em casa. Tinha avistado regiões semelhantes quando, em pleno dia, sonhava o Oriente fantástico de Kubla Khan. Sabe-se que este poema, um dos maiores em língua inglesa, ficou inacabado; dizem que uma pessoa qualquer, um alfaiate pedindo pagamento da nota, entrou no quarto, de modo que o poeta acordou, não se lembrando nunca mais da continuação do poema.

Aquele alfaiate deve ter sido o próprio diabo da prosa: entrou, deste modo, na história da poesia. Mas tem tanto — quer dizer, nada — com a poesia como não tem nada com a obra das irmãs Brontë a história de sua vida.

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Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos — 1946–1971 — Volume II. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 2005. (p. 65–69). Editado por: Pedro G. Segato.

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Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).