Um Enigma Shakespeareano

Retratos e Leituras
15 min readMar 15, 2017

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Censura-se muitas vezes à jovem ciência da literatura comparada o valor puramente histórico e pouco interpretativo dos seus estudos. O método do grande crítico e maior poeta inglês, T. S. Eliot, escapa a estas censuras: “Método maravilhoso que encara, em conjunto, toda a literatura universal, e que compara as obras de diversos povos em diversas épocas, sem consideração de pretendidas relações históricas, para tirar conclusões gerais” (Edmund Wilson). Devemos a este método a redescoberta das poesias barrocas espanhola e inglesa. Eliot é inimitável. Contudo, pode-se imaginar um método análogo, aplicado para resolver certos problemas de crítica, para explicar a profunda emoção que emana de certas obras, em aparência menos bem-sucedidas. Obras que fazem pressentir a presença escondida, oculta, duma força misteriosa atrás da superfície, como os contos de Franz Kafka; ou como aquela comédia Measure for Measure (“Medida por Medida”), de Shakespeare: um enredo, banal ou esquisito segundo o ponto de vista, escondendo uma arrière-pensée metafísica, explicável só pela comparação, sem consideração de relações históricas, com obras com as quais nunca foi comparada.

Quase nunca Shakespeare inventava os argumentos das suas peças. Contentava-se em dramatizar contos ou então retocar velhas peças, com ligeiras modificações. Num conto medíocre do escritor George Whetstone achou assunto para transfigurá-lo no mundo completo, maravilhoso, enigmático, de Medida por Medida.

O Duque de Viena, reconhecendo que, sob o seu reino indulgente, as leis caíam em desuso e se aproximava a anarquia moral, resolve abandonar por algum tempo o país e confiar o governo ao seu conselheiro Ângelo, homem conceituado pela austeridade e inflexibilidade. Porém, ao mesmo tempo, o Duque dispôs-se a voltar clandestinamente a Viena, disfarçado num simples monge, frei Ludovico, para observar a conduta de Ângelo. Ângelo é um puritano. Indignado com os excessos de imoralidade que davam à cidade uma atmosfera pesada, e estando de posse de plenos poderes, renova uma velha lei que proibia, sob pena de morte, todas as ligações ilegítimas. A cidade, cheia de devassos, de alcoviteiros, de casas de tolerância, fica a princípio aterrada. Mas logo depois todos se acalmaram, habituados como estavam às leis que não eram cumpridas. A vida alegre continua, e o irônico Lúcio, que acompanha a ação com raciocínios maliciosos, faz toda a cidade rir das determinações do casto Ângelo. Mas Ângelo não deixará que ninguém se ria, pois cumpre o prometido. E a sua primeira vítima é um jovem fidalgo, Cláudio, que seduzira, antes do casamento, a própria noiva, sendo condenado à morte pelas mãos do carrasco. O terror paralisa a cidade. Cláudio treme, em transes mortais. Frei Ludovico oferece-lhe o consolo da religião, dizendo-lhe que a nossa vida é um sonho confuso e a morte uma libertação. Tudo debalde, porém. Em pleno desespero, Cláudio implora a sua irmã Isabel a clemência de Ângelo. Entre todas as deliciosas figuras femininas shakespeareanas, Isabel é a mais admirável. Sua alma é uma encarnação de pura poesia. Ela está resolvida a entrar num convento e dentro de pouco tempo deverá conquistar o céu. Desde já evita o mundo. Mas o desespero do irmão a comoveu, embora lhe condenasse a depravação. Isabel vai ao palácio do governador. Eloqüentemente, lembra a Ângelo que o perdão é a justiça suprema; sem o perdão a lei do Estado abateria o homem e a sua fraqueza. Para Isabel, como para sua irmã, Pórcia, no Mercador de Veneza, “o perdão é um atributo de Deus”, e a futura religiosa arrisca mesmo a leve alusão teológica de que “o perdão é a virtude do homem, regenerado pela graça divina”. Ângelo fica sensibilizado e confuso ante a eloqüência da jovem — e ante a sua beleza. Num só momento funesto toda a orgulhosa virtude do puritano se desmorona! Perdoará a Cláudio — se Isabel se render! Apesar de todas as conjurações desesperadas de Cláudio, cujo desespero não recua diante da infâmia, Isabel guardará a sua pureza — e sacrificará o irmão. Um ar abafado de tempestade, um ar dostoievskiano, pesa sobre a cena na prisão noturna à espera da alvorada da execução. “Mas” — diz Frei Ludovico, o Duque disfarçado, ao carcereiro — “vede a estrela da manhã; não vos admireis demasiadamente de como tudo isto se encadeia; todas as dificuldades se tornam leves quando são reconhecidas.” O nó da tragédia parecia inextricável, mas o Duque já tinha imaginado um plano engenhoso que afugentaria os fantasmas noturnos.

Em lugar de Isabel, levaram, a fim de satisfazer os desejos de Ângelo, a sua própria noiva Mariana, que ele já tinha abandonado, alegando falsos escrúpulos morais. No outro dia, Ângelo falta com a palavra: para apagar os traços do seu crime, ordena a execução imediata de Cláudio. Um simples monge, frei Ludovico, ousa levantar-se contra as mais altas autoridades. Os sargentos agarram-no e o difamador Lúcio arranca-lhe o capuz — e todos reconhecem o Duque. “Medida por Medida” — são as terríveis palavras que ele lança ao pérfido governador. Ângelo ajoelha-se e espera a morte. Mas chegou o dia do perdão, daquela graça que Isabel proclamara como a única salvação do Estado corrompido. À exceção do malicioso Lúcio, que deverá expiar as suas insolências, todos são logo perdoados. E Isabel não entrará para o convento. Ao lado do Duque ela reinará sobre Viena, velando como um verdadeiro anjo a cidade que já não se perderá.

Medida por Medida é uma tragédia política. Assistimos à educação de três homens para a verdadeira vida pública: Ângelo saberá quanto é profunda a fragilidade humana e a injustiça das leis inflexíveis; Isabel saberá que a sua virtude se torna mais necessária no mundo que no convento; o Duque aprenderá que, em vez de indulgência e contemplação, é necessário atividade e clemência. Assunto desta educação humana é o Estado. Medida por Medida é uma tragédia política: o problema é o abuso do poder, a maior tentação dos poderosos; o problema da responsabilidade que a força impõe aos governos, verdadeiras vítimas dos seus plenos poderes. Este problema é representado na peça por um eterno conflito da vida pública, o choque inevitável entre a ordem jurídica do Estado e a ordem vital da sexualidade. O símbolo dramático deste choque é uma lei impossível, inaplicável, mesmo no Estado de um déspota oriental, lei que nunca houve e que nunca haverá. Uma lei impossível! Verdadeiramente, não estamos, em Medida por Medida, num mundo de realidades. Em toda a peça há uma atmosfera irreal, feérica; a boa fada é o Duque disfarçado, reconhecível somente por nós, os espectadores, e por cuja presença nós sabemos a todo momento “como tudo isso se encadeia, e todas as dificuldades se tornam leves quando são reconhecidas”.

Essa atmosfera de irrealidade é um grave erro contra a veracidade dramática. Mas Shakespeare assim o quis. Pouco modificou a ação de sua fonte, o conto de Whetstone, mas as raras modificações indicam uma direção certa: Ângelo, governador da província, segundo Whetstone, é transformado em lugar-tenente, instalado por tempo determinado, e esta limitação temporária do seu poder nos faz levar a ação ainda menos a sério. No conto de Whetstone, Isabel entrega-se realmente a Ângelo; em Shakespeare, que inventou uma noiva de Ângelo, ela é salva por uma intriga engenhosa, impossível na realidade, e engenhosa demais para uma tragédia. Mas será Medida por Medida uma tragédia? Eis a modificação mais profunda do argumento, e que nos propõe o enigma desta peça: Medida por Medida é uma comédia! O hábito de Shakespeare de misturar as cenas trágicas com as cômicas aí é quase insuportável. Toda a peça está cheia de repugnantes cenas de bordel; um espesso nevoeiro de sensualismo animal e sujo que faz suster a respiração aos espectadores. A intriga pela qual a pureza de Isabel é salva dá a impressão de uma farsa obscena. O fim da peça, no qual todos os vícios e crimes são perdoados e somente o inofensivo Lúcio é castigado, este fim é uma sátira gritante contra o título Medida por Medida. Devemos rir, devemos chorar? A impressão final é altamente desagradável. Por isso, a peça é raramente representada. A maior parte dos críticos estão de acordo: uma obra-prima falhada.

Diante de uma peça de Shakespeare, somente o espectador ou o crítico podem fracassar. Talvez não tenhamos compreendido porque o poeta encerrou uma tragédia numa comédia. Experimentemos separar os elementos, comparando-os a obras do mesmo gênero, onde o mesmo assunto aparece em pura tragédia ou em pura comédia. Este método comparativo nos abrirá talvez o pensamento secreto do mais incompreendido dos poetas.

A comédia é O Revisor, de Nicolai Gogol. A cena se passa sob o reino do tzar Nicolau I, chefe despótico de uma burocracia totalmente corrompida; e numa pequena cidade do interior da Rússia, a centenas de milhas da capital. O prefeito julga-se praticamente independente. “Que nos importa” — diz ele — “a Europa ou a opinião pública? Da nossa cidade a Moscou a diligência leva quinze dias, e depois ainda estaremos muito longe da Europa!” Isto enquanto o “revisor”, o temível inspetor do tzar, não aparece. Tudo está em ordem: o prefeito só tem a velar para que “nenhum funcionário roube acima dos seus direitos legítimos”. Um dia, porém, o revisor aparece. Na verdade, é o jovem velhaco Chlestakov, que, crivado de dívidas, fugiu para a província e se vê acolhido, com surpresa sua, com as maiores honras. Chlestakov reconhece, no mesmo instante, a situação, e tira partido das aflições dos burocratas culpados para satisfazer a sua fome, conseguir refeições cuidadas e aventuras fáceis. Oferecem-lhe banquetes, jovens belas, e dinheiro, sempre dinheiro. Chega a estabelecer uma tarifa fixa, segundo a classe dos funcionários, que pagam gemendo. Cada dia, Chlestakov torna-se mais insolente, chega até a arrancar ao prefeito um suspiro: “Ah! Se eu só soubesse exatamente os poderes de que ele está munido!” Logo saberá. Chlestakov compreende quanto o seu posto é temporário, por isso, faz o que pode, e um belo dia desaparece, deixando uma carta onde tudo fica explicado. Os burocratas da cidade formam em volta do prefeito um grupo estupefato, quando de repente, em grande uniforme, fazendo tinir o sabre, aparece o revisor, o verdadeiro revisor do tzar, para fazer a grande revisão e julgar severamente: medida por medida.

A tragédia é o Príncipe Frederico de Homburgo, de Heinrich von Kleist. O verdadeiro herói da peça é o Grande Eleitor Frederico Guilherme de Brandeburgo, o fundador do poder prussiano. O príncipe de Homburgo é general do seu exército e noivo de sua sobrinha Natália. Na batalha decisiva contra os suecos, batalha que tornará a Prússia uma grande potência, a vitória estava duvidosa, mas o príncipe alcança-a com um ataque pelo flanco, justamente o que havia sido formalmente proibido pelo Eleitor. Por isso, o príncipe é culpado de insubordinação e, de acordo com as leis marciais prussianas, deverá morrer. O Grande Eleitor é o primeiro servidor do seu Estado. Sabe que a existência do Estado depende da inflexibilidade e da imparcialidade da lei. Confirma, então, a sentença da corte marcial. Daí por diante a tragédia, que se vinha desenrolando com uma grandiosidade romana, toma novo rumo. O príncipe, que desafia a morte em inúmeras batalhas, começa a tremer lamentavelmente, como o seu primo shakespeareano Cláudio. Suplica a sua noiva que procure enternecer o terrível soberano e dele obter o perdão: em vão. Em vão os oficiais do mais leal dos exércitos revoltam-se e ameaçam o Eleitor de uma revolução a fim de salvar o amado general. É preciso que fique de pé a justiça. A lei é a lei. Mas o perdão é o perdão. O coração do soberano está com os oficiais. Ele sabe que o príncipe está inocente, mesmo no sentido mais estrito da lei: Homburgo sofre de ataques de sonambulismo e em tal confusão não ouviu a proibição do ataque, e deu a ordem fatal, porém muito feliz. Todavia o destino do Estado não deve depender de uma intuição, se bem que as conseqüências tenham sido felizes. É preciso consciência clara, e para educar o príncipe no cumprimento consciente dos seus deveres o Eleitor deixa subsistir-lhe até o último momento a angústia ante a sentença de morte, embora o perdão já esteja assinado. Enfim o soberano e o seu exército se encontram novamente e juntos gritam: “Abaixo os inimigos de Brandeburgo!”; grito que acompanhará este exército numa série interminável de vitórias.

O Revisor é a mais brilhante comédia social que existe, uma comédia desesperada. O Príncipe Frederico de Homburgo é uma grande tragédia política, sem o trágico. Entretanto, são duas grandes obras falhadas, porque os autores queriam escrever obras inteiramente diferentes das que escreveram. O problema dessas criações é de profunda existencialidade. As aparências políticas das duas peças assentam em fundamentos religiosos; a representação dramática provém do interior das almas profundamente angustiadas dos seus autores. Do homem Shakespeare não sabemos quase nada. Mas conhecemos Gogol e Kleist, de perto, por estudos de Simon Frank e de Friedrich Braig. Atrás da comédia social do russo e do drama político do prussiano há uma grande inquietação religiosa e duas tragédias humanas.

Gogol amou e odiou a Rússia, ao mesmo tempo. Como Dostoiévski, ele era um fanático da Igreja ortodoxa e do tzar autocrata. Incapaz, porém, de iludir-se, via na Rússia a realidade infernal. O seu romance humorístico Almas Mortas é a epopéia dantesca da Rússia tzarista. O herói da comédia O Revisor é o príncipe do inferno, o Anticristo. O mundo oriental pensa por parábolas, e O Revisor é um apólogo, quadro simbólico da humanidade que acredita em Deus, tão infinitamente longe — “a quinze dias de diligência, Moscou” — e se acha com o direito de classificar os vícios segundo as ordens burocráticas — “nenhum acima dos seus direitos legítimos” ao pecado. Este mundo está bastante cego para não tomar o falso revisor pelo verdadeiro, o Anticristo pelo Cristo. O elemento trágico da comédia é representado pelo problema do abuso do poder, o problema da Medida por Medida. Somente Gogol, como o seu prefeito, não sabia “os poderes de que ele está munido”. Não sabiam qual o poder que o verdadeiro revisor havia concedido, talvez, ao falso; e talvez fosse o próprio revisor do próprio tzar também um falso revisor, em relação ao verdadeiro revisor celeste. É o ponto em que a religião e a política, no sentido mais alto da palavra, vêm a chocar-se. Gogol não sabia, mas queria saber, que quantidade de injustiças e de crimes é permitida a um mundo que se chama, a si próprio, de cristão. Na aparência, O Revisor fracassou por esta dúvida: a tragédia da humanidade desapareceu atrás da comédia burocrática. Na verdade, a tragédia demoníaca é sempre cômica. Em O Revisor trata-se de pequenos funcionários, é verdade. Mas aos monges da Tebaida, que eram entendidos nisso, os demônios apareciam como nuvens de insetos, e Gogol é o maior demonólogo da literatura universal. O seu O Revisor, concebido como tragédia, é uma pura comédia, porque o diabo lhe aparecia sempre como uma personagem cômica; enfim o ar em que o poeta vivia se apresentava tão cheio de pequenos demônios que ele não podia mais respirar. “Cidadãos” — escrevia ele em 1846 — “tenho medo! Desses insetos nascem monstros gigantescos, que nos devorarão.” O fim foi a loucura religiosa e a morte voluntária.

O Príncipe Frederico de Homburgo foi escrito quando a Prússia, humilhada, se curvava perante Napoleão. Kleist via a única salvação do seu país num homem de Estado verdadeiramente cristão, e imaginou como tal o seu Grande Eleitor. Mas a salvação é impossível sem a violência, e Kleist, cristão sem o saber, que conhecia toda a fragilidade da natureza humana, era incapaz de criar um verdadeiro herói que fosse ao mesmo tempo um verdadeiro cristão. Eis porque ele criou um supercristão. Elevou os poderes do Grande Eleitor até torná-lo um semideus. Kleist estava possuído do problema dos “plenos poderes”, do problema de Medida por Medida. Vacilava entre o grito de vingança sem escrúpulos da Batalha de Armínio (“Matai-os, o julgamento da história não vos pede justificativa”) e a intriga torturante da sua comédia A Bilha Quebrada, na qual um juiz culpado tem de julgar o seu próprio crime. É o ponto em que a religião e a política se chocam, e no sentido mais alto da palavra: Kleist, espírito cristão sem o saber, queria evocar na política, e representar na cena, homens independentes, livres, heróis trágicos, enquanto sabia os homens fracos, frágeis, presos às confusões dos seus subconscientes; eis porque o sonambulismo o interessava fortemente e a “purificação das consciências” o ocupava; eis porque o espetáculo da mais perfeita inconsciência o perseguia, o espetáculo das marionnettes, auge do cômico, na sua opinião. Para evitar a comédia, a todo custo, ele queria criar a tragédia pura, mas a estragava pela fraqueza tão humana do seu príncipe, que tremia em face da morte. Daí estar excluída a tragédia pura. A intriga artificial do sonambulismo, a falsa bondade do Eleitor já não salvam a peça, comédia disfarçada em tragédia, mas cuja luz poética é bastante forte para esclarecer o suicídio do seu autor.

Medida por Medida, O Revisor, o Príncipe de Homburgo são três tragédias políticas, “políticas” no sentido de Kierkegaard: a força supranatural irrompe para o mundo, humilhando-o até à comicidade. O Revisor e o Príncipe de Homburgo, comédias involuntárias, colocam-nos perante o problema da possibilidade de um teatro cristão, onde o happy end da Vida es Sueño, de Calderón, se levanta como advertência. A consciência de uma Providência, que vela sobre os nossos destinos, parece excluir o trágico. O Revisor e o Príncipe de Homburgo resultam em comédias involuntárias, porque concebidos no espírito dum teatro cristão, que, desde Kierkegaard, sabemos impossível. O trágico cristão só pode aparecer, na terra, em vestes altamente cômicas, e Shakespeare podia conceber Medida por Medida como comédia, porque Deus está ausente do seu teatro acristão. A grandeza do trágico cristão aparece logo quando a face de Deus é coberta, quer dizer, nas obras cristãs de poetas não-cristãos, com a divindade anônima, como nos romances de Franz Kafka: a divindade escondida nos bastidores de um mundo sem Deus. E neste sentido Shakespeare é um poeta sem Deus.

Não sabemos quase nada do homem Shakespeare, e eu não pretendo meter-me em discussões sobre a sua verdadeira religião e o seu pretenso catolicismo, discussões que atingem muitas vezes o ridículo. O que sabemos é que o poeta do Rei Lear é o maior pessimista da literatura universal. O pessimista é um homem sem esperança, mesmo em Deus. Na obra de Shakespeare, Deus está ausente. O homem shakespeareano é um joguete dos deuses que nos matam como moscas para passar o tempo. Nossa vida não é mais do que um sonho cercado de um profundo sono; “ripeness is all”, sabe o rei Lear, a maturidade pela morte, a única saída, a única. O homem de Shakespeare está só no mundo, entregue à sua vontade e à sua fatalidade. Deus está ausente.

A única exceção, nesta obra imensa, é Medida por Medida. Dizem que a terrível fragilidade de todos os homens, nesta comédia sombria, está maravilhosamente tranqüilizada pela presença animadora do Duque disfarçado. A peça é dedicada a todos nós. Não é somente a tragédia do Estado, da lei e do perdão do qual nossa vida material depende. É a tragédia do homem cujo “poder” neste mundo é temporário como o poder de Ângelo. Traço profundo, pelo qual Shakespeare modificou o assunto para elevá-lo do político ao humano. Com este naturalismo intrépido, que é a prerrogativa do maior dos poetas, Shakespeare fixou esta tragédia humana no ponto onde nos achamos, nós outros homens, os mais fracos e os mais falíveis: na sexualidade, que nos liga profundamente à natureza, verdadeira antítese do Estado, que é inteiramente artifício humano. O conflito dessas duas forças em Medida por Medida é apresentado no costume desenfreado e turbulento da Renascença. Deus parece ausente. Mas está, na verdade, mais presente que o pretenso diabo da comédia de Gogol ou o pretenso deus da tragédia de Kleist. A vida aí está tão integralmente representada que a plenitude do trágico e do cômico nos sufoca, e nós não sabemos mais se devemos rir ou chorar, já que vivemos, nós mesmos, esse drama, em que todos os homens fracassaram. E nós, espectadores, nós fracassamos com eles. Medida por Medida nos desagrada porque ultrapassa a nossa medida. A peça tem um único verdadeiro espectador: o Duque.

Quem é o Duque? Hazlitt, o maior intérprete shakespeareano, chamou-lhe “uma personagem verdadeiramente misteriosa de teatro”, e dizia-o no sentido depreciativo para caracterizar o artifício teatral das intrigas do Duque. Mas “todas as dificuldades se tornam leves quando são reconhecidas”. É preciso reconhecer que o Duque, com o artifício das suas intrigas, ultrapassa toda a veracidade humana; mas também é graças a ele que se salva a verdade humana da peça. É este artifício sobre-humano que salva os homens de Medida por Medida do círculo de ferro em que Shakespeare os aprisionou, dos deuses que nos matam como moscas, do sonho insensato da vida, da morte que já não é a única justiça. Um “poder divino” salva a justiça pelo perdão, “atributo de Deus”, “virtude do homem regenerado pela graça divina”. Assim Ângelo é, no fim, regenerado pela sinceridade da sua confissão: “Ó meu Senhor! eu seria mais culpado que a minha culpabilidade se eu pensasse poder ficar despercebido, porque vós me acompanhastes como um poder divino, em todos os meus passos.” É o poder divino oculto que acompanha toda a nossa vida. Oculto, ele é a terrível divindade da justiça implacável. Mas quando se constitui juiz e desvenda a sua face, então é a graça que nos salva da justiça do “Medida por medida”.

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Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos 1942–1978, Volume I, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 1999. (p. 160–167). Editado por: Pedro G. Segato.

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Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).