Pessoas Transgêneras e Mitos sobre “Sexo Biológico”

Bianca Olivia da Rocha
11 min readJun 8, 2020

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foto por Freeimages.com/Krisztián Hoffer

(Nota da Editora: O que segue é a tradução da dissertação Transgender People and “Biological Sex” Myths, da Julia Serano, autora, bióloga, feminista e ativista bissexual e trans. A versão original pode ser encontrada gratuitamente no medium da autora clicando aqui.)

Recentemente fiz uma dissertação intitulada Desconstruindo os Argumentos de que “Mulheres-Trans-não-são-Mulheres” (NE: texto traduzido pelo coletivo Não Me Kahlo) na esperança de que fosse uma introdução útil para enfrentar tais afirmações. Mas às vezes, esforços para minar ou excluir mulheres trans de uma tática um pouco diferente, que se forma da seguinte maneira: Se faz uma diferenciação entre sexo e gênero — o primeiro estritamente biológico e o segundo estritamente social. Ao fazer esta afirmação, se argumentará que, embora mulheres trans possam de fato ser mulheres (por “mulher” ser uma categoria de gênero), nós continuamos “machos biológicos” (uma categoria de sexo). Essa linha de pensamento muitas vezes vem acompanhada por afirmações de que mulheres são oprimidas com base em seus sexos (não gêneros), e logo feminismo é um domínio que deveria ser exclusivo às “fêmeas biológicas” (logo expurgando as mulheres trans).

Embora não seja um argumento novo, tem ganhado tração após youtuber Laci Green a utilizou em uma série de vídeos e comentários. Como as Redes Sociais estão ativamente reagindo aos comentários de Green e demais argumentos similares feitos por outras, acredito que este é um momento oportuno para desbancar o argumento de “mulheres trans são biologicamente machos”, assim como má concepções sobre “sexo biológico” em geral.

(NE: estou traduzindo este texto 3 anos após sua publicação, em reação à famosa autora infanto-juvenil JK Rowling se valendo destes argumentos em uma série de tweets.)

Antes de começar, devo mencionar que estou escrevendo este artigo não só como mulher trans e feminista, mas também como bióloga. Muitos dos pontos que abordo aqui estão argumentados mais a fundo em meus livros Whipping Girl e Excluded (NE: ambos sem tradução em português por hora).

Sexo é multifacetado, variável e levemente maleável

A presunção primária que guia a maioria dos mitos de “sexo biológico” é que há dois sexos discretos e mutualmente excludentes que são imutáveis (ou seja, uma vez que se nasce com um sexo, sempre será membro daquele sexo). Embora exista um número de características sexualmente dimórficas — como cromossomos, gônadas, genitais exteriores, outros órgãos reprodutivos, proporção de hormônios sexuais e características sexuais secundárias — muitas vezes estes traços não se alinham (“inteiramente macho” ou “inteiramente fêmea”) em uma pessoa específica, como no caso de pessoas intersexo e de muitas pessoas transgênero.

Ademais, para cada uma dessas características, algumas pessoas estarão “no meio termo” ou “por fora” do que muitas pessoas consideram padrão para fêmeas ou machos.

Em outras palavras, o termo “sexo” não é simples, nem direto: ele se refere a uma série de características sexualmente dimórficas com variabilidade tanto de combinação como dentro de cada uma. E esta não é meramente uma “perspectiva trans” do assunto; aqui está um artigo na Nature, uma das revistas científicas mais respeitadas do mundo, argumentando que “a ideia de dois sexos é simplista. Biólogos agora pensam que há um espectro mais amplos que isso.” (NE: artigo em inglês)

Em adição a essa diversidade natural, sexo não é inteiramente imutável. Certo, talvez não possamos mudar nosso sexo genético (que para a maioria de nós se mantém “para ser determinado”, uma vez que pouquíssimas pessoas de fato examinam seus cromossomos, e algumas que o fazem recebem resultados inesperados). Órgão reprodutores, porém, podem ser removidos ou reconfigurados por meio de cirurgia. Hormônios sexuais podem ser administrados para mudar as proporções (como muitas vezes é feito por pessoas trans E cis), e isto pode alterar características sexuais secundárias — ou seja, as características sexualmente dimórficas que surgem com a puberdade, como crescimento de mamas em fêmeas ou pelos faciais em machos.

Pessoas tendem a manter ideias essencialistas sobre sexo — isto é, presumem que cada categoria sexual possui uma “essência” que as fazem o que são. É o que leva as pessoas a crerem que mulheres trans continuam “machos biológicos” mesmo quando muitas de nossas características sexuais sendo agora fêmeas. Não há, porém, nenhuma “essência” por trás do sexo; é, simplesmente, uma coleção de características sexualmente dimórfica. Algumas pessoas presumem que cromossomos sexuais devem ser essa “essência,” mesmo que não possamos facilmente vê-los e existem variações além do XX/XY. Outras presumem que as genitais são essa “essência” (provavelmente por serem usados para determinar nossos sexos legal e designado ao nascer), mesmo que estas também têm variação e podem ser mudadas (por exemplo, via cirurgia de redesignação sexual). Cotidianamente, nos valemos das características sexuais secundárias para determinar (ou, mais precisamente, presumir) o sexo das pessoas — e, é claro, estas características podem mudar por meio de uma simples receita hormonal. Como falei, não há uma “essência” mística por trás do sexo.

Sexo é uma coleção de características que, embora em geral dimórficas, variam massivamente na população, e algumas podem ser mudadas com o tempo. Embora termos como “macho” e “fêmea” possam ter alguma utilidade, não devemos vê-los como uma dicotomia estrita ou mutualmente excludentes. Em vez disso, “macho” e “fêmea” são melhor entendidos como termos guarda-chuva para grupos de pessoas (ou animais) que, em geral, dividem várias das mesmas características, mas com variabilidade e algumas exceções.

A falácia do dualismo corpo/mente

A distinção de gênero e sexo é enraizada no dualismo de corpo/mente, que outrora foi aceito, mas hoje é rejeitado por biólogos, cientistas cognitivos, filósofos e psicólogos (e também muitas feministas!).

Para a mente (que no caso de mulheres trans incluiria nossa identidade de gênero e experiências de vida como mulheres) ser inteiramente separada do corpo, as duas seguintes afirmações devem ser ambas verdadeiras: 1) nossos cérebros devem ser completamente “assexuados” e 2) nosso gênero social não pode ter impacto ou influência nenhuma em nossa biologia.

Pressuposto 1° (que nossos cérebros são completamente “assexuados”) é falso. Para início, toda e cada célula em nossos cérebros têm receptores de hormônios sexuais, que ativam ou desativam genes em resposta a hormônios como testosterona ou estrógeno. Ninguém pode precisamente afirmar os efeitos destes hormônios no cérebro — há evidentemente uma grande diversidade de gênero entre seres humanos, então é provável que seja um espectro de resultados e não uma resposta binária de tudo ou nada. Mas o que podemos afirmar é que a noção que nosso cérebro não é tocado por “sexo” é incorreta.

Mais controversamente, há alguma evidência que sugere que nossa identidade de gênero é influenciada pela biologia. Para quem se interessar, aqui há algumas referências do meu livro Whipping Girl que discutem isso:

páginas 369–370 de “Whipping Girl: A Transexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity” de Julia Serano.

Essa evidência inclui descobertas que algumas microrregiões apresentam dimorfismo sexual e que, nessas microrregiões, os cérebros de mulheres trans aparentam mais tipicamente fêmea do que macho. Ainda mais persuasivo é o fato de que uma maioria de indivíduos geneticamente machos que foram (sem seu conhecimento) criados como meninas deste o nascimento por não terem pênis (por causa de circuncisões que deram errado, ou a condição não-intersexual de extrofia cloacal) eventualmente se identificam como meninos e homens, independente da socialização de gênero contrária. Esses exemplos demonstram que sexo biológico pode influenciar gênero (logo provando o pressuposto 1° errado).

[um adendo necessário: Eu posso imaginar o campo de “mulheres trans são machos biológicos” respondendo, “mas se há algo como um “sexo cerebral” intrínseco, então Julia, seu cérebro deve ser macho!” Ao qual respondo: Eu de nenhum modo afirmo que este suposto “sexo cerebral” determina nosso gênero por inteiro, apenas que ele aparenta ter alguma influência nele. Ademais, se um “sexo cerebral” existe, devemos esperar bastante variabilidade entre os sexos e dentro dos sexos, assim como é com todas as outras características sexualmente dimórficas que mencionei anteriormente (cromossomos, órgãos reprodutivos, hormônios sexuais, características sexuais secundárias, etc.) demonstram. Se isso for verdade, pessoas trans podem ser um exemplo desta variabilidade.]

Pressuposto 2° (que nosso gênero social não impacta nem influi em nossa biologia) é, também, incorreto. Nossos cérebros fisicamente mudam em resposta às nossa experiências. Aqui está uma lista de referências do meu livro Excluded detalhando isso:

página 314 de “Excluded: Making Feminist and Queer Movements More Inclusive” de Julia Serano

Portanto, meus dezessete anos de experiências me identificando como mulher, sendo percebida e tratada como mulher e vivenciando sexismo como mulher, indubitavelmente moldaram meu cérebro em algum grau. Então a noção de que meu gênero não influi na minha biologia (pressuposto 2°) é falso, logo provando que a ideia de mente e corpo como entidades inteiramente separáveis é incorreta.

[um segundo adendo: Eu posso imaginar o campo de “mulheres trans são machos biológicos” respondendo, “Se sua experiência fisicamente altera o seu cérebro, então, Julia, sua socialização como menino deve te desqualificar de ser mulher!” Ao qual eu responderia: 1) ao retornar à noção de gênero, você contradiz seu próprio argumento e 2) recomendo a leitura do meu texto anterior, particularmente as sessões de socialização e argumentos “pia da cozinha”.]

A falácia de “inato ou adquirido”

Tanto a distinções de corpo/mente quando a de sexo/gênero são relacionadas a debates de “inato ou adquirido”, onde pessoas apontam alguma característica humana (seja inteligência, personalidade ou, nesse caso, gênero) e argumentam que o resultado é inteiramente devido a biologia/genética ou meio/socialização.

Enquanto alguns biólogos no passado defenderam argumentos estritos de “natureza”, biólogos contemporâneos reconhecem que a maioria (se não todas) das características humanas surgem por meio de complexas interações entre vários fatores biológicos (tanto biologia compartilhada quanto diferenças biológicas individuais) e o meio (tanto a cultura quanto experiências individuais) para criar um vasto leque de resultados. Em Excluded (especificamente no capítulo 13, “Homogenizing Versus Holistic Views of Gender and Sexuality”), faço o mesmo argumento em relação a Sexo e Gênero.

Esclarecendo o argumento de “sexo é uma construção social”

Às vezes, pessoas que se dedicam a desbancar mitos de “sexo biológico” apontam que sexo (assim como gênero) é uma construção social. O motivo para fazer isso é mostrar que a distinção “biológica ou social” é mais tênue e confusa (como demonstrei nas últimas duas seções) do que o campo de “mulheres trans são machos biológicos” gostaria de admitir.

Infelizmente, pessoas desinformadas ou mal informadas sobre construtivismo social muitas vezes compreendem a palavra “construção” como “falso” ou “irreal,” e logo presumem que estes argumentos negam a existência de características sexualmente dimórficas. Porém, não é isto que “construção” significa.

Falar que sexo é uma “construção social” não significa que diferenças sexuais biológicas não existem ou não importam. Isso simplesmente demonstra que nossa definição de sexo, e o modo que categorizamos pessoas em sexos, é determinado pela sociedade e nossas ideias de como o mundo funciona.

Em nossa sociedade, pessoas são designadas sexos legais ao nascer baseado na presença ou ausência de um pênis — este é um processo social. Quando pessoas argumentam que devem ser cromossomos, um órgão reprodutivo em particular, que define ou determina o sexo de alguém, essa é uma decisão social — uma que ignora a multiplicidade e variabilidade das características sexualmente dimórficas. De verdade, o mero fato de que, dada a mesma evidência, pessoas discordam sobre a natureza do sexo (estritamente binário ou multifacetado e variável; imutável ou maleável) demonstra que sexo é socialmente construído!

Então em outras palavras, você pode afirmar que diferenças sexuais biológicas existem, e também que nosso entendimento de sexo é uma construção social — estas afirmações não são contraditórias!

Mulheres são oprimidas por causa de ambos sexo e gênero

Embora eu discorde de afirmações como “mulheres trans são machos biológicos”, eu posso ao menos compreender da onde eles vêm: Muitas pessoas mantêm pensamentos binários e essencialistas sobre sexo, então não é surpreendente que eles cheguem a essa falsa conclusão. Porém, a asserção de que “mulheres são oprimidas por causa de seu sexo, não seu gênero” é simplesmente ridícula.

Embora a distinção entre sexo e gênero possa ter serventia em discussões com mais nuance ou mais teóricas no assunto, cotidianamente a maioria das pessoas não fazem essa distinção. Isto é, a maioria das pessoas usam os termos “sexo” e “gênero” como sinônimos. Quando um homem fala por cima de mim ou é pedante comigo, ele não está pensando: “Bom, essa pessoa me parece biologicamente fêmea, então vou ser misógino com ela.” Na verdade, ele simplesmente vê uma mulher/fêmea (que são a mesma coisa para ele), e me trata de acordo.

Embora é verdade que certas formas de sexismo tomam como alvo biologia fêmea (como em termos ofensivos para mamas e vaginas ou tentativas de policiar os sistemas reprodutivos de mulheres), muitas outras formas de sexismo tomam como alvo aquilo que está no campo do gênero (como acusações de que mulheres não são mentalmente aptas para posições de liderança, comentários atacando expressões femininas de gênero, etc.).

Adicionalmente, mulheres trans vivenciam muitas formas de sexismo que tomam como alvo biologia fêmea — em meu caso, já sofri ataques verbais por minhas partes corporais fêmeas, assédio sexual, tentativas de estupro, homens olhando maliciosamente e objetificando meu corpo, e assim adiante.

Claramente, “mulheres são oprimidas por causa de seu sexo, não seu gênero” não é uma proposição séria, nem uma preocupação feminista legítima — é meramente uma tentativa escancarada de excluir mulheres trans. Feminismo é um movimento para acabar com o sexismo. Logo, mulheres trans têm interesse em feminismo.

O mito que pessoas trans estão tentando negar ou apagar diferenças de “sexo biológico”

A asserção mais enfurecedora regularmente feita pelo campo de “mulheres trans são machos biológicos” é que pessoas trans estão de algum modo “negando” ou “apagando” diferenças sexuais biológicas, e que isso machuca mulheres cis/“fêmeas biológicas.” Isso é categoricamente falso. Eu posso assegurar que pessoas trans estão extremamente conscientes das diferenças sexuais biológicas — o fato que muitos de nós transicionamos fisicamente demonstra que reconhecemos que características sexualmente dimórficas existem e podem ser importantes para algumas pessoas!

Eu colocaria as coisas desta maneira: Pessoas transgênero muitas vezes têm relações mais complexas com nossa características relacionadas ao sexo (pois elas podem estar em discordância com nossas identidades e vivência de gênero) e por isso a linguagem que usamos para discutir essas características podem parecer arcanas, sem sentido ou desnecessárias para a pessoa cisgênera comum. E porque estão desacostumadas com a linguagem (e/ou simplesmente nos antagonizam), algumas pessoas cisgêneras consequentemente interpretam erroneamente esta linguagem e perspectiva diferente como algum tipo de “negação.”

Enquanto eu escrevia sobre isso, não pude evitar lembrar de um formulário de paciente que uma vez tive que preencher ao visitar um novo médico. O formulário separava todas as perguntas para machos (como quando foi seu último exame de próstata) das perguntas para fêmeas (como quando foi seu último exame de mama). Vários itens de categoria sexual se aplicavam a mim, então preenchi respostas em ambos os campos. Honestamente, foi um sentimento ruim — não por eu estar em negação sobre meu corpo ou minhas característica sexuais, mas porque o formulário sugeria que eu não deveria existir.

O que estou tentando passar sobre isso é que pessoas trans não estão em nenhuma medida “negando” ou “apagando” diferenças biológicas de sexo. Estamos simplesmente reclamando daqueles que se valem de diferenças sexuais reais ou imaginárias com o objetivo de nos excluir.

Sexo e gênero são fenômenos complexos, e línguas são imperfeitas. Eu pessoalmente não tenho problema com pessoas falando de modo geral sobre “anatomia feminina” ou “direitos reprodutivos da mulher”, desde que não estejam propositadamente buscando apagar pessoas transgênero e intersexo no processo. E (em contrates às mentiras propostas por Laci Green, Elinor Burkett, e outras feministas cisgênero) Eu (e virtualmente todas as outras pessoas trans) tenho nenhum problema com mulheres falando sobre suas vaginas ou outras partes de seus corpos, dado que elas não afirmem que estes atributos sexuais se aplicam a todas as mulheres, ou neguem que alguns homens possam os ter também.

Mas em minha experiência, quando pessoas se esforçam para usar termos crassos como “macho/fêmea biológico/a,” estão quase sempre procurando afirmar que 1) biologia está acima da identidade e vivência de gênero das pessoas trans e 2) apagar a realidade da diversidade de sexo e gênero, e o fato de que há exceções para todas as categorias sexuais e de gênero. Se esta for sua intenção, então você deveria saber que não estou “negando” ou “apagando” diferenças sexuais. Eu estou somente demonstrando que você é desinformada nesses assuntos e/ou simplesmente preconceituosa.

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Bianca Olivia da Rocha

Examinando como falamos de Política, Feminismo e Assuntos LGBTI