O Piano

Bruno Seri
4 min readFeb 22, 2017

--

Os olhos não viam nada. Secos, ardiam. Mal andava. A face coberta em pó. Voltou aos sentidos com várias pessoas apoiando-o pelos braços e colocando água em sua boca:

-Tem mais um aqui! Mais um! Está vivo! Traz a maca!

Olhou para baixo e viu a camisa rasgada. Perdeu um dos sapatos. Inteiro ralado, a pele em carne viva. Lampejos de azul e vermelho alternavam-se em iluminar seu rosto. Cintilavam contra os olhos empoeirados e denunciaram os primeiros sinais de cansaço. Ambulâncias e viaturas estavam por todo lado.

Tentou ver o que aconteceu em volta: O que era antes um bairro agora é um amontoado de ferro, concreto e placas de mercados e outras lojas, como lembretes da vida que antes o bairro possuía.

-Vamos por você na maca, senhor

-O que aconteceu?

Alguém segura seus olhos abertos. Um flash de luz passa no olho direito, e depois no esquerdo.

-Ok, contração normal, consciente…vejamos, respiração ok… ferimento na cabeça, possível concussão.

Cabeça? Aproxima a mão com receio do que vai encontrar. Tateia com os dedos e depois coloca a palma da mão logo acima da orelha. Dói. Dói muito. Está molhado e quente. A mão está agora repleta de sangue. Escorre pela orelha, depois pelos cabelos, e pinga gota a gota na maca em tempo tão marcado que poderia ser usado de metrônomo. Quatro pessoas vêm e carregam sua maca. Sente enjoo. Acomodam-no numa fila de espera próxima à ambulância. Não conseguia decidir quem deles estava mais confuso. Chega um carro militar. Cruzou o olhar confuso com o olhar preocupado de um dos soldados que vinha na parte de trás do comboio. Fitaram por um momento, concordando sem palavras que alguma coisa havia acontecido. Ele leva a mão mais uma vez à cabeça. Toca de leve com os dedos. O corpo estremece e o rosto contrai.

-Não se preocupe, vamos fazer um curativo nisso. Qual seu nome, senhor?

Uma socorrista se apoia nos joelhos para ficar na mesma altura da cabeça. Começa a fazer um curativo

-Sim claro, meu nome é… Eu sou…

-Vai com calma. Acontece. Talvez você esteja com sua carteira.

Enrola a gaze na cabeça por fim, cobrindo a ferida.

Mete a mão nos bolsos e lá havia mesmo uma carteira. Tira um RG, uma foto de uma mulher e alguns trocados. No RG está escrito João Martins. Pega a foto da mulher. Está gasta de tanto manuseio. Vira, mas não há nada escrito no verso. Olha para a foto novamente, mas agora os olhos sorriem levemente. Ela é bonita. Percebe um anel na mão esquerda e sente o metal com os dedos. Alguns riscos aqui e ali: símbolos que o tempo escreveu usando a linguagem das memórias. Olha para a foto novamente, mas agora os olhos contraem, investigativos no rosto elusivo da mulher. Franze a testa, fazendo um esforço enorme, sua feição ainda carrega dúvida. Como a Mona Lisa resiste o desvendar do mistério, aquela foto resistiu seus esforços de memória. Guarda a foto com um suspiro, e enterra a cabeça nas mãos vermelhas.

-Preciso ir atender outras vítimas, logo você virá com a gente para o hospital. Não saia daqui.

-Espera! Alguém mais sobreviveu no prédio em que eu estava?

-Desculpe senhor, mas até agora você foi o único que encontramos. A busca está difícil, mas não vamos perder a esperança. Preciso ir.

-O que aconteceu aqui?

Mas ela já estava longe.

Levanta, e o corpo ainda não obedece bem e as pernas se estremecem, mas continua de pé. Olha em volta e não consegue ver nada além de escombros. A cidade inteira foi afetada. Não consegue distinguir as lanternas dos carros das luzes dos postes caídos no chão. Bombeiros correm daqui para lá e de lá pra cá, carregando pessoas e revirando pilares e paredes que sobraram das construções. Mas nem mesmo eles parecem estar otimistas. Soldados não param de chegar, descendo dos caminhões e inundando os escombros, talvez procurando por algo, ou pior, alguém.

Do outro lado da rua, do lado do qual foi resgatado, surge no meio do esqueleto áspero do que um dia foi um prédio, um piano. Ele se aproxima, esquecendo-se das ordens da socorrista. Foi uma surpresa a sobrevivência do piano. Tirando algumas quebras na madeira e arranhões, ele ainda aparenta ter vida. Testa-o. Solta o dedo sobre a tecla com a leveza de uma pluma. O mecanismo range, e no final o martelo bate sobre as cordas, com uma leveza de como quem não quer criar estardalhaço. O mundo está em silêncio, e tudo o que há para ouvir é esta nota ré. Testa novamente, agora sente o peso da mão na tecla. O sol ecoa. Silêncio. As mãos pairam sobre o teclado, sentindo só com a ponta dos dedos a textura lisa das teclas, como fosse um reencontro de namorados há anos separados pela guerra. As pernas tremem, mas as mãos precisam tocar. Elas sabem tocar. A testa franzida sob a gaze é um misto de epifania e incompreensão. Ele se lembra. Nesta noite perdeu a esposa e os dois filhos. Apoia as mãos, acomodam-se perfeitamente nas teclas certas. Agora ele lembra. Era a música deles. Nosso pianista se lembra e chora.

Cai de joelhos e grita. Mas em meio a todo esse caos e sirenes, ninguém vai ajudar a resgatar um piano.

Obrigado por ler! Se gostou, considere clicar ali no coração verde. Assim todo mundo fica mais feliz. Talvez você queira ficar mais um pouco na conversa e ler meus outros textos:(garanto que não vai se arrepender)

--

--