Pensamentos nº1
ou -O chão em que piso não sustenta-se em rochas-
Estava bebendo chá quando tudo aconteceu. A xícara tremeu, os vidros e portas bateram, o cachorro latia sem direção em desespero. Um lampejo cruzou o céu noturno de Istambul. Da minha janela do décimo terceiro andar testemunhei o que parecia ser a montagem do primeiro ato. De relance vejo a cortinas translúcida da janela tomada pelas sombras do primeiro personagem: fortaleza maciça forjada em aço, deslizou rasgando o asfalto como um navio cargueiro. 50 toneladas de robustez que atracam exatamente no meio do cruzamento. À rua não agrada a presença do forasteiro, e se afunda em caos de carros e engarrafamento. Apoio-me no parapeito e lanço a cabeça para fora, na esperança de pegar algum fragmento do roteiro. Nada. Total silêncio. Alguns descem de seus carros e , como meu canino, correm sem direção em desespero. Outros, porém, intrigam-se com a presença de um personagem tão incomum neste cenário. Bebo outro gole do chá. Um passo de cada vez, os desconcertados aglomeram-se na cena, esperando talvez uma instrução sobre seu papel. Ou talvez, assim como eu, sejam espectadores na espera de alguma proclamação sobre a peça que virá. Não há como ter certeza.
Inclinei-me mais um pouco para ver a cena, e à medida que empurrei-me ao máximo com a ponta dos pés, esbarrei na xícara que apoiara na beira da janela. Mais rápida que minha reação, caiu do décimo terceiro andar. O coração descompassou uma batida enquanto as mãos agarraram o ar. Deu duas voltas em queda livre e estilhaçou em cem cacos, na calçada da Avenida Bağdat, nº 467.
Ninguém notou. Todos os olhos ainda focados naquele tal ser alheio carregado de pólvora e autoridade. Testas franzidas, ombros retesados a sustentar todo o misto de receio e estranhamento. Bastaria apenas um gatilho, uma folha desprendendo da árvore ou gota caindo na poça, e a tensão acumulada, desesperada a libertar-se dos ombros e testas franzidas, seria derramada como enchente
Do silêncio surgiram os murmúrios, dos murmúrios as palavras de insatisfação.Os punhos cerrando firmemente, agarrando ar para ganhar firmeza. E então, o homem que despontava da escotilha, apontou o fuzil para cima, repousou o dedo no gatilho, e deflagrou início à orquestra. Deu-se início à ópera.
Saltei para dentro do apartamento, longe da janela e da mira do fuzil, aterrissando no tapete junto de meu cachorro, aterrorizado pelo barulho. Resmungava e uivava sem vigor. A televisão parou de receber sinal. Busco pelo controle, rodo os canais: sem sinal. Tento a internet: talvez twitter, whatsapp, isso está sendo falado em algum lugar: sem acesso. Os colorbars saem e dão lugar à imagem de um homem resoluto, apertado por fardas justas e pregado por mil comendas e medalhas. Anuncia a tomada do governo a fim de defender os interesses democráticos. Toque de recolher é imediato e mandatório em toda a Turquia. Por Deus! o que acontece nesse país? Os jatos voltam rasantes, rasgando o céu e os tímpanos mais uma vez. Recorro ao celular ainda outra vez, com as mãos trêmulas destravo a tela. De novo tento contato. Espero que esteja bem, não recebi notícias a noite inteira. Nada. Nenhum sinal. Apoio nas mãos a testa úmida de suor frio. Espero que esteja bem. Respiro o máximo dos pulmões. Preencheu o ar então o chamado para a oração, ecoando das centenas de minaretes presentes na cidade.Mas há algo errado, não é a hora certa de Salah. Franzo o cenho. Estão convocando o povo às ruas.
Tateio pelas chaves na mesa ao lado da porta, e destranco a porta com as mãos frias e trêmulas. Aperto o botão do elevador três vezes. Oh merda, esqueci de trancar a porta. Corro, tropeço, tranco a porta, volto para o elevador. Aperto o botão do elevador. Entro no elevador, aperto três vezes o térreo. Ando em círculos claustrofóbicos pela cabine. Aperto o botão do térreo. Aperto o botão do térreo. Estralo as juntas dos dedos, uma a uma. Tenso. -PLIM- . Térreo.
Sr Kemal disse que sou louco por sair na rua. Digo que não tive notícias de minha mãe ainda, então diz que irá rezar para que tudo esteja bem. Corro em passos largos o hall do prédio e estralo os ossos do pescoço. Podem caçá-la. Ela é funcionária do governo. Se suspeitarem dela podem prendê-la. Meu Deus. Vão matá-la. Pior, tortura. Não sei do que são capazes. Ela não tem conexão com nada, mas eles podem achar que sim. Disparo pelas ruas tomadas pela multidão,correndo com os cadarços desamarrados e gritando “MÃE” com todo o fôlego que me restava. Vejo na outra esquina uma mão levantada: é ela, graças a Deus! Obrigado Sr. Kemal por rezar por mim. Puxo seu braço então na direção de casa, e corremos para casa acautelando que não passássemos perto de nenhum militar. “É um golpe, vão pra casa!” eu ouvia dos putschistas fardados. Bandeiras da Turquia eram carregadas no meio do povo, resistindo tentativas de dispersão por parte dos insubordinados.
Corremos por densas cortinas de gás e disparos. Pouco podia ser visto. Não se podia ver dois palmos à frente. Vi relances de bandeiras rasgadas, ou talvez sangue. Sob a névoa os vermelhos eram indistintos. Corremos quase sem rumo, guiando-nos apenas por vagas imagens e memórias de ruas, esquinas e lugares. Só pude sentir que tudo estava fora do lugar.
Chegamos em casa. Agradeci Sr Kemal pela preocupação. O cachorro devorara as almofadas em minha ausência, e encobriu-se num ninho de estofado na quina da parede. Fiz outro chá para acalmar o semblante pálido e ainda perdido pelas ruas de minha mãe. Ela recebeu a xícara de minhas mãos e desabou no sofá. O sinal dos canais retornavam à normalidade. Passamos a noite em claro. Na medida em que a madrugada se aprofundava, o barulho dos tiros e helicópteros diminuíam, e os gritos de ordem surgiam. Tive medo de voltar à janela, agora com os encaixes estourados pelo estrondo sônico dos jatos. Sentei do lado de minha mãe, trazendo cobertas para confortar e acalmar, na tentativa de também acalmar a mim mesmo e repetir com mais segurança que tudo vai ficar bem. Com o romper da manhã, o Presidente pronunciou-se no aeroporto: Num discurso firme e carregado de emoção, saudou o povo leal ao governo, e reafirmou a continuidade de seu poder, prometendo duras penas àqueles que perpetraram a barbárie. Disse isso com muita certeza e convicção. Mas também pensávamos com a mesma grandeza de convicção que golpes eram um passado superado, apenas memórias de tempos instáveis na Turquia. Com a mesma convicção pensávamos que não iria haver guerra na Síria, e depois que seria uma guerra curta, e ainda depois que ela não seria catastrófica para a região. Disseram-me na escola uma história sólida sobre progresso, e sobre como cada década era sempre superior à anterior. O passado de cem anos era risível tanto na sociedade quanto na tecnologia, e que o amanhã sempre será melhor que hoje, afinal, é assim que funciona o progresso. O retrato do meu pai continua sorrindo firme da parede. Memórias de um tempo em que eles tinham todas as respotas. Empregos sólidos, famílias de renome: donos do próprio destino. Fito os olhos de minha mãe: vidrados na televisão, mas alheios de tudo. Apenas esperando.
Mas só sinto que tudo o que é sólido está desmanchando-se no ar.
Não sou jornalista, geógrafo, muito menos especialista em assuntos internacionais. Não tenho intenção de noticiar ou registrar a realidade. Escrevi como reflexão para tentar sentir ao menos uma centelha do que foram os acontecimentos dos dias anteriores. Um lembrete de que, apesar de tudo, ainda sou privilegiado de morar num país estável, sem atentados terroristas ou guerras nas fronteiras.
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