A estabilidade insustentável

A política brasileira falha em oferecer soluções dinâmicas mesmo em sua pior crise

Vinícius de Melo Justo
11 min readMar 7, 2016

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Se fosse necessário resumir o cenário político brasileiro atual em uma única formulação, poderíamos dizer que é a inoperância completa do sistema político ao ocorrer o colapso de um de seus pilares. Toda crise surge a partir do enfraquecimento de uma estrutura vigente, mas também oferece oportunidades para o surgimento de novos arranjos. Entretanto, os catorze meses do segundo mandato de Dilma Rousseff produziram apenas paralisia, retroalimentando os percalços econômicos inevitáveis e gerando toda sorte de dúvidas, razoáveis ou não, sobre nosso futuro.

Se o início de março apresentou alguma chance de um terremoto policial finalmente derrubar o que resta de uma estrutura insustentável, ao mesmo tempo criou a sensação de incompletude. A derrocada do PT e de Lula não anuncia nada para ocupar seu espaço; apenas finaliza uma questão incômoda que está longe de ser a única em nossas mentes. Necessária, desejável e inevitável, a Lava Jato não será capaz de recuperar nossa política por si só. A falta de ação até aqui demonstra justamente o contrário: o castelo de cartas teima em cair inteiriço, sem se desmanchar para que possamos reconstruí-lo em outras bases.

Não há crise sem abalos, não há reconstrução sem projetar novas ilusões. A estagnação do sistema político, resultado de atuações muitas vezes pouco racionais mas sempre interessadas, é um péssimo sinal para nossa democracia. Sem aproveitar a dinâmica natural de uma crise para refazer a engenharia política do Brasil pós-Lava Jato, é impossível crer na melhora do país tanto no curto quanto no longo prazo. Este artigo procura analisar algumas opções realistas para nossa política, considerada em seu contexto mais amplo: a vigência de coalizões políticas hoje pouco representativas e mantidas por atores interessados em sua cristalização.

Os pilares do sistema

A evolução do sistema político brasileiro no pós-ditadura foi lenta e concluída apenas 17 anos após a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Começou ali, com a divisão do PDS (ex-Arena) e o surgimento do PFL, hoje DEM, costura feita por Tancredo que determinou a aparição de um bloco na direita que poderia exercer o papel de equilíbrio em um governo minoritário do PMDB caso a recém-formada esquerda (PDT no brizolismo e PT no sindicalismo) não lhe oferecesse apoio suficiente. A morte de Tancredo elevou José Sarney à posição de líder do PMDB por virtude da presidência, enquanto o Plano Cruzado produziu uma hegemonia temporária do partido que até hoje rende frutos.

O segundo momento fulcral foram as eleições de 1989, em que Collor saiu vitorioso e o PT, de forma razoavelmente precoce, tornou-se o herdeiro de toda a esquerda ao derrotar Brizola no primeiro turno. Desde então, todos os movimentos de esquerda passaram a ver no PT sua melhor expectativa de poder no âmbito federal, embora até hoje esse processo não tenha sido concluído em todos os estados – em muitos deles a divisão política permanece tributária da antiga divisão em MDB x Arena, sem os contornos da ditadura militar como contexto geral, mas fazendo sentido regionalmente. Noves fora, a Constituição de 1988 assegurou os meios para a União ser o centro vivo do sistema, e conquistá-lo parcial ou totalmente passou a ser a métrica de sucesso para qualquer partido.

O terceiro momento foi o impeachment de Collor, menos pela união de forças que levou à derrubada do presidente e mais pelo que ocorreu posteriormente: o governo Itamar sofreu inúmeros percalços, mas foi muito bem sucedido na tarefa de estabilizar o sistema político, fazendo com que anos depois Collor fosse visto como uma anomalia temporária. O PT já era um pilar autossustentável e por isso afastou-se da conciliação de Itamar, esperando uma vitória em 1994 que permitiria atingir muito mais poder pela tomada da presidência. Não contava com o sucesso do Plano Real, produtor direto de um novo pilar para o sistema: o PSDB como líder intelectual de uma ampla coalizão, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso.

Um último momento importante, finalizado em 2002 mas gestado ao longo de quase uma década, foi a vitória do entendimento no interior do PT favorável à construção de uma coalizão mais ampla. A aliança com o PL serviu menos para governar – o PL não era um dos maiores partidos do Brasil – e mais para sinalizar aos grupos políticos majoritários que o PT estava pronto para assumir posição central no arranjo político brasileiro sem se limitar aos seus aliados de sempre, como PCdoB, PSB e o agora razoavelmente domesticado PDT. Com isso, se tornou possível vencer a eleição em 2002 e logo organizar um governo mais moderado do que mesmo os militantes mais aguerridos poderiam aceitar dez anos antes.

Nesses quatro momentos moram todas as características do sistema político brasileiro atual. A centralidade do PT é explicada tanto por sua absorção de quase toda a esquerda como por sua elaboração de uma nova coalizão ainda mais ampla que a do PSDB de Fernando Henrique. A continuidade dos tucanos como principal força da oposição tem sua raiz na conciliação de Itamar, que levou ao Plano Real e à construção do PSDB como partido nacional. Outros pontos podem ser demonstrados, mas o essencial para nossa discussão é entender como esse sistema operou de modo funcional para a democracia: PT e PSDB lideraram desde 1994 blocos políticos capazes de traduzir minimamente as tensões políticas presentes na sociedade brasileira, tanto econômica quanto geograficamente. Hoje, a realidade é outra.

PT: estagnação, retração, reação

O Partido dos Trabalhadores nasceu sindicalista e está morrendo como representante do empresariado dependente do governo. Houve uma readaptação das lideranças sindicais a uma nova realidade, passando a controlar nacos importantes do sistema econômico por meio dos fundos de pensões e do uso estratégico do BNDES e outras prerrogativas da União. O movimento começou em 2003 e contribuiu para a formação da centralidade do PT em nosso sistema político. Antes esses dispositivos também eram utilizados estrategicamente, mas não tinham a mesma capacidade de aglutinação de maiorias em torno do governo – o crescimento econômico dos anos Lula possibilitou também o crescimento da capacidade estratégica do PT como melhor distribuidor de dividendos no Estado brasileiro. Nesse particular, foi essencial contar com a participação e a aquiescência da esquerda.

Em troca de uma boa relação do partido e do governo com as forças econômicas relevantes, a esquerda, militante petista ou não, agarrou-se a cada uma das estratégias retóricas à disposição: a distribuição de renda (embora realizada sob parâmetros antes rejeitados intelectualmente pela esquerda brasileira, ou seja, assistencialismo) passou a justificar até mesmo crimes, contando com a resposta das urnas para legitimá-los politicamente; a difícil correlação de forças causada pela recusa da oposição (aqui, leia-se PSDB) em colaborar com o governo seria a responsável direta pela necessidade de coalizões espúrias; a crescente rejeição ao PT e seus políticos não seria uma resposta política legítima, pois informada por preconceitos de classe e radicalismos antidemocráticos. Em cada uma dessas instâncias, a esquerda abdicou de pensar sobre o país analiticamente e preferiu comprar os discursos que o PT, como partido eficiente que era, tornou disponíveis.

Mas a evolução social cobrou seu preço, e já em 2010, na ascensão de Marina Silva, e mais claramente em 2013, com os protestos de junho, ficou claro que o PT se beneficiava da estagnação política enquanto as tensões sociais se modificaram a ponto de tornar o sistema disfuncional. Interpretando o fenômeno corretamente como um crescimento de demandas, o PT e Dilma Rousseff procuraram solucioná-lo produzindo crescimento econômico capaz de manter as coisas como estavam no âmbito político, cientes de que uma reorganização significaria muito provavelmente uma derrota em 2014. Incapazes de obter real crescimento, governo e PT tiveram estratégias díspares: Dilma dobrou a aposta para ao menos assegurar sua reeleição, enquanto o PT e Lula projetavam um retorno da figura carismática já em 2014 para arbitrar um sistema política e economicamente estagnado.

Dilma venceu uma campanha difícil em boa parte porque o sistema político recém-caduco permaneceu majoritariamente ao seu lado com uma expectativa pouco realista: a retração econômica seria inevitável, mas a correção de rumos bastaria para tornar 2015 o pior ano do mandato. Não contavam com o fortalecimento da Lava Jato e com a impossibilidade de domá-la. Ao contrário: a crise política se instalou quando ficou imediatamente claro, logo após a contagem dos votos, que o PT buscaria sócios para o ônus do ajuste econômico sem condições de oferecer proteção ao sistema político estagnado. Juntando a isso um novo perfil do Congresso, mais interessado em dividendos pontuais e sem uma clara estratégia de longo prazo (afinal, quantos dos líderes congressuais hoje têm ambições maiores que as tipicamente setoriais ou regionais?), o governo logo implodiu.

A ameaça do impeachment nasceu nas ruas com pouquíssimo envolvimento do sistema político, pois este se manteve comprometido aos pilares antigos que não encontram mais sustentação social. A esquerda que anteriormente justificou seu apoio ao PT pelos avanços sociais e econômicos se vê destituída de argumentos diante da retração e passa também a mirar o sistema político – frequentemente poupando seu maior eixo atual, o governo petista. A oposição se vê igualmente incapaz de traduzir uma nova relação entre sociedade e política, seja por falta de verdadeira presença na sociedade, seja por estar igualmente comprometida com as engrenagens que a Lava Jato desvenda publicamente como podres. O Congresso é o domínio dos chantagistas e o STF tenta arbitrar uma situação fora de sua alçada. O castelo de cartas tombou por completo, mas persiste em manter seus componentes grudados uns aos outros, impossibilitando a formação de novos arranjos.

As oportunidades de reconstrução

Há muitas consequências na cristalização do sistema político enquanto a sociedade passa por grandes mudanças. Separando três exemplos, à esquerda, ao centro e à direita, podemos ver algumas mais claramente.

  1. A esquerda hoje é refém do PT e se deteriora a cada dia como símbolo político. Não possui consistência e perde potenciais apoiadores entre os mais jovens. Um bom exemplo dessa situação é o PSOL: incapaz de oferecer-se como alternativa razoável para a maior parte dos setores, exceto por algum populismo impossível de diferenciar do populismo operado pelo PT, o partido empolga alguns jovens por suas posições nas políticas identitárias (que têm fôlego curto), mas gera muito mais rejeição por sua dificuldade em abandonar o PT como paradigma.
  2. Os centristas e/ou moderados não possuem opção fora do PSDB, que foi governo e deveria oferecer a alternativa mais realista, posicionando-se como novo centro plausível para o sistema político. Entretanto, suas brigas fratricidas e sua incompetência em libertar-se dos cálculos eleitorais mais equivocados favorecem uma situação inusitada: os tucanos não conseguem alcançar seu público potencial nem no centro e nem na direita, apostando em seu próprio imobilismo para herdar os despojos do PT. Sua capacidade de adaptação ao novo contexto é risível.
  3. Alternativas conservadoras possuem alguns trunfos nas bandeiras mais importantes para crescente parcela da sociedade brasileira: segurança pública e resistência aos movimentos sociais e identitários. No entanto, o conservadorismo brasileiro está desagregado há mais de trinta anos e antes disso serviu apenas como parte da sustentação da ditadura militar; não possui líderes de relevo e esteve presente nas coalizões de centro-esquerda dos últimos vinte anos fazendo uso apenas de seu poder de veto (quando não foi apenas fisiológico), sem capacidade de proposição.

Não é possível saber sem eleições como aconteceria exatamente uma reorganização política, mas podemos estabelecer estratégias realistas para esses mesmos três eixos (esquerda, centro, direita) procurando abandonar o sistema atual e refazendo seu posicionamento para contemplar o máximo possível da população brasileira no futuro próximo.

  1. A esquerda precisa fazer uma retirada estratégica e interromper sua dependência do PT. Na melhor das hipóteses, o governo se arrastará até 2018, mantendo a sangria corrente; na pior, a esquerda naufragará junto ao PT como alternativa ideológica, deslocando o espectro para a direita e desta vez sem base para o futuro. Não é necessário apoiar o impeachment, mas abandonar o discurso de perseguição judicial é imprescindível. A reorganização precisa passar por uma nova avaliação das coalizões (reduzir atritos das políticas identitárias em troca de maior penetração social em um país ainda muito pobre) e por uma atualização programática, no sentido pretendido, mas não bem formulado, por Marina Silva: gestão econômica mais ortodoxa a serviço da redução de desigualdades e de modelos estratégicos de sustentabilidade. Após esse movimento a maioria não estará assegurada, mas não dependerá da renovação cada vez menos persuasiva de um discurso divisivo.
  2. O centro precisa promover maior dinamismo. Com ou sem PSDB, a energia social liberada em 2013 e renovada pelo impeachment em 2015 não tem grande consistência ideológica e isso não é, em si, problemático: basta entender que é necessário desenhar políticas públicas que procurem tratar os problemas de modo ativo, com menos escaramuças ideológicas. Uma das marcas pretendidas pelo PSDB é a qualidade da gestão, algo que não seduz justamente por ser um convite ao imobilismo em uma sociedade menos interessada em manter o status quo. A solução é promover mais fortemente o federalismo e a descentralização, permitindo maior acomodação das questões regionais e possibilitando a emergência de maior variação nos níveis inferiores de governo. Isso tornaria o sistema político mais dinâmico e, inevitavelmente, mais democrático.
  3. A direita conservadora tem problemas no Brasil por não conseguir defender suas bandeiras de modo coordenado. As repetidas derrotas, especialmente a recente na tentativa de redução da maioridade penal, deveriam mostrar a fraqueza das lideranças e motivar o surgimento de outras, mas o parasitismo que parlamentares conservadores operam em todos os governos dificulta isso. De todos os lados na disputa política brasileira, o conservadorismo é o que tem mais trabalho a fazer, por precisar construir alternativas viáveis na sociedade que não sejam meramente oportunistas e eticamente questionáveis (como Eduardo Cunha) ou fruto de histrionismos minoritários (como Jair Bolsonaro). Porém, se essa parte trabalhosa for superada de modo convincente, alternativas políticas baseadas em ideais conservadores podem constituir formidáveis participantes políticos – ainda que provavelmente não estejam prontos a apoiar nem metade das reformas econômicas liberais que o país precisa e terá de fazer nos próximos ciclos, por exemplo.

O que as três estratégias têm em comum é a tentativa de introduzir novos eixos de disputa política sem renunciar à necessidade cada vez maior de consertar o sistema político-partidário. Esses três grupos teriam, como é de se esperar, fortíssimas divergências ideológicas entre si, mas precisam concordar que um novo arranjo lhes será benéfico contra o atual sistema, transformado apenas em fisiologismo inconsequente. Em termos mais claros: os inimigos das forças políticas interessadas em promover seus ideais de modo democrático não são os adversários igualmente interessados. O inimigo é o sistema inerte, corrompido e interessado em sua manutenção, às expensas de uma representação mais adequada das questões políticas nacionais.

A consistência final do castelo de cartas

Mas se há opções (que certamente não se restringem às cogitadas na seção anterior), porque o sistema político permanece estagnado, como que à espera de sua própria destituição? O ser ou não ser do impeachment foi determinante para essa inatividade, ou é na verdade mais um sintoma de paralisia?

A verdade é que a política disputada nas ruas é muito diferente do Congresso, que tenta desajeitadamente se adaptar. A Lava Jato tem sua popularidade não apenas por seus méritos jurídicos, mas também por sua capacidade de estabelecer uma nova realidade política sem estar fazendo propriamente política. Um acordo em que alguns bodes expiatórios sejam sacrificados para que o sistema sobreviva é impossível hoje, e os líderes políticos definham enquanto aguardam o momento em que a página poderá ser virada. Mas o erro é considerar a Lava Jato apenas um capítulo: ela se transformou no pano de fundo inevitável, como o surgimento de Zelotes e Acrônimo constata. Um novo sistema precisa emergir nesse novo contexto sem qualquer expectativa de que o futuro seja uma volta ao passado pré-Lava Jato – até porque antes mesmo dela o contexto social já era outro.

Não haverá solução antes de 2018. O impeachment (ou a cassação) de Dilma Rousseff é uma resposta a crimes políticos que não podem ser ignorados. Não produzirá uma reorganização do sistema político de modo mais relacionado às novas condições sociais, regionais e ideológicas, mas terá impacto decisivo sobre as expectativas da população a respeito do funcionamento futuro das instituições políticas. O passo é rumo ao desconhecido, mas pelo menos é um passo à frente e poderá ser moldado por todos nós; agarrar-se a um sistema caduco é resistir aos anseios democráticos da população em nome de uma estabilidade insustentável – e indesejável.

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