Resenha de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

Victor Fermino
3 min readAug 20, 2015

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É difícil começar uma resenha geral d’O Fabuloso Destino de Amélie Poulain; é uma obra já consagrada e apreciada por críticos dos mais diferentes níveis intelectuais. É o mesmo que fazer uma crítica gastronômica de lasanha: todo mundo ama e já disse o que era possível de ser dito para concluir que é boa. Mas ainda assim, é preciso ter uma nova voz, dentre um oceano de vozes, para dar outro ângulo a essa fábula verde e escarlate.

O filme causa boas impressões desde o início por meio de dois elementos muito importantes para o espectador: estética e narrativa. Essas duas coisas estão obviamente presentes em qualquer filme, mas Amélie já começa consciente da importância desses dois artíficios em particular para a construção do mundo.

A estética da qual falo vem de uma utilização coerente e artística de uma paleta de cores extremamente vívida, que se concentra em tons de vermelho e verde, durante todo o filme, um esquema chamado de harmonia complementar, que é quando as cores são opostas. O filme usa os diferentes humores da história para regular a saturação das cores, mas a natureza desse esquema contrasta as cenas bem na maioria do tempo. O vermelho forte, geralmente associado a feminilidade, amor e paixão, complementa o verde, uma cor que traz à mente uma noção de natureza e juventude, e o filme glorifica esse contraste, especialmente na personagem de Amélie, que humaniza os conceitos associados a essas duas cores.

Essa excelente execução não se limita apenas às cores, mas também ao trabalho cinematográfico e de atuação: a utilização dos efeitos especiais de início do século XXI é apenas para momentos mais imaginativos, e o trabalho de edição em si contribui para que o filme tenha essa atmosfera de conto de fadas moderno, imagem essa que é apenas reforçada pelas ótimas atuações, ou, indo mais longe, pelas mais-do-que-ótimas caracterizações. Audrey Tautou tem um charme que ressoa por todo o mundo do filme, como se a aparência dela fosse o bastante para tornar aquela Europa verdejante e simples na coisa mais natural do mundo. Aqueles olhinhos, aquela boca e aquele cabelo são Amélie Poulain.

E o segundo aspecto importante que o longa fez certo, a narrativa, é menos pronunciado que a execução da estética, mas não é porque o filme é longo. Na verdade, a corrente de fatos secundários e situações aleatórias bem executadas à la Tristram Shandy fazem com que a história pareça avançar muito rapidamente: as personagens secundárias, ajudadas ou atrapalhadas pela protagonista, são interessantes o bastante para não precisarem de tanta exposição verbosa, confiando apenas em passagens rápidas e dramas cotidianos simples, que ajudam a construir a vida desse mundo. Essas correntes de eventos secundários é atrapalhada justamente pelo elemento que não deveria atrapalhá-la: a protagonista.

Não me leve a mal; Amélie é uma excelente personagem, e o mundo do filme se constrói por causa dela e da individualidade dela, das dúvidas dela e do amor dela, mas durante uma boa parte, a parte humana da personagem simplesmente se ausenta. No decorrer do filme, ela ajuda um homem a reencontrar sua infância e isso a ilumina para compreender melhor o próprio ego, o que serve para estabelecer o romance que dura o resto do longa. O problema é que apesar de vermos ela questionando seu estilo de vida no início e no pré-clímax, o período entre esses dois momentos é populado com uma Amélie figurante, despida de uma persona humana; seu desenvolvimento trava e só volta a ocorrer num pico quando a trama exige que ela o faça. Mas quando ocorre, vemos uma personagem finalmente florescer de forma gratificante, superando as inseguranças que a acompanharam desde o início e provando subliminarmente que não há nada de errado com seu coração. Ainda assim, apesar de amá-la, eu simplesmente não me apaixonei por Amélie Poulain, a personagem.

A harmonia entre estética, narrativa e todos os outros elementos que não mencionei (deixei de falar dos diálogos geniais, mas fica pra próxima) resultaram na construção de um mundo familiar e imersivo, e por esse eu me apaixonei. A geografia e a cultura social da Europa no filme demonstram uma visão otimista e atemporal esperada de uma obra de 2001. É fácil pra mim voltar e reassistir um longa assim, porque às vezes não é só sobre a história, mas sobre todas as histórias que o enredo do filme não conta. No fim das contas, eu amei esse filme. É só minha visão no meio de tantas outras, mas é, como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain me ensinou, uma visão única, e é isso que importa.

Originally published at www.opresentepaulistano.com.br.

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