Uma Noite de Verão

Yaankha Bharbara
4 min readJan 28, 2017

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“O amor está mais perto do ódio do que a gente geralmente supõe. São o verso e o reverso da mesma moeda de paixão. O oposto do amor não é ódio, mas a indiferença…” (Érico Veríssimo)

Era o fim de um dia quente de verão e as nuvens se acumulavam por sobre a paisagem de uma maneira curiosamente envolvente, pintando o céu, que já era iluminado pelos últimos raios solares, de um acinzentado singular, que se amarelava, e depois avermelhava, à medida que se aproximava ainda mais do Sol. E tudo aquilo ainda bordava, por entre as ondas leves que se movimentavam em sintonia com a brisa, um reflexo perfeito. Era poesia viva!

E aonde há poesia, há beleza. Aonde há beleza, há tentação. E tudo ali estava dobrado. Era o dia perfeito para muitas coisas, mas, especialmente, para o improvável, num ato de rebeldia desmedida, acontecer. E, feliz ou infelizmente, nenhuma expectativa alimentada vorazmente pela impetuosidade do cenário fora quebrada.

O Amor passeava por sobre aqueles grãos de areia, aquecendo-os com sua intensidade viva. Estava completamente descoberto de estigmas e, ainda assim, recoberto pelo mais suntuoso véu de pureza, que dançava num ritmo desconcertante, abraçando e libertando seu corpo sereno, mas na iminência de se incendiar. Faltava a ele apenas uma única faísca.

Foi então, num momento de distração, enquanto o Amor resolvera demorar um pouco mais sua atenção naquele retrato estonteante que ornava o horizonte, que seu corpo seu chocou de forma excessivamente violenta com outro, reconhecendo-o, de uma forma instantânea, como seu — e apenas seu.

O seu próprio corpo, comumente passivo, reclamava o do estranho, que na primeira fração de toque já se mostrara calorosamente impertinente. Seu coração, agora cobiçoso, ardia em seu peito. E o estranho provavelmente já sabia, pois a mão que lhe apoiava as costas, garantindo-lhe o mínimo de equilíbrio, também começara a pulsar, num ritmo incomodamente semelhante ao seu. Era possível sentir avidez em cada dedo. A avidez de ambos.

A consciência, completamente presunçosa, invadiu-lhe a mente, acalmando os medos que ainda nem havia notado que já começava a lhe embrulhar o estômago. O corpo do estranho reconhecera o seu. E reclamava o seu. Na mesma intensidade insana.

O Amor então, audacioso, subiu o olhar, até então firme em suas raízes. E subiu tão lentamente quanto foi possível, inspecionando cada pedaço daquele que queria com tamanha violência que lhe doía a alma. Quando enfim chegou aos olhos do estranho, perfeitamente negros, profundos e intensos, exatamente como uma noite deveria ser, encontrou-os passeando pelos seus cabelos da cor do fogo, ligeiramente ondulados, bailando segundo a vontade do vento, e, então, reconheceu toda aquela cobiça luxuriosamente excessiva no mesmo instante. E, quando o estranho saiu de seus cabelos e foi para o seus olhos, puxando um sorriso irritantemente sedutor, soube que ele já a tinha identificado. E, então, não pode deixar de sorrir também, mas sorriu com o olhar, um sorriso ardente e desafiador. Ódio…

Então, atraídos como dois ímãs de polos opostos unidos de maneira inevitável por um campo magnético, se beijaram. Amor e Ódio. Se beijaram. Suas bocas se chocaram com a mesma violência que seus corpos o fizeram. E tudo se inflamou. O mundo inteiro ardia em chamas. Aquilo era paixão.

Num momento estavam em pé, o Ódio passeando as mãos pelas costas do Amor e este lhe agarrando o pescoço com tamanha força, que respirar se tornava cada vez mais um desafio tentador. Um queria dominar o outro… Dominar, controlar, proteger. Tudo ao mesmo tempo.

No outro, caíram, graciosa e bruscamente, por sobre o chão, que os acolheu prontamente. Depois disso, tudo não passou de uma confusão borrada. Um queria rasgar a pele do outro e se enterrar ali. Queriam se misturar, fundir, tornar-se um — apenas paixão, nua, crua e bárbara.

Aquilo era a fusão de duas nebulosas feitas da mesma energia avassaladora, capaz de partir o mundo em dois e ainda reerguê-lo das cinzas. Aquilo era poder. Paixão é poder.

E seguiram nesse mesmo ritmo alucinante e lascivo por dias, meses, anos, segundos. Não sei. O tempo não quis interferir nessa relação que arrebatava a vida e convidava a morte; que inspirava os céus e inflamava a terra; que entrelaçava o amor e o ódio em uma só aura.

Mas à medida que misturavam, pedaços de um no outro, pensamentos se fundindo e impulsos domando os movimentos, a essência de cada um, feita da mesma matéria ardente, contraditória e impulsiva, se extinguia, queimadas exatamente pela paixão.

Pouco a pouco a intensidade foi diminuindo, o ardor se apaziguando, o ritmo se amansando e tanto o amor quanto o ódio sumindo.

Parecia crueldade se atentar àqueles sintomas desdenhando de tudo que estava envolvido ali. Era crueldade ver tudo aquilo acontecendo sem poder interferir. Então o tempo seguiu seu curso naturalmente desinteressante, o Sol deu espaço à Lua, que, tímida, assistira a tudo. As nuvens se espalharam, e a areia, chamuscada, começava a se esfriar.

O Amor e o Ódio, enfim, não podendo mais ignorar o que se passava, se separaram, lentamente, sem qualquer remorso ou dor. O Ódio, então, olhou para o Amor e não pode reconhecer aqueles fios acinzentados que escorriam pelos ombros apáticos. E quando este encontrou o olhar daquele não foi capaz de dizer a quem pertencia aquele azul esbranquiçado, sem vida ou emoção.

O Amor e o Ódio se levantaram e começaram a seguir caminhos desiguais. E, apesar do nome, ambos poderiam ser reconhecidos pelo mesmo apelido. Indiferença.

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Yaankha Bharbara

“A questão sobre escrever é que não sei se vou acabar me curando ou me destruindo” (Rupi Kaur)