para que você saiba onde estou
não sei o que fazer com um dia inteiro pra mim
não quero sair da cama
tenho que colocar um sorriso e levantar
tomar um banho
lavar a louça e passar o café
e me manter ocupado
mesmo contra minha vontade
passar um pano no chão da cozinha
escovar os dentes
fazer um novo currículo
sair entregando em cada estabelecimento comercial da cidade
mesmo contra a vontade
arranjar um emprego que não quero
aquela coisa de trabalhar oito horas por dia durante trinta anos
fico deprimido só de pensar
vestir um sorriso ás vezes é mais complicado do que parece
nem sempre é possível
é como colocar um cabide na boca
não sei o que fazer com um dia inteiro pra mim e não quero me ocupar, se tiver qualquer coisa planejada vou desmarcar e evitar falar com qualquer um
não quero ir ao churrasco ou ao pesqueiro ou a piscina ou ao shopping ou ao bar
não quero fazer nada
não quero sair com amigos, ou família, não quero ver ninguém
talvez começar outro seriado e depois outro e outro
e assistir tantos que não vou me lembrar de nada na semana seguinte
escutar música, nada triste ou melancólico
só qualquer coisa com uma mensagem bacana ou ritmo contagiante
ver outro documentário sobre racismo ou sobre o universo ou sobre algum animal em extinção ou sobre o sistema carcerário ou sobre o machismo ou sobre como os gays sofrem na rússia
enquanto eu mesmo vivo um drama gay aqui ao vivo e a cores
não em tantas cores quanto eu gostaria
as coisas estão em preto e branco
meio cinza
eu poderia dizer que estou em minas gerais, numa cidade do interior, onde a maioria é católica ou crente
ou no interior de são paulo
ou em londres
ou em qualquer lugar
não faz diferença
essa história se passa mais dentro do que fora
não sei se já falei sobre isso
sou um péssimo protagonista
acho que minha dificuldade em ser um protagonista decente está diretamente relacionado ao fato de eu sempre ter morado no interior
nunca numa cidade grande
ou talvez tenha a ver com o fato de eu ter me mudado demais ao longo da minha infância e adolescência, foram 20 casas no total, passando por 6 ou 7 cidades, de estados diferentes
poderia dizer que estou novamente no interior da bahia
entrando pra um grupo de teatro ou fazendo parte de um programa de rádio ou olhando para o mar e pensando em suicídio
como daquela vez que acabei um relacionamento virtual e pirei completamente pensando que era o fim
e não era
meu maior medo é me tornar o meu pai
e acabar não aguentando mais viver
e ter que acabar com isso
mas eu não penso em suicídio, acho que pensei sobre isso apenas uma vez de modo sério e foi rápido, jurei pra mim mesmo que não seguiria esse caminho
eu poderia dizer que estou criando minha própria história
na realidade estou numa ficção ruim
e não sou um bom protagonista
eu não acredito em deus e eu acho realmente que se ele existe ele é um grande de um canalha
minha irmã está no quarto lendo a bíblia enquanto na sala estou blasfemando
me confundo com o personagem que criei pra mim mesmo
aquela velha coisa de não saber quem sou
ou estar eternamente em construção
sou uma merda de protagonista que não faz nada
absolutamente nada
e nem quer fazer
e nem se esforça
e antes eu me sentia tão inteligente com respostas irônicas e rápidas e a cada dia que passa estou mais lento
e me sinto burro
tão burro
e não sei como reverter o processo
não consigo argumentar
não me lembro das coisas
as informações simplesmente parecem desaparecer da minha mente
e eu fico nervoso com facilidade
eu gaguejo
eu tremo
eu quero fazer coisas e não consigo e por não conseguir desisto e falo que nem queria mesmo
e procuro novas formas de me sentir importante e nenhuma delas funciona
e procuro novas formas de dizer pra mim mesmo que estou bem sozinho
mesmo sabendo que não estou bem sozinho
e não quero ninguém dizendo o contrário
dizendo que eu preciso de sexo ou romance
ou de alguém
talvez eu precise
mas não quero
não agora
eu não tô pronto pra um relacionamento
eu não tô pronto nem pra levantar e sair da cama
eu não tô pronto nem pra ter uma conversa banal com quem quer que seja
não quero ninguém por perto
não sou o personagem principal nem da minha própria história
eu sempre me apoio em alguém
eu sou o coadjuvante
e eu não devia permitir isso
esperando sempre algo acontecer
ou alguém fazer algo
e nunca tomando atitude
sou incapaz de tomar as rédeas da situação
e tenho a tendência de culpar os outros pelos meus erros
meu pai suicida
minha relação no estilo norman bates com minha mãe
a sociedade
procuro coisas que expliquem meu fracasso
meus amigos, o lugar onde moro, minha instabilidade emocional
estou numa sala com tapete bonito multicolorido onde durmo num colchão fino com edredons de segunda mão no terceiro piso de um prédio de cinco andares
não sei bem o que tô fazendo aqui, só sei que tô fugindo do que deveria estar fazendo
era pra eu estar estudando e me tornando quem eu sempre quis ser
era pra eu estar pensando na pessoa que eu imaginei que seria quando eu era adolescente e agora nem lembro mais
era para eu estar trepando com dezenas de caras
é isso que um jovem gay deve fazer
viver
experimentar
foder com todos os caras que aparecer e quem sabe se apaixonar
eu conheci o sexo de forma errada e isso meio que estragou todas as minhas relações depois disso
eu tinha sete anos quando um vizinho mais velho achou que era uma boa ideia convencer duas crianças a transarem
eu era uma dessas crianças
não rolou penetração nem nada assim, eramos crianças e não sabíamos o que estávamos fazendo
mas por conta disso eu passei grande parte da minha infância achando que tinha pego aids
e me sentia sujo e errado
e agora
não sou tão jovem quanto penso que sou
meu corpo já está se deteriorando e eu ainda não sei o que fazer da minha vida
não sei o que fazer pra conseguir o que quero
eu queria ser alguém que as pessoas respeitassem ou pelo dissessem “olha ele tem algum talento” e pra isso eu vivo tentando provar aos outros e a mim mesmo que tenho algum
quero ser um escritor e viver de escrever
ou ganhar dinheiro gravando vídeos pra internet
e se nenhuma das opções darem certo eu provavelmente vou estar num caixa de supermercado do bairro mais próximo
perguntando coisas como “mais alguma coisa, senhor?” e dizendo “obrigado, volte sempre”
não que tenha algo errado nisso, é uma profissão digna como qualquer outra
a gente faz o que for preciso pra ter o que comer e um teto em cima de nossas cabeças
provavelmente as coisas que sonho não vão se tornar realidade
e saber disso me paralisa
fico pensando que tipo de sonhos as pessoas que se conformaram com trabalhos horríveis tiveram que abrir mão
e isso me dói
minha mãe me disse outro dia “espero que você consiga ser muito famoso, porque do contrário irá morrer frustrado”
não estava claro pra mim, como estava pra ela, que minha vontade sempre foi ser famoso
aquilo me pareceu fútil
não sei se é isso mesmo
ás vezes é fácil demais mentir pra mim mesmo
e o pior é que acredito
eu sempre dizia que queria fazer algo para ajudar as pessoas, fazer as pessoas pensarem em coisas que elas não estavam acostumadas a pensar e fazer as pessoas rirem e melhorar um pouco o dia delas e todas essas coisas
mas ser famoso simplesmente por ser famoso nunca me passou pela cabeça
ai eu conheci um cara num app de pegação e marcamos de se conhecer
no interior de minas gerais as coisas são complicadas se você é um cara gay
assim como no sertão do nordeste ou no acre
ele disse que não gostava de andar de mãos dadas em público nem beijar porque ele respeita muito as outras pessoas pra isso, pena que não respeita a si mesmo, negando quem ele é para ser aceito, mas quem sou eu pra julgar
a gente faz o que é preciso pra se manter vivo e funcionando
a maioria dos caras nos apps eram partes de corpos e quase nenhum tinha rosto
todos discretos
no sigilo
fora do meio
depois disso eu desisti de tentar conhecer alguém
mantenho certa distância
e vou guardando as coisas que me acontecem todas pra mim até que elas precisem sair
então escrevo
e não sou um bom protagonista
nem dos meus próprios textos
nunca gostei de ser o centro das atenções, mesmo secretamente desejando ser
se essa história se passasse num cômodo a mobília provavelmente daria um melhor protagonista do que eu
eu só quero dormir e não falar, porque eu sei que se falar vão ver que na realidade não tenho nada a dizer
e não gosto dessa coisa de artista sofrido que só produz quando está triste, isso não é pra mim
sou contra essa romantização do artista sofredor
isso é bonito nos textos mas na realidade não
eu produzo mais e melhor quando estou feliz e empolgado com a vida
pena que isso não acontece com a frequência que gostaria
queria conseguir chorar
colocar as coisas pra fora
colocar as coisas em perspectiva
descer com as costas escorregando pelo azulejo
com meu gato miando na porta
eu preciso de elogios o tempo todo
para me lembrar que não sou um monstro
e costumo me esconder
e pareço ser mais inteligente do que sou justamente por não revelar demais
o silêncio é meu esconderijo
acho até engraçado essas pessoas que dizem que tem inimigos, todos que tenho estão dentro da minha cabeça
tudo na vida trás uma lição e mesmo assim sinto que não tenho aprendido nada
se a vida fosse um teste eu seria reprovado
e me lembro da escola
do medo que eu tinha
do bullying
das coisas horríveis que me diziam
por eu não me enquadrar no que se espera de um menino, por não gostar de carros e esportes e por falar de maneira precoce sobre não acreditar em deus e andar na maioria das vezes no grupinho das meninas
todo dia meu pai me dava um real para o lanche. comprava um toddynho que custava sessenta centavos, o troco eu guardava, quarenta centavos por dia
eu estudava de manhã e não comia merenda. eu achava que comer merenda na escola era coisa de pobre. coisa de quem não tem o que comer em casa. então eu não comia. quando criança eu era um escroto. eu fui criado pra ser um escroto. meu pai era racista do tipo que fazia piada com negros o tempo todo. mesmo tendo origem negra. o racismo faz isso com as pessoas. é uma estrutura que faz os próprios negros se odiarem e reproduzirem o discurso
eu me sinto culpado até hoje por ter me sentido tão aliviado quando ele morreu
a maioria das coisas que me lembro dele são coisas ruins
ele bebendo demais
ele brigando por estar bêbado
ele perseguindo minha mãe
o dia que quase quebrei um vaso de cerâmica na cabeça dele
o dia que ele tentou se matar a primeira vez e tomou veneno mas eu dizia pra todo mundo que tinha sido enfarte
e eu não quero parecer maldoso ao falar essas coisas do meu próprio pai e gostaria de ser iluminado o suficiente para perdoa-lo, mas não cheguei lá ainda e nem sei se chegarei
se minha irmã lesse isso certamente ficaria brava comigo. e não falaria nada. porque somos assim. guardamos tudo e fingimos que está tudo bem. até que algo aconteça e tudo venha com força a superfície, como num tsunami e as coisas saiam do controle
estou eternamente preso nessa rodinha de hamster
andando sem chegar a lugar nenhum
com quatro aluguéis atrasados e nenhuma vontade de viver
e é nesse ponto onde estou agora.