para que você saiba onde estou

Hellen Franco
8 min readFeb 14, 2017

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não sei o que fazer com um dia inteiro pra mim

não quero sair da cama

tenho que colocar um sorriso e levantar

tomar um banho

lavar a louça e passar o café

e me manter ocupado

mesmo contra minha vontade

passar um pano no chão da cozinha

escovar os dentes

fazer um novo currículo

sair entregando em cada estabelecimento comercial da cidade

mesmo contra a vontade

arranjar um emprego que não quero

aquela coisa de trabalhar oito horas por dia durante trinta anos

fico deprimido só de pensar

vestir um sorriso ás vezes é mais complicado do que parece

nem sempre é possível

é como colocar um cabide na boca

não sei o que fazer com um dia inteiro pra mim e não quero me ocupar, se tiver qualquer coisa planejada vou desmarcar e evitar falar com qualquer um

não quero ir ao churrasco ou ao pesqueiro ou a piscina ou ao shopping ou ao bar

não quero fazer nada

não quero sair com amigos, ou família, não quero ver ninguém

talvez começar outro seriado e depois outro e outro

e assistir tantos que não vou me lembrar de nada na semana seguinte

escutar música, nada triste ou melancólico

só qualquer coisa com uma mensagem bacana ou ritmo contagiante

ver outro documentário sobre racismo ou sobre o universo ou sobre algum animal em extinção ou sobre o sistema carcerário ou sobre o machismo ou sobre como os gays sofrem na rússia

enquanto eu mesmo vivo um drama gay aqui ao vivo e a cores

não em tantas cores quanto eu gostaria

as coisas estão em preto e branco

meio cinza

eu poderia dizer que estou em minas gerais, numa cidade do interior, onde a maioria é católica ou crente

ou no interior de são paulo

ou em londres

ou em qualquer lugar

não faz diferença

essa história se passa mais dentro do que fora

não sei se já falei sobre isso

sou um péssimo protagonista

acho que minha dificuldade em ser um protagonista decente está diretamente relacionado ao fato de eu sempre ter morado no interior

nunca numa cidade grande

ou talvez tenha a ver com o fato de eu ter me mudado demais ao longo da minha infância e adolescência, foram 20 casas no total, passando por 6 ou 7 cidades, de estados diferentes

poderia dizer que estou novamente no interior da bahia

entrando pra um grupo de teatro ou fazendo parte de um programa de rádio ou olhando para o mar e pensando em suicídio

como daquela vez que acabei um relacionamento virtual e pirei completamente pensando que era o fim

e não era

meu maior medo é me tornar o meu pai

e acabar não aguentando mais viver

e ter que acabar com isso

mas eu não penso em suicídio, acho que pensei sobre isso apenas uma vez de modo sério e foi rápido, jurei pra mim mesmo que não seguiria esse caminho

eu poderia dizer que estou criando minha própria história

na realidade estou numa ficção ruim

e não sou um bom protagonista

eu não acredito em deus e eu acho realmente que se ele existe ele é um grande de um canalha

minha irmã está no quarto lendo a bíblia enquanto na sala estou blasfemando

me confundo com o personagem que criei pra mim mesmo

aquela velha coisa de não saber quem sou

ou estar eternamente em construção

sou uma merda de protagonista que não faz nada

absolutamente nada

e nem quer fazer

e nem se esforça

e antes eu me sentia tão inteligente com respostas irônicas e rápidas e a cada dia que passa estou mais lento

e me sinto burro

tão burro

e não sei como reverter o processo

não consigo argumentar

não me lembro das coisas

as informações simplesmente parecem desaparecer da minha mente

e eu fico nervoso com facilidade

eu gaguejo

eu tremo

eu quero fazer coisas e não consigo e por não conseguir desisto e falo que nem queria mesmo

e procuro novas formas de me sentir importante e nenhuma delas funciona

e procuro novas formas de dizer pra mim mesmo que estou bem sozinho

mesmo sabendo que não estou bem sozinho

e não quero ninguém dizendo o contrário

dizendo que eu preciso de sexo ou romance

ou de alguém

talvez eu precise

mas não quero

não agora

eu não tô pronto pra um relacionamento

eu não tô pronto nem pra levantar e sair da cama

eu não tô pronto nem pra ter uma conversa banal com quem quer que seja

não quero ninguém por perto

não sou o personagem principal nem da minha própria história

eu sempre me apoio em alguém

eu sou o coadjuvante

e eu não devia permitir isso

esperando sempre algo acontecer

ou alguém fazer algo

e nunca tomando atitude

sou incapaz de tomar as rédeas da situação

e tenho a tendência de culpar os outros pelos meus erros

meu pai suicida

minha relação no estilo norman bates com minha mãe

a sociedade

procuro coisas que expliquem meu fracasso

meus amigos, o lugar onde moro, minha instabilidade emocional

estou numa sala com tapete bonito multicolorido onde durmo num colchão fino com edredons de segunda mão no terceiro piso de um prédio de cinco andares

não sei bem o que tô fazendo aqui, só sei que tô fugindo do que deveria estar fazendo

era pra eu estar estudando e me tornando quem eu sempre quis ser

era pra eu estar pensando na pessoa que eu imaginei que seria quando eu era adolescente e agora nem lembro mais

era para eu estar trepando com dezenas de caras

é isso que um jovem gay deve fazer

viver

experimentar

foder com todos os caras que aparecer e quem sabe se apaixonar

eu conheci o sexo de forma errada e isso meio que estragou todas as minhas relações depois disso

eu tinha sete anos quando um vizinho mais velho achou que era uma boa ideia convencer duas crianças a transarem

eu era uma dessas crianças

não rolou penetração nem nada assim, eramos crianças e não sabíamos o que estávamos fazendo

mas por conta disso eu passei grande parte da minha infância achando que tinha pego aids

e me sentia sujo e errado

e agora

não sou tão jovem quanto penso que sou

meu corpo já está se deteriorando e eu ainda não sei o que fazer da minha vida

não sei o que fazer pra conseguir o que quero

eu queria ser alguém que as pessoas respeitassem ou pelo dissessem “olha ele tem algum talento” e pra isso eu vivo tentando provar aos outros e a mim mesmo que tenho algum

quero ser um escritor e viver de escrever

ou ganhar dinheiro gravando vídeos pra internet

e se nenhuma das opções darem certo eu provavelmente vou estar num caixa de supermercado do bairro mais próximo

perguntando coisas como “mais alguma coisa, senhor?” e dizendo “obrigado, volte sempre”

não que tenha algo errado nisso, é uma profissão digna como qualquer outra

a gente faz o que for preciso pra ter o que comer e um teto em cima de nossas cabeças

provavelmente as coisas que sonho não vão se tornar realidade

e saber disso me paralisa

fico pensando que tipo de sonhos as pessoas que se conformaram com trabalhos horríveis tiveram que abrir mão

e isso me dói

minha mãe me disse outro dia “espero que você consiga ser muito famoso, porque do contrário irá morrer frustrado”

não estava claro pra mim, como estava pra ela, que minha vontade sempre foi ser famoso

aquilo me pareceu fútil

não sei se é isso mesmo

ás vezes é fácil demais mentir pra mim mesmo

e o pior é que acredito

eu sempre dizia que queria fazer algo para ajudar as pessoas, fazer as pessoas pensarem em coisas que elas não estavam acostumadas a pensar e fazer as pessoas rirem e melhorar um pouco o dia delas e todas essas coisas

mas ser famoso simplesmente por ser famoso nunca me passou pela cabeça

ai eu conheci um cara num app de pegação e marcamos de se conhecer

no interior de minas gerais as coisas são complicadas se você é um cara gay

assim como no sertão do nordeste ou no acre

ele disse que não gostava de andar de mãos dadas em público nem beijar porque ele respeita muito as outras pessoas pra isso, pena que não respeita a si mesmo, negando quem ele é para ser aceito, mas quem sou eu pra julgar

a gente faz o que é preciso pra se manter vivo e funcionando

a maioria dos caras nos apps eram partes de corpos e quase nenhum tinha rosto

todos discretos

no sigilo

fora do meio

depois disso eu desisti de tentar conhecer alguém

mantenho certa distância

e vou guardando as coisas que me acontecem todas pra mim até que elas precisem sair

então escrevo

e não sou um bom protagonista

nem dos meus próprios textos

nunca gostei de ser o centro das atenções, mesmo secretamente desejando ser

se essa história se passasse num cômodo a mobília provavelmente daria um melhor protagonista do que eu

eu só quero dormir e não falar, porque eu sei que se falar vão ver que na realidade não tenho nada a dizer

e não gosto dessa coisa de artista sofrido que só produz quando está triste, isso não é pra mim

sou contra essa romantização do artista sofredor

isso é bonito nos textos mas na realidade não

eu produzo mais e melhor quando estou feliz e empolgado com a vida

pena que isso não acontece com a frequência que gostaria

queria conseguir chorar

colocar as coisas pra fora

colocar as coisas em perspectiva

descer com as costas escorregando pelo azulejo

com meu gato miando na porta

eu preciso de elogios o tempo todo

para me lembrar que não sou um monstro

e costumo me esconder

e pareço ser mais inteligente do que sou justamente por não revelar demais

o silêncio é meu esconderijo

acho até engraçado essas pessoas que dizem que tem inimigos, todos que tenho estão dentro da minha cabeça

tudo na vida trás uma lição e mesmo assim sinto que não tenho aprendido nada

se a vida fosse um teste eu seria reprovado

e me lembro da escola

do medo que eu tinha

do bullying

das coisas horríveis que me diziam

por eu não me enquadrar no que se espera de um menino, por não gostar de carros e esportes e por falar de maneira precoce sobre não acreditar em deus e andar na maioria das vezes no grupinho das meninas

todo dia meu pai me dava um real para o lanche. comprava um toddynho que custava sessenta centavos, o troco eu guardava, quarenta centavos por dia

eu estudava de manhã e não comia merenda. eu achava que comer merenda na escola era coisa de pobre. coisa de quem não tem o que comer em casa. então eu não comia. quando criança eu era um escroto. eu fui criado pra ser um escroto. meu pai era racista do tipo que fazia piada com negros o tempo todo. mesmo tendo origem negra. o racismo faz isso com as pessoas. é uma estrutura que faz os próprios negros se odiarem e reproduzirem o discurso

eu me sinto culpado até hoje por ter me sentido tão aliviado quando ele morreu

a maioria das coisas que me lembro dele são coisas ruins

ele bebendo demais

ele brigando por estar bêbado

ele perseguindo minha mãe

o dia que quase quebrei um vaso de cerâmica na cabeça dele

o dia que ele tentou se matar a primeira vez e tomou veneno mas eu dizia pra todo mundo que tinha sido enfarte

e eu não quero parecer maldoso ao falar essas coisas do meu próprio pai e gostaria de ser iluminado o suficiente para perdoa-lo, mas não cheguei lá ainda e nem sei se chegarei

se minha irmã lesse isso certamente ficaria brava comigo. e não falaria nada. porque somos assim. guardamos tudo e fingimos que está tudo bem. até que algo aconteça e tudo venha com força a superfície, como num tsunami e as coisas saiam do controle

estou eternamente preso nessa rodinha de hamster

andando sem chegar a lugar nenhum

com quatro aluguéis atrasados e nenhuma vontade de viver

e é nesse ponto onde estou agora.

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