O avassalador Silêncio de Scorsese

IHU
8 min readFeb 23, 2017

Texto Rico Machado e Jeferson Rodrigues

Na quinta-feira, 9 de março, estreia no Brasil o filme Silêncio, de Martin Scorsese, que narra a saga dos jesuítas em missão no Japão do século XVII. A adaptação cinematográfica do romance homônimo do escritor japonês Shusaku Endo, publicado em 1966, retrata os dilemas existenciais da fé cristã no país oriental durante uma época de fortes contradições culturais, marcadas pelo culto à beleza e à disciplina e, ao mesmo tempo, por atrocidades inomináveis.

Embora a história seja ambientanda no Japão, as gravações foram feitas na cidade de Taipei, em Taiwan

A natureza indômita da geografia dos arredores de Taipei, capital de Taiwan, onde foi rodado o filme ambientado no Japão, nem de longe lembra o agito da barulhenta e cosmopolita Nova Iorque de Scorsese, um diretor fascinado pela quietude. Os personagens principais de Silêncio são os kirishitan, que eram os cristãos escondidos no país do Sol Nascente. O tema central da obra são os lapsi que significa, literalmente, os “deslizados”, isto é, aqueles que não foram capazes de se manter de pé diante da dureza da perseguição dos Xoguns de Tokugawa, naquele que foi intitulado Período Edo, que compreende o intervalo entre 24 de março de 1603 e 3 de maio de 1868.

A reação dos líderes políticos e militares japoneses aos missionários é, antes de qualquer coisa, o resultado do violento choque de dois mundos. O grande entrave do projeto europeu de expansão do cristianismo no país nipônico foi o encontro com os Xoguns (cujo termo é uma abreviação de Seii Taishōgun, que significa algo como “Grande General Apaziguador dos Bárbaros”). Desta colisão emergem os temas da fé, sobretudo a relação entre esperança e desespero, terror e força interior, queda e renascimento.

Personagens

A trama recupera a história do jesuíta português Cristóvão Ferreira, conhecido no Japão por Sawano Chuan, que em 1609 partiu para a ilha nipônica com a missão de catequizar os moradores locais. Era Ferreira quem enviava à Europa cartas sobre a celebração dos mártires cristãos perseguidos pelos xoguns japoneses. De repente chega a história a Portugal de que o próprio Cristóvão Ferreira havia sido preso, quando, então, partem em sua busca dois de seus jovens alunos, Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe.

“Silence não é “apenas” uma obra-prima destinada a deixar sua marca no cinema dos últimos anos. O filme (..) representa um presente inesperado que deveria ser agradecido por todos aqueles que, de diferentes maneiras, estão envolvidos na missão apostólica da Igreja” — Gianni Valente

Encontro entre culturas

O primeiro aspecto com que nos deparamos no filme é um encontro entre mundos culturais completamente diferentes. Eles são incompatíveis? Depende. Sempre existe a oportunidade de um crescimento mútuo. A diferença não é um problema. Ela é a condição inicial para novos aprendizados. Sem ela cairíamos no espaço monótono e confortável dos iguais e uniformes. Como os sujeitos que se encontram, embora portando tradições milenares, sempre estão alheios aos confrontos e conflitos, típico de uma existência frágil. Nesse sentido, não é possível garantir que tudo, no intercâmbio intercultural, possa transcorrer bem. É importante dizer: o encontro com o outro diferente é a oportunidade para ampliar os horizontes.

Cultura e Religião, uma combinação que deu certo?

O segundo aspecto está relacionado, ao menos subentendido, com os elementos religiosos das culturas que se encontraram. São mundos inseparáveis. Sem a cultura, a religião cairia num espiritualismo vazio, inominado, sem rosto concreto. Sem a religião, muito embora sendo controversa, perderia sua alma. Existem elementos que extrapolam os limites institucionais, e alcançam aqueles(as) que mesmo não crendo em uma tradição específica, acabam vivendo na companhia de um Mistério, que encontra eco nos próprios traços culturais. E como falamos de sentidos amplos da existência, podemos dizer que essa experiência acaba sendo horizonte gerador de sentido para as existências, superando suas dificuldades.

A missão: compromisso com o evangelho

O evangelho feito em missão é o terceiro aspecto do filme. Os missionários movidos pelo mandato de Jesus, “Ide e proclamai o Evangelho”, não hesitam em buscar novos lugares para que esse anúncio seja concretizado. O evangelho é a história de um Deus que entra na história humana, reconhece seus dramas e suas potencialidades, e projeta um horizonte mais amplo, numa busca para além sem esquecer do aqui , do sentido radical e pleno para o existir humano. Isso requer viver o seu reinado, que não conta com benesses imperiais e infantaria militar, mas conta com uma vivência da justiça e do direito para todos como expressão real de um cotidiano sem desigualdades e saudável.

Pe. Geral da Companhia de Jesus entre 2008–2016
Missionário no Japão durante 44 anos (1961–1968 e 1971–2008)

A evangelização cristã é a expressão de um evangelho em movimento. Não é um discurso pronto, mas uma companhia salutar. Aprendendo a cada dia como o Mistério inesgotável de Deus se dá a reconhecer nas muitas tradições de fé. E nessa busca, reluz a dignidade de todas as tradições como buscadoras e companheiras nesse percurso da verdade. Ninguém detém o monopólio do Mistério, nem tem a última palavra, até algumas palavras podem ser decisivas, mas não definitivas. E nessa postura, não subsiste uma evangelização por imposição, mas apenas por atração onde o imperativo fundamental é o encontro e o diálogo.

Existe uma expectativa real de que todos(as) possam conhecer e aderir ao projeto de Cristo anunciado pela igreja. Os missionários “levam” algo/alguém que faz sentido para suas existências. Mas, isso pode não encontrar o mesmo eco nas culturas aonde se chega. Como evangelizar? A vivência genuína daquilo em que se acredita, torna-se o grito mais eloquente, para quem vendo os gestos, desperte a seguinte indagação: por que ele(a) é diferente? É uma diferença que desperta curiosidade pelo outro.

“Diálogo é o encontro com o outro, e não com a ideia que dele fazemos” — Claudio Monge

“Por isso, eu vejo no filme uma mensagem para a Igreja de hoje, com uma espiritualidade forte, que inspira a fé em Deus” — James Martin, diretor da Revista América

E quando não dá certo?

Há muitas pessoas que para professar sua fé vivem nos submundos das existências, da clandestinidade, ou precisam até mesmo fugir do lugar de origem. E esse é o quarto aspecto do filme. Não são poucos aqueles(as) que são violentados simbólica e fisicamente naquilo que acreditam como sentido radical para a própria vida. Nem sempre dá certo. As resistências são grandes. A hostilidade religiosa cresce assustadoramente no nível social e estatal (nos países onde a liberdade religiosa não é garantida constitucionalmente). E em todas as tradições religiosas, dia após dia, há mártires.

Abdicar da própria religiosidade ou viver na clandestinidade? É a proposição do estado japonês aos missionários e cristãos convertidos. Eles são submetidos à tortura para abandonar a fé (apostasia) ou acabam morrendo por essa mesma fé. No caso do Japão, diante de uma evangelização sem imposição, qual era o risco que a fé cristã trazia para o estado japonês? O que os motivou a trucidar a fé dos outros? A motivação era civil ou religiosa? Ou ambas?

Os tempos de tempestade são aqueles destinados a desenvolver outras habilidades e sensibilidade para encontrar Deus. Ouvir o silêncio ensurdecedor do próprio interior, o silêncio dos que disseram não. Por outro lado, é tempo de abrir os ouvidos, de perceber os gemidos dos inocentes, de colocar os ouvidos na terra para escutar a grama crescer. Será preciso cultivar uma fé mais simples, sem tantos dogmas, sem muitas certezas, buscando sempre as perguntas e as aventuras de um presente prenhe de futuro, sem descuidar daquilo que importa.

Silêncio de Deus

Diante do sofrimento inocente, sem muitas dificuldades irrompe o grito por Deus, pedindo socorro ou explicações. Mas, o silêncio faz com que se viva a experiência radical de uma espera que nos extrapola. Não existem explicações. E isso muitas pessoas vivem na sua busca humana por Deus, na sensação de abandono, de vazio interior. É desta experiência que brota uma nova vivência de fé como aposta de confiança.

A vida é um processo, que na sua múltipla teia, requer confronto com situações difíceis. Em vez de respostas prontas, é o mistério do silêncio que irrompe na maioria dos casos. Em algum momento, todo o ser humano irá se defrontar com essa situação. É do silêncio que surge a inspiração para um mundo realmente novo, onde caibam todos e todas e onde haja condições de vida digna aos seres humanos.

Assista ao trailer

Ficha Técnica

Silêncio (Silence, título original)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Jay Cocks e Martin Scorsese, inspirado na obra homônima de Shûsaku Endô
Com Andrew Garfield, Adam Driver e Liam Neeson
Ano 2016 | 2h 41min

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*Todas as imagens utilizadas no texto são de divulgação do filme Silêncio.

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