foto: Leandro Pagliaro/Rio Comicon

O que aprendi em 1597 dias à frente de uma editora independente

rachel gontijo araujo
9 min readJan 26, 2016

Em setembro de 2014 A Bolha se mudou para o 2˚ andar da Comuna, em Botafogo, onde montou uma livraria, espaço de convivência, um quartel general, estreitando ainda mais os laços com o espaço de trocas e pensamento em cultura, que é a Sorocaba 585.

Quinta-feira, 19 de novembro, houve um incêndio em nosso espaço. Ninguém se feriu. Felizmente nosso estoque principal continua na Bhering, e nossas publicações estão fora de perigo. No momento, ainda estamos levantando os danos no estoque da livraria e na estrutura física. Mas não paramos de trabalhar. Cassius Augusto, Gabriel Carvalho, Ingrid Kita, Igor Machado, Lucas Gehre, Virgílio Neto e eu continuamos lutando sem parar para a sustentabilidade dos projetos da editora, sejam eles no âmbito editorial, administrativo, de comunicação e distribuição.

Depois de quatro anos sem a possibilidade de investimentos por parte do governo e convivendo com a falta de visão e mudez de instituições bancárias, quatro anos lutando para não entender as dificuldades financeiras e de financiamento como reconhecimento de falência do projeto, carregando caixas e mais caixas de livros, escada abaixo, escada acima, de mais de uma dezena de feiras onde só conseguia ir ao banheiro duas vezes em mais de nove horas em pé, de noites sem dormir pensando em como honrar prazos de pagamento e continuar publicando, sem tempo para me dedicar ao meu próprio trabalho como escritora, contra vento e maré e a ideia de especialização comercial, A Bolha pega fogo, mas ainda permanece/continua de pé, trabalhando para abertura de espaços verdadeiramente criativos no âmbito da economia, da cultura do país e na contestação de um regime que se demonstra muitas vezes neutro perante o potencial destes novos espaços.

Antiga Fábrica da Bhering, 2010

A Bolha surgiu em 2008/2009 na época em que, eu, Rachel Gontijo Araujo, e Stephanie Sauer, cursávamos Mestrado em Belas Artes na Escola do Instituto de Arte de Chicago e brincávamos com bolhas de sabão gigantes compradas na farmácia Walgreens na Rua North Clark. Nós pensávamos em uma maneira de voltar juntas para o Brasil e acreditávamos que haveria espaço para autores, artistas, ainda não conhecidos, espaço para uma outra realidade editorial, onde linguagens de risco pudessem se tornar mais visíveis. A verdade é que nós queríamos trabalhar só com aquilo que nos dava prazer, acreditávamos que com A Bolha poderíamos publicar só o de que gostávamos e continuar a escrever.

Não nos interessava essa distância humana entre público e editor/editora, editor-autor, autor-público. Não nos interessava a estandartização em massa e falta de ousadia do mercado editorial tradicional que ninguém (com poucas exceções, claro) da chamada grande mídia ousava, ousa, discutir, mas que estava ali na cara: era só adentrar uma dessas livrarias-shopping centers, essa "invenção cômoda”, a quem o BNDES adora dar dinheiro, para perceber a visível falta de ousadia nas escolhas do que se publicava por aqui. Quando fundamos a editora, a ideia era justamente dar visibilidade, tornar acessível, dentro e fora do país, trabalhos de artistas, como diria Hilda Hilst, que não tinham medo da própria carne. Trabalhos que ninguém no Brasil tinha coragem de publicar e que ficavam por muito tempo invisíveis justamente pelo risco que estes artistas assumiam no próprio trabalho. Jamais nos interessou a aceitação das regras do mercado editorial, aqui já sacralizado, que insistia e ainda hoje insiste em perpetuar uma determinada configuração que tem como base um sistema discricionário, subserviente a regras e a uma mentalidade quantitativa, industrial. Nunca aspiramos a ser e nunca seremos uma editora industrial.

Já no Brasil, em 2010, após encontrarmos duas casinhas que ficavam uma do lado da outra, destruídas, no terraço da Antiga Fábrica Bhering, no Santo Cristo, Stephanie e eu decidimos que a sede da editora seria no Rio de Janeiro. Fechamos o contrato de locação para construção e reforma do local antes mesmo de termos onde morar no Rio. Ninguém queria aquele lugar, mas enxergamos ali uma possibilidade física de começo para A Bolha. A reforma durou quase um ano e nos custou um dinheiro que não tínhamos. Mas valeu a pena, aquele lugar se transformou para a gente em um parque de experimentações. Naquela época, Stephanie se dividia entre a Califórnia e o Brasil e eu, entre o Rio de Janeiro, Brasília e Estados Unidos.

Em setembro de 2011, abrimos a sede da editora no terraço da Bhering e finalmente lançamos a editora para o público. Já com dois livros publicados: Je Nathanael e Seu Corpo Figurado.

A Bolha Móvel em Santa Teresa — RJ, 2015

Entre 2011–2015 publicamos trinta livros entre narrativas visuais e literatura independente. Dentre estes, um dos projetos de que tenho mais orgulho: fomos responsáveis por publicar os primeiros trabalhos de Hilda Hilst na América do Norte (The Obscene Madame D, 2012/ Letters from a Seducer, 2014). Fluxo-Floema será publicado em 2016. Compramos os direitos destes três trabalhos da Hilda em 2009/2010 e com a ajuda de uma grande amiga, escritora e tradutora, Nathanael, que havia sido minha professora durante o Mestrado na Escola do Instituto de Arte de Chicago, viajei para Nova York e fechamos uma parceria de coedição com a editora independente nova-iorquina Nightboat Books. A ideia era tentar dar o máximo possível de visibilidade e ter um canal de distribuição à altura dos trabalhos de Hilst. Escolhemos os tradutores, coordenamos de maneira incansável os processos de revisão técnica das traduções, convidamos o artista brasileiro Virgílio Neto para fazer o projeto das capas. Meses, anos de trabalho, que por si sós, para mim já fizeram valer a pena a abertura d’A Bolha. No período, 2009/2010 também fomos descobrindo em cada livro com que tipo de pessoas gostaríamos de trabalhar;

Com Moomin, uma das publicações que queríamos que fosse a primeira a ser lançada pela editora, me desloquei, fugi, até Bologna (Itália), por três dias enquanto estava numa residência artística em Nova York, porque, pensei, na minha falta de experiência, ingenuidade, que se pegasse um avião e fosse conversar pessoalmente com a empresa detentora dos direitos, na feira de Bologna, mesmo sem catálogo, mesmo sem que A Bolha houvesse sido lançada oficialmente, que conseguiria o direito da coleção da sequência completa de quadrinhos de Tove Jansson. Obviamente, não consegui os direitos naquela época, mas entendi ali que não queria pertencer a um mercado onde o fator humano não importava em quase nada. Anos depois, corri atrás de Moomin mais uma vez e estamos aqui trabalhando para lançar dois volumes por ano de um trabalho percuciente, de uma literatura que tem nos acompanhado em todos estes anos de construção da editora.

Com Gary Panter, aprendi que o aspecto humano era sim iniludível, pelo menos em alguns dos espaços editoriais neste mundo e, para conseguir publicar “O Babaca”, tive que escrever uma carta explicando para o autor porque desejava trazer aquele trabalho para o português, a premência de dar acesso a um trabalho de um artista referência do punk graphics, que se fez pelo risco que assume dentro e fora de sua linguagem de narrativas visuais.

Com Stephanie Sauer, Joel Araujo, Vera Gontijo, Nathanaël,Virgílio Neto, Lucas Gehre, Duda Pedreira, Felipe Araujo, Márcio Araujo, Ingrid Kita, Cassius Augusto, Gabriel Carvalho, Federico Lamas, Bhanu Kapil, Douglas A. Martin, Gail Scott, Rui Tenreiro, Heather Benjamin, Dan Nadel, Rodrigo Martins, Kammal João, Adriano Motta, Tommi Musturi, Marc Bell, Christopher Forgues, Matthew Thurber, Stephane Blanquet, Jesse Moynihan, Frederic Fleury, Marc Beyer, Stephen Motika, John Keene, Reinaldo Reis, Ana Fonseca, Regina Melim, Beatriz Carneiro, Bia Fontoura, Thiago Gomide Nasser, Gabriela Maciel, Fábio Morais, Maíra Dietrich, Rejane Dias, Bia Bittencourt, Beto Galvão, Luana Matos, Elisa Ventura, Daniel Fuentes, Igor Machado, Retina78, Boca do Trombone, Junta Local, Comuna, e tantos outras pessoas, editoras e coletivos, entendi que confiança e parceria eram sim a base maior para trabalhar por mudanças de padrões, para se mover contra as estruturas de distribuição, de acesso, excludentes do mercado editorial tradicional brasileiro e suas tentativas de conservar o controle cultural no campo impresso e se tornar uma Editora. Esse ofício de apaixonados, de maníacos suaves, de acordo com Drummond.

Ainda no período, quando a sede da editora era localizada no terraço da Fábrica Bhering, desenvolvemos uma série de movimentações para tentar trazer o público ao Santo Cristo para que pudesse ter acesso aos trabalhos, publicações da editora. Montamos o projeto Hora Feliz , A Bolha Móvel e o A Bolha Open Air — o menor cinema a céu aberto do Rio de Janeiro –, este desenvolvido em parceria com a artista Beatriz Carneiro. A ideia, desenvolvida com recursos próprios e com a ajuda dos parceiros da Boca do Trombone, sempre foi, dentro de um contexto informal, dar visibilidade a novos trabalhos e/ou trabalhos que dificilmente seriam exibidos em um circuito comercial.

Cartaz A Bolha OPEN AIR, 2013 - por Federico Lamas, autor de Visão Infernal

Trabalhávamos domingos, feriados e dias santos. Nesse ínterim fomos encontrando parceiros, pessoas que estavam dispostas a reescrever a realidade cultural do Rio de Janeiro e por que não, do país. A TAL da artista Gabriela Maciel, Boca do Trombone, e também os grandes companheiros da Comuna. Foi assim que em 2013, Duda Pedreira e Felipe Norkus propuseram, durante um encontro no terraço da Bhering, que fizéssemos uma parceria entre A Bolha e a Comuna para desenvolver não só uma feira de arte impressa independente, a Pãodeforma, mas também uma possibilidade de espaço mensal, a FATIA, para dar continuidade ao diálogo com a Pãodeforma convidando artistas, coletivos, editoras independentes para mostrar, conversar, distribuir e vender seus trabalhos. E da FATIA, da Pãodeforma, surgiu também a MARGARINA, ciclo de conversas e também entrevistas por skype com fazedores de arte impressa do Brasil e do mundo.

Feira Plana 2015

Apesar dos prejuízos evidentes causados pelo incêndio no espaço da editora, o fogo também nos trouxe a oportunidade de repensar a ordem política, a expansão e sustentabilidade do próprio projeto d’A Bolha como editora, como uma atividade oposta a produção industrial feita em cadeia; repensar os problemas crônicos de dificuldade de crédito, retorno lento de capital e mais uma vez reafirmar, que a editora não é uma história empresarial cujo público consumidor é anônimo. O incêndio levou alguns livros, mas também fez ressurgir a possibilidade de continuarmos nos reinventando sem nos deixar estrangular pelos chamados princípios da economia de mercado, pelas funções repressivas da estrutura tradicional de circulação e distribuição de publicações.

Bom, se você chegou, até aqui, até essa parte do texto, é importante que você saiba que a participação do público consumidor, a participação humana, para iniciativas independentes como A Bolha, é decisiva. Sendo assim, estamos preparando para 2016 um ano diferente de todos os outros anos da editora. Tomamos banho, trocamos de roupa, rearrumamos a casa e queremos convidar a todos vocês que não se mantêm indiferentes ao sufocamento da produção cultural do país e que têm consciência das barreiras existentes para produção gráfica independente, vocês que gostam de narrativas visuais e literatura independente que não têm medo do escuro, que não têm medo do risco como linguagem, para nos acompanhar nessa nova fase. Preparamos um espaço, um canal, para oferecer-lhes acesso a tudo aquilo que amamos, e claro, uma série de presentes, contéudo de alegria pagã. Como por exemplo, um livro gratuito do artista Rodrigo Martins.

Então se você gosta, tem admiração, ama ou quer conhecer melhor a editora, fica aqui o convite para essa nossa nova jornada de ruídos impressos. Clique neste link ou na sua foto preferida deste texto. Nós estamos comprometidos a recompensar todo apoio, confiança e fidelidade depositados na editora, à altura.

A história impressa do Brasil é recente, e é importante estarmos cientes de que iniciativas de guerrilha impressa, que se compõe como grupo editorial de experimentações, nos ajudam, e muito, a estabelecer territórios sem paredes e instigar, avivar, a contracultura hoje, dentro e fora do país. A verdade é que só quando uma editora encontra um público capaz de a acompanhar no processo de criação é que vale a pena publicar livros.

A Bolha é uma batalha pessoal, é um projeto de vida. E para mim o trabalho de um editor é abrir espaços. E é isso que vou continuar a fazer sem medir esforços. Tenho certeza de que é possível sair do circuito das grandes livrarias, grandes editoras, grandes redes. Ainda não sei exatamente como, mas é possível, tem que ser!

Clique aqui para saber mais sobre A Bolha!

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