O Gigante Egoísta — Oscar Wilde

Onde se lê o conto “O Gigante Egoísta”, de Oscar Wilde, em tradução de Abreu Ferreira.

Abreu F.
7 min readJan 4, 2022
Publicado originalmente em https://www.abreuferreira.com.br.

Todo dia à tarde, voltando da escola, as crianças costumavam passar no jardim do Gigante para brincar.

Era um jardim grande e vicejante, com grama verde e macia. Aqui e ali cobriam o relvado flores lindas como estrelas, e havia doze pessegueiros que na primavera rebentavam delicados botões em rosa e em pérola, e no outono davam frutos suculentos. Os pássaros se encarapitavam nas árvores e cantavam tão docemente que as crianças costumavam interromper seus jogos para escutar. — Quão felizes nós somos aqui! — diziam umas às outras.

Um dia o Gigante voltou. Ele saíra para visitar seu amigo, o ogro Cornualhês, e estivera com ele por sete anos. Quando os sete anos terminaram ele já dissera tudo que tinha para dizer, pois sua conversa era limitada, e deliberou retornar a seu próprio castelo. Ao chegar viu as crianças brincando no jardim.

— O que vocês estão fazendo aqui? — ele disse em uma voz bem ranzinza, e as crianças saíram correndo.

— O meu jardim é o meu jardim — disse o Gigante; — qualquer um consegue entender isso, e eu não permitirei a ninguém brincar nele senão eu mesmo. — Então ele construiu um alto muro em torno do jardim, e pôs um aviso:

“INVASORES SERÃO PROCESSADOS”

Era um Gigante bem egoísta.

As pobres das crianças não tinham mais onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas a estrada era toda poeirenta e cheia de pedras duras, e elas não gostaram nada. Costumavam vaguear em torno do alto muro quando as aulas terminavam, e falar sobre o lindo jardim lá dentro. — Quão felizes nós éramos lá — diziam umas às outras.

Então a Primavera chegou, e por todo o país surgiram botõezinhos de flor e passarinhos. Só no jardim do Gigante Egoísta era ainda inverno. Os passarinhos não se davam ao trabalho de cantar lá uma vez que não comportava crianças, e as árvores se esqueceram de desabrochar. Uma vez uma linda flor pôs a cabeça para fora da grama, mas quando viu o aviso ficou tão compadecida pelas crianças que deslizou de volta para dentro do solo e voltou a dormir. As únicas pessoas contentes com a situação foram a Geada e a Neve. — A Primavera se esqueceu deste jardim — diziam, — então viveremos aqui o ano inteiro. — A Neve encobriu o relvado com sua capa alva e majestosa, e a Geada pintou todas as árvores de prata. Então convidaram o Vento Norte a fazer-lhes companhia, e ele veio. Estava agasalhado em pelos, e rugia o dia todo pelo jardim, e seu sopro derrubou as chaminés. — Eis um lugar agradabilíssimo — ele disse, — devemos chamar o Granizo qualquer dia. — Então o Granizo veio. Todo dia passava três horas chacoalhando o telhado do castelo até ter quebrado a maior parte das telhas de ardósia, e então correu em círculos pelo jardim tão rápido quanto era capaz. Vestia roupas cinzentas, e seu hálito era de gelo.

— Eu não compreendo por que a Primavera se atrasa tanto a chegar — disse o Gigante Egoísta, parado à janela e olhando seu jardim branco e gelado; — Eu espero que o tempo melhore.

Mas a Primavera nunca chegava, nem o Verão. O Outono trouxe frutos dourados a todo jardim, mas ao jardim do Gigante não trouxe nenhum. — É egoísta demais — disse. E era sempre Inverno por lá, e o Vento Norte, e o Granizo, e a Geada, e a Neve dançavam por entre as árvores.

Certa manhã o Gigante estava deitado desperto na cama quando ouviu uma música agradável. Soava tão doce aos seus ouvidos que pensou serem os músicos do Rei de passagem. Na verdade não passava de um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora de sua janela, mas fazia tanto tempo desde que ele ouvira o cantar de um pássaro em seu jardim que a ele aquela pareceu a música mais maravilhosa do mundo. Então o Granizo parou de dançar sobre sua cabeça, e o Vento Norte parou de rugir, e um perfume delicioso chegou a ele pela janela aberta. — Me parece que a Primavera chegou enfim — disse o Gigante; e ele pulou da cama e olhou para fora.

O que é que ele viu?

Ele viu a coisa mais linda. Por um pequeno buraco no muro as crianças haviam entrado de gatas, e estavam sentadas nos galhos das árvores. Em cada árvore que ele pôde ver havia uma criança. E as árvores estavam tão gratas de ter as crianças de volta que suas copas florejaram, e agitavam gentilmente os braços sobre as cabeças pueris. As aves sobrevoavam o jardim e trilavam em deleite, e as flores da relva verdejante erguiam a cabeça e gargalhavam. Era uma cena encantadora, somente a um canto persistia o inverno. Era o canto mais afastado do jardim, e nele estava um garotinho. Era tão pequeno que não alcançava os galhos da árvore, e ficava circundando ela, chorando amargamente. A pobre árvore estava ainda bem recoberta de geada e neve, e o Vento Norte soprava e rugia acima dela. — Vamos, suba! garotinho — disse a Árvore, e declinou seus galhos tão baixo quanto conseguia; mas o garoto era pequeno demais.

E o Gigante olhou para fora e seu coração derreteu. — Como eu tenho sido egoísta! — ele disse; — Agora eu sei por que a Primavera não vinha. Vou pôr esse garotinho no topo da árvore, e então derrubar o muro, e meu jardim será o parquinho das crianças para todo o sempre. — Ele estava mesmo muito arrependido do que fizera.

Então ele desceu as escadas e abriu a porta da frente bem delicadamente, e saiu no jardim. Mas quando as crianças o viram ficaram tão amedrontadas que correram todas embora, e o jardim retornou ao inverno. Só o garotinho não correu, porque seus olhos estavam tão cheios de lágrimas que não viu o Gigante chegando. E o Gigante chegou sorrateiro por trás dele e o pegou gentilmente na mão, e o pôs na árvore. E a árvore desabrochou de uma vez em flores, e os pássaros vieram e cantaram nela, e o garotinho esticou os braços e cingiu o pescoço do Gigante, e o beijou. E as outras crianças, quando viram que o gigante não era mais maléfico, voltaram correndo, e com elas veio a Primavera. — É seu jardim agora, criancinhas — disse o Gigante, e ele pegou um grande machado e pôs abaixo o muro. E quando as pessoas se dirigiram ao mercado às doze horas encontraram o Gigante brincando com as crianças no mais belo jardim que jamais se viu.

O dia inteiro brincaram, e à tarde vieram ao Gigante para dizer tchau.

— Mas cadê seu amiguinho? — ele disse: — o garoto que eu pus na árvore. — O Gigante o amava mais porque ele o beijara.

— A gente não sabe — responderam as crianças; — ele se foi.

— Vocês têm que dizer a ele para voltar aqui amanhã — disse o Gigante. Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava, e que nunca o haviam visto antes; e o Gigante se sentiu muito triste.

Todo dia à tarde, depois da escola, as crianças vinham brincar com o Gigante. Mas o garotinho que o Gigante amava nunca mais foi visto. O Gigante era muito gentil com todas as crianças, porém ele ansiava rever seu amiguinho, e frequentemente falava dele. — Como eu queria vê-lo! — costumava dizer.

Anos passaram, e o Gigante envelheceu e enfraqueceu bastante. Não era mais capaz de brincar, então se sentava em uma poltrona enorme, e assistia aos jogos das crianças, e admirava seu jardim. — Eu tenho muitas flores bonitas — disse; — mas as crianças são as flores mais bonitas de todas.

Numa manhã de inverno ele olhou para fora por sua janela enquanto se vestia. Ele já não detestava o Inverno, pois sabia que era meramente a Primavera adormecida, e que as flores estavam descansando.

De repente esfregou os olhos em perplexão, e olhou e olhou. Era com certeza uma visão maravilhosa. No canto mais afastado do jardim havia uma árvore toda coberta de lindas flores brancas. Seus galhos eram todos dourados, e frutos prateados pendiam deles, e sob ela estava o garotinho que ele amara.

Pelas escadas abaixo correu o gigante em gaia emoção, e saiu no jardim. Atravessou às pressas o gramado e se aproximou da criança. E quando chegou bem pertinho seu rosto tornou-se rubro de cólera, e disse: — Quem se atreveu a ferir-vos? — Pois nas palmas das mãos da criança havia as marcas de dois pregos, e as marcas de dois pregos havia em seus pezinhos.

— Quem se atreveu a ferir-vos? — gemeu o Gigante; — dizei-me, que hei de empunhar minha grande espada e abatê-lo.

— Nem! — respondeu a criança; — estas são as feridas do Amor.

— Quem sois vós? — disse o Gigante, e um estranho senso de reverência se apoderou dele, e ele se ajoelhou perante a criancinha.

E a criança sorriu no Gigante e disse a ele: — Você me deixou brincar uma vez em seu jardim, hoje você deve vir comigo ao meu jardim, que é o Paraíso.

E quando as crianças apareceram nessa tarde, encontraram o Gigante caído morto sob a árvore, todo coberto de flores brancas.

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