Pontevedra, na Galiza, inspirou-se em Jane Jacobs para transformar a cidade. Foto de Adriano Miranda/PÚBLICO

Seis décadas depois de Jane Jacobs, ainda andamos a tentar salvar a rua

Há 60 anos, o livro “A Morte e a Vida de Grandes Cidades Americanas” abria-nos os olhos para os riscos de um urbanismo racionalista, desligado do quotidiano das pessoas, da vizinhança, da rua. Por causa dele, Jane Jacobs é vista como a voz fundadora de um movimento de humanização da cidade que hoje ainda ecoa no debate público, em propostas como a Cidade de 15 Minutos, ou nas ruas inclusivas da cidade galega de Pontevedra. Num planeta em urbanização crescente, o sonho de uma cidade aberta à diversidade e menos desigual está por cumprir, mas este é um livro essencial para o caminho.

Abel Coentrão
16 min readAug 1, 2021

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A meio de uma entrevista com o PÚBLICO, no terceiro andar do edifício da câmara municipal, o alcalde de Pontevedra cala-se. “Escutem!” — pede-nos. Num segundo, o silêncio repentino da enorme sala onde Miguel Anxo Lores nos recebe enche-se de rua, que sobe até ali, num coro de vozes desconfinadas, há anos, do tráfego de 14 mil veículos que diariamente a percorriam. Premiada internacionalmente pelo modelo urbano que resgatou a cidade para as pessoas, o município da Galiza criou uma “faculdade”, a Ágora, para espalhar a mensagem com a ajuda de alguns dos embaixadores de um urbanismo humanista, como Jan Gehl (autor de A Vida entre Edifícios, 1971), Francesco Tonnuci ( A Cidade das Crianças, 1995) e na qual participa também o nome mais sonante do momento, Carlos Moreno (e a sua mais recente Cidade dos 15 Minutos, de 2015).

Mas na lista de docentes, que inclui a portuguesa Paula Teles (A Cidade das Imobilidades, 2006), falta outra mulher, que, há precisamente 60 anos, em 1961, os influenciou a todos, ao revolucionar a forma como olhamos para a urbanidade e a urbanização com a sua obra The Death and Life of Great American Cities (traduzido, na edição brasileira da Martins Fontes, como A Morte e a Vida de Grandes Cidades). Jane Jacobs destacara-se, em meados dos anos 50, na oposição cívica aos planos de reabilitação urbana de Nova Iorque e à possibilidade de ver o Parque Washington Square, no bairro multicultural (área equiparável às nossa freguesias urbanas) de Greenwich Village, onde vivia, ser rasgado por uma auto-estrada, como propunha o homem forte do planeamento da cidade naquelas décadas, Robert Moses. No livro, a norte-americana oferece-nos um minucioso relato etnográfico sobre os usos e “desusos” do espaço público e chama a atenção para a importância da diversidade funcional, contra o zonamento e a especialização urbana (ainda) vigente, que nos afasta uns dos outros e nos põe a todos dentro de um carro, e fora das ruas, a caminho das tarefas diárias que temos de cumprir.

Estivesse viva, Jane Jacobs (1916–2006) seria, aos 105 anos, figura de honra da Faculdade Ágora, mesmo que viesse em cadeira de rodas. Porque o que não falta em Pontevedra, um antigo botafumeiro de carros a perder de vista, é gente em cadeira de rodas, com ou sem motor, deambulando lentamente, entre crianças libertas da mão segura dos pais e ao lado de ciclistas que nem precisam de ciclovias para se deslocarem sem medo. Quinze minutos sentados numa esplanada, deslumbrados com o grau de acessibilidade do espaço público (95%), deixamos de tentar contar os deficientes, as mães com carrinhos de bebés, os velhinhos e velhinhas de condição física variada que minutos antes formavam esse coro de gente que subia pelas paredes dos Paços do Concelho.

Jane Jacobs à porta da sua casa em Toronto, na Spadina Road, em Dezembro de 1968, ano em que se mudou dos EUA para o Canadá. O seu livro The Death and Life of Great American Cities revolucionou a forma como olhamos para a urbanidade e a urbanização FRANK LENNON/TORONTO STAR VIA GETTY IMAGES

Não é a sede da rua pós-pandemia, que quando o P2 ali esteve ainda se impunha nas máscaras e mil cuidados na aproximação física. É um hábito, que se consubstancia nos 80% de deslocações a pé para a escola, que foi sendo construído ao longo de décadas de reabilitação da cidade que puseram o elefante na sala — o automóvel — no seu sítio devido, na cave ou na envolvente da área urbana. Com o tráfego reduzido à mínima expressão no centro histórico (-70% do que em 1996) e parcialmente afastado de todo o centro urbano (-50%) onde vivem 65 mil habitantes, aqui, num raio de 3,25 quilómetros, o carro cabe onde couber, depois de assegurado espaço no passeio para pelo menos duas pessoas a pé, lado a lado, e com guarda-chuva; cabe onde couber, depois de assegurado espaço para todo o equipamento urbano, que não está a atravancar o caminho de quem tem de andar a pé.

O direito à rua

Na década de 90 Pontevedra tinha mais tráfego do que a área central de Milão (condicionada por portagem), numa área menor. Mas o seu modelo, que é notícia em todo o mundo, depois de uma década sem mortes nas ruas, vai muito além da gestão de tráfego e da vitória sobre a sinistralidade que, entre nós, em Portugal, mata mais em meio urbano, nas ruas, do que nas estradas. O projecto desta pequena sede provincial galega começa, na verdade, numa inversão das prioridades, que eleva o peão ao topo. Por aqui, entre outros direitos, o município assume a garantia do acesso ao espaço público, e considera-se que este tem que ser amable, num duplo sentido, lemos. Amável para quem usa, pela forma como lhe facilita a vida; amável por parte dos seus utilizadores mais vulneráveis, que o procuram por gostarem de ali estar.

Segundo o ideólogo desta transformação, o conselheiro municipal César Mosquera, estes apropriaram-se da rua de tal forma que podem até reagir mal, se, por exemplo, um acelera se lembra de mostrar o tamanho do seu… perdão, da potência do seu carro numa dessas artérias onde a sua presença é apenas tolerada. “Não tínhamos isso em mente, quando começámos a trabalhar, mas este modelo urbano levou a uma afirmação do poder destas pessoas”, explica ao P2, admitindo que esse reequilíbrio de poder acaba por influenciar o clima social que se vive nas ruas e minimizar o risco. “Isso não impede que um louco entre por aqui a matar”, lembra o autarca. Mas o facto é que, por causa da sorte e dos condicionalismos do desenho urbano, em Pontevedra morre-se cada vez menos nas ruas, e Espanha acabou por decretar, em Maio passado, os 30km/h como limite para todas as artérias urbanas com uma via em cada sentido.

Pontevedra, como centenas de outros municípios pelo mundo que já trilharam este caminho, tem em Jane Jacobs uma inspiração, mesmo que não seja comparável às grandes cidades de cujo exemplo a americana se socorreu, em 1961, para abanar as consciências dos urbanistas ainda presos às teses da primeira Carta de Atenas (de 1933). Os galegos estão mais perto, na escala e na história, de espaços, como Siena, em Itália, ou mesmo da zona central de Copenhaga, que uma década depois, em 1971, o arquitecto dinamarquês Jan Gehl usava como exemplo para, de novo, voltar a sua (e a nossa) atenção para A Vida entre Edifícios. Gehl, um dos professores da Faculdade Ágora, assume que A Morte e a Vida de Grandes Cidades foi uma fonte importante para o seu primeiro livro, cujos 50 anos anda a celebrar, insistindo que, apesar de a Nova Carta de Atenas, de 1998, ter abandonado a anterior visão, ainda “temos de recuperar o nosso sentido de escala humana”.

Humanizar a cidade

“As ruas e os seus passeios, principais locais públicos de uma cidade, são os seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça? As suas ruas. Se as ruas de uma cidade parecem interessantes, a cidade parecerá interessante. Se elas parecerem monótonas, a cidade parecerá monótona”, escrevia Jacobs, que não estava a pensar no tipo de piso, ou na quantidade de árvores, mas noutras características, que, no caso do que a preocupava, contribuem para a vitalidade económica e a sensação de segurança, no espaço público: os seus usos múltiplos e multiplicados por uma diversidade social e económica de pessoas que, ao mesmo tempo, funcionam como “olhos” que vigiavam o lugar. “O prazer das pessoas de ver o movimento de outras pessoas é evidente em todas as cidades”, escrevia, numa frase que foi mote para as observações de Gehl e de outros autores, nas décadas seguintes.

Mais do que libelos contra os carros, Morte e a Vida das Grandes Cidades e A Vida entre Edifícios resumem um esforço continuado, que teve eco em muitos outros arquitectos e urbanistas um pouco por todo o mundo, incluindo em Portugal, de humanizar a cidade, através da rua. De a resgatar (palavra que ecoou de novo durante esta pandemia) de um planeamento que Jacobs comparava à velha medicina, e que, como aquela, acreditava no poder curativo da sangria. Expurgadas das brincadeiras das crianças (que nessa racionalidade modernista só subsistiriam dada exiguidade dos espaços privados), das conversas (que, segundo a mesma lógica, só se manteriam se fossem maus os espaços privados), as ruas seriam lugares salubres e seguros, aptos a usos programados, como ir e vir do trabalho, da escola ou das compras: a pé, mas principalmente nesse novo veículo para o qual a esmagadora maioria do espaço vinha sendo pensado.

O carro não era, na perspectiva de Jacobs, o culpado, mas tão-só a consequência, e um novo símbolo dessa racionalidade submetida à tecnologia e desligada da vida quotidiana, que incensava a função de circulação no espaço urbano e desprezava a importância das relações sociais, dos laços de vizinhança, para a construção da vitalidade e segurança do próprio espaço público. Não lhe faltavam exemplos, nas cidades que visitara, de empreendimentos monofuncionais, residenciais, por exemplo, onde, à falta dos tais olhos que guardam as ruas, o medo e o crime tinham erguido o seu império, sob a indiferença dos condutores que, protegidos pela sua carapaça, por lá passavam apressados — quando passavam.

Seguindo as pisadas de Jacobs, em 1981 o urbanista e académico anglo-americano Donald Appleyard publicou Liveable Streets, que dedicou a “todas as crianças que são ameaçadas pelo tráfego, bem como a todos aqueles que sofrem com o ruído, as vibrações, os fumos, a sujidade, a fealdade, a solidão, a alienação e outros tipos de empobrecimento que a sua presença gera”. Nesta obra fica para a história um estudo realizado na década anterior em ruas de São Francisco no qual, inspirando-se na ideia dos “olhos que vigiam a rua”, Appleyard analisou as relações de vizinhança em três ruas com um perfil de tráfego totalmente distinto. E o que descobriu foi que quanto mais intenso era o fluxo de carros, menos os vizinhos de um e de outro lado da rua se relacionavam, ficando os movimentos dos moradores mais concentrados no passeio defronte da respectiva casa. Onde havia menos trânsito, os inquiridos relatavam ter muitos mais amigos do lado oposto — porque lhes era fácil lá chegar.

Numa altura em que, por motivos de segurança (o tráfego, mais uma vez), as brincadeiras infantis se encerravam em parques cercados, “onde as crianças se aborreciam”, Jacobs destacara, a contracorrente, as possibilidades de autonomia propiciadas pelo uso da rua. Três décadas depois do seu livro, e inspirado por ele também, o pedagogo italiano Francesco Tonucci iniciava em Itália, na pequena cidade de Fano, um laboratório de cidadania infantil, procurando, com a voz das próprias crianças, dar-lhes poder de influenciar as escolhas e recuperar-lhes o acesso ao espaço público, perdido, essencialmente, para o automóvel. Desde 1991 que o autor de A Cidade das Crianças tenta convencer autarcas de todo o mundo de que uma cidade amiga das crianças será amiga dos idosos, dos deficientes e das mulheres, sobre as quais recai ainda a responsabilidade de garantir o apoio e segurança dos mais frágeis da sociedade. ​

Distância…

Transformadas num instrumento de gestão de tráfego, as ruas têm sido reabilitadas em nome das necessidades da nova máquina, que em algumas cidades chega facilmente a ocupar mais de 60% do espaço público. E esqueçamos, por um segundo, o tráfego. Num mundo em urbanização crescente, onde metade da população já vive em cidades (a percentagem passa dos 70% na Europa), há outra consequência evidente. Quanto mais metros quadrados dedicamos para faixas de rodagem, lugares e parques de estacionamento, mais a construção se alastra, os usos da cidade se dispersam, aumentando a necessidade de mobilidade. Jacobs chamava-lhe uma retroalimentação positiva, um fenómeno que por todo o lado levou ao desenvolvimento da suburbanização metropolitana. E, entre nós, a fenómenos como o de A Rua da Estrada (Álvaro Domingues, 2010), que transformaram algumas das nossas estradas nacionais em linhas contínuas de urbanização, às quais se acede e entre as quais se circula de carro.

Este frenesim, que alguns académicos comparam à tentativa de curar um obeso alargando a sua banda gástrica, deixou milhões de pessoas longe dos seus locais de trabalho e de estudo, de lazer, de compras, e, claro, muitas vezes dependentes de um carro para lá chegar. É gente que acrescenta tráfego ao tráfego de moradores dos centros urbanos, e que disputa, com estes, as possibilidades finitas de parqueamento automóvel. Os EUA onde Jacobs viveu até 1968, antes de se mudar para o Canadá (Toronto), são um exemplo maior desta “erosão” da urbanidade, como ela lhe chamou, mas o problema espalhou-se por várias geografias, mesmo quando já conhecíamos os impactos desta urbanização desregrada na ocupação de solos, na depredação de recursos e, mais recentemente, na emissão de gases com efeito de estufa: seja pelas cidades em si, seja pelo padrão de mobilidade que as sustenta.

Nas suas observações, Jacobs temia que este processo, alimentado por uma cultura nova e arreigada — ​ nos EUA, “o sentido da vida é produzir e consumir automóveis”, sentenciava — ​, quebrasse os factores que, na sua perspectiva, favoreciam a diversidade económica e social da cidade. Esta, defendia Jacobs, tinha de conseguir misturar mais do que duas funções (habitação, trabalho e lazer, por exemplo) em bairros e freguesias com pequenas frentes urbanas que favorecessem a mobilidade pedonal. Contrariando a ideia dos planeadores do momento, defendia também a necessidade de conjugar edificado novo com outro mais antigo, acessível a habitantes e comerciantes de menos posses, de modo a garantir “rendimento económico variado”; e, horror dos racionalistas, não só não via nada de mal na densidade populacional, como a considerava essencial para promover esta diversidade.

E proximidade…

No entanto, avisava, “uma política que tivesse por objectivo primordial a exclusão dos veículos, que criasse tabus sobre eles e os multasse, com as crianças gritando “Fora daqui, Carros!”, seria uma política não só fadada ao fracasso, como também merecidamente fadada ao fracasso”. “O vazio urbano não é melhor do que o trânsito excessivo” e, nessa perspectiva, “a população tem razão ao suspeitar de programas que não dão nada em troca”, insistia. A activista sugeria que, se tal política fosse ao encontro do desejo de aumentar a diversidade de usos do espaço urbano, de melhorar as condições de vida dos seus habitantes, teria melhores condições para ser bem sucedida. Em Pontevedra os autarcas leram bem os avisos. Em vez de um programa para acabar simplesmente com um “botafumeiro” — ​ que em 1999 não pareceria, à sociedade, tão prioritário como em 2020 — ,​ insistiram sempre que queriam devolver a cidade às pessoas e, entre estas, aos excluídos de um planeamento pensado por homens, e para homens, no qual pouco espaço simbólico e físico era concedido aos improdutivos: velhos e crianças, por exemplo.

Conversa Urbana com Alexandra Paio, Miguel Gaspar e Carlos Moreno, no PÚBLICO

Se lhe pedem um bom exemplo de um lugar onde isso foi alcançado, Francesco Tonucci aponta, no mapa, precisamente para Pontevedra, que há anos se inspirou também nas suas propostas e o convidou, claro, para a Faculdade Ágora. O italiano já não terá a companhia de Jaime Lerner, o histórico arquitecto e urbanista brasileiro, autarca de Curitiba e autor da obra Acupunctura Urbana (escrito em 2003 e, ampliado em 2020), que morreu em Maio. Mas partilha estas sessões de formação, dedicadas a técnicos municipais, com figuras como Jeff Speck, autor de Walkable City (2012) e, principalmente, com Carlos Moreno, um académico da Sorbonne que, como resposta à urgência climática, em 2015, na Cimeira do Clima de Paris, ressuscitou várias das ideias de Jacobs, revalorizou o conceito velhinho de “unidade de vizinhança”, formulado por Clarence Perry em 1929, e apresentou-nos a sua Cidade de 15 Minutos.

As cidades”, insistia Jacobs, “têm capacidade de oferecer algo a todos, mas só porque e quando são criadas por todos”.

A ideia de uma cidade onde seja possível viver, trabalhar ou estudar, fazer compras, aceder a serviços públicos e usufruir de actividades de cultura e lazer a uma curta distância a pé ou de bicicleta, minimizando as deslocações obrigatórias, podia ser mais uma teoria. Mas o facto de a actual autarca de Paris, Anne Hidalgo, ter empunhado a Villle du Quart d’heure como bandeira eleitoral, em plena pandemia, mostra-nos, de certa forma, como, acrescidas de uma nova ênfase na ecologia urbana, as propostas da norte-americana, que valorizavam a proximidade, a solidariedade e a participação cívica, tanto serviam para garantir a coesão social e a vitalidade económica das cidades como nos podem resolver alguns dos dilemas decorrentes da nova crise civilizacional que enfrentamos — que são, simplesmente, uma nova camada de problemas que se mesclam com os da velha cidade.

​O teste de algodão

Professora na Ágora e engenheira do planeamento, Paula Teles não tem dúvidas de que, 60 anos depois, o pensamento de Jacobs continua mais actual do que nunca, pelo facto de, na verdade, em Portugal poucas cidades terem, como Pontevedra, levado à letra esta ideia do direito à rua, à “vida entre edifícios”, de Gehl. “Fizeram-se algumas intervenções, mas quase sempre são parciais. Temos ainda muito por fazer para tornar as nossas cidades inclusivas e acessíveis, do ponto de vista do espaço urbano”, observa esta especialista, que acaba de lançar um livro, Estação, que colige as suas intervenções públicas, entre artigos e entrevistas, de 25 anos de trabalho. Por ali se encontram reflexões e propostas — ​ como a da necessidade de elaborarmos, em Portugal, o Código da Rua, distinto do Código da Estrada, que fez no PÚBLICO, em 2019. Propostas que poderiam estar datadas, mas que mantêm actualidade. Por falta de quem as ponha em prática e porque o tempo de pandemia, insiste, o exige.

De facto, se as teses humanizantes de Jacobs precisavam de algum teste do algodão, a covid-19 proporcionou-o, ao mostrar-nos o quanto essa parcela singela do espaço público, a rua, é essencial para a “saúde” de uma cidade. Descontando, em A Morte e a Vida de Grandes Cidades Americanas, alguma crítica excessiva ao urbanismo moderno — ​ no qual nem tudo é mau, alerta — ,​ a arquitecta Maria Manuel Oliveira, docente da Universidade do Minho, destaca a forma como a americana continua a convidar-nos, 60 anos depois, a olharmos para o sítio onde o quotidiano se desenrola. “Temos, de facto, de voltar a olhar para a rua”, frisa, assumindo que, à boleia da pandemia, que esvaziou o espaço público, tem reflectido sobre a “desmesura” da área que, nele, está entregue ao automóvel, à “circulação” e que precisa de ser parcialmente repensado, renaturalizado, até para prevenir, por exemplo, a situações como as que vimos, recentemente, na Alemanha e na Bélgica.

Jane Jacobs, com Toronto como pano de fundo, em Outubro de 2012. As suas propostas para a cidade influenciaram várias gerações de profissionais que lidam com o urbanismo KEITH BEATY/TORONTO STAR VIA GETTY IMAGES

Antigo secretário de Estado com a tutela das cidades, o geógrafo João Ferrão coordenou, no ano passado, os Encontros de Urbanismo de Lisboa, centrados nas possibilidades de resposta das cidades a riscos globais, e concorda que a actualidade da mensagem de Jacobs reside, precisamente, nessa proposta de equilíbrio entre a cidade da circulação (a do automóvel) e a cidade da proximidade. Uma proximidade que não pode ser sentida como meramente física, mas que inclui uma dimensão social muito forte, insiste, essencial para dar resiliência às comunidades. Outro geógrafo, João Seixas, da Universidade Nova, acrescenta que essa cidade que acarinha a vizinhança deve, como em Jacobs, valorizar a diversidade social e económica, como forma de garantir a coesão social no espaço urbano.

A intervenção cívica

Não faltando, entre nós, cidades canónicas, com espaço urbano relativamente bem delimitado, em que estes princípios poderiam vingar, em Portugal, assumem ambos, o desafio passa muito por tentar levá-los para a cidade dispersa, os subúrbios-dormitório onde centenas de milhares de pessoas passam a vida presas a um automóvel ou a um transporte público atascado entre os automóveis dos vizinhos. Também Maria Manuel Oliveira considera que temos de deixar de nos preocupar com “o centro”, algo que, para Paula Teles, exigiria uma política pública clara, e um pacote financeiro, que apontasse às margens desses espaços onde tanto se investiu, nas últimas décadas. Gerar proximidade na cidade difusa não é tarefa fácil, mas João Ferrão alerta que não nos podemos furtar ao desafio de tentar transformar as ruas da estrada que Álvaro Domingues tão bem descreveu há uma década, para lhes dar o que a cidade tem para oferecer.

Como chegar lá é o outro grande desafio. Jane Jacobs escreveu o seu primeiro livro quando ainda pairava sobre Greenwich Village a ameaça da “modernidade”, na forma de uma auto-estrada pronta a destruir centenas de casas e um parque de proximidade. Só graças ao empenho dos moradores deste bairro de Nova Iorque, incluindo o dela própria, é que os planos acabariam por ser postos na gaveta, e essa é outra dimensão crucial do seu legado: a de que não podemos continuar a fazer cidades a partir dos estiradores de arquitectos e urbanistas, ignorando, como ela escrevia, “os usos que as pessoas fazem da rua”. “As cidades”, insistia, “têm capacidade de oferecer algo a todos, mas só porque e quando são criadas por todos”.

Talvez pareça utópico a um decisor municipal pôr as crianças a participar no desenho do espaço público, como acontece na rede de Cidades das Crianças, criada a partir de Tonucci e inspirada nas ruas descritas pela norte-americana. Mas os movimentos que, por todo o planeta, reúnem vozes em torno do direito à habitação, do direito à cidade ou até, simplesmente, do direito ao lugar, parecem encarnar essa lição, dada há 60 anos, numa obra que, recorda João Seixas, arranca com um convite a que cada um de nós se interesse pelo que está para lá da nossa janela. “Todas as cenas que ilustram este livro nos dizem respeito. Para ilustrações, por favor, observe atentamente as cidades reais. Ao fazer isso, escute, concentre-se e reflicta sobre o que está a ver.”

PARA LER MAIS

Jacobs continua a inspirar a mudança

A obra de Jane Jacobs e de outros autores que, desde os anos 60 têm reflectido sobre um urbanismo mais humanista inspiram redes e movimentos um pouco por todo o mundo. Se quiser ajudar a sua cidade a ser mais inclusiva, deixo-lhe algumas ligações de iniciativas inspiradoras.

Publicado originalmente em https://www.publico.pt on August 1, 2021. Reportagem galardoada a 5 de Setembro de 2022 com o segundo prémio de Jornalismo para a Sustentabilidade, na categoria imprensa, instituído pela Fundação Mestre Casais e pelo CEIIA.

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Abel Coentrão

Jornalista e estudante de planeamento regional e urbano. Escreve sobre cidades, mobilidade urbana e desenvolvimento sustentável.